segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A PROFECIA EM ROMA (1)






Os antigos gregos davam, de um modo geral, o nome de mantiké à adivinhação. Toda mantiké tinha por objetivo o conhecimento de acontecimentos futuros, concedido pelos deuses aos homens. Esse conhecimento podia ser transmitido por comunicação direta, isto é, por um porta-voz dos deuses, um medium humano, um possuído, chamado de prophetes. Esta palavra, etimologicamente, é constituída pelas raízes pha ou phê, que significam falar, e pelo prefixo pro, antes. Assim, profeta era o que falava antes, o que antecipava. Uma variante desse processo acontecia quando uma divindade se manifestava através de um sonho (oneiros) a um escolhido e lhe revelava alguma coisa. À interpretação das mensagens recebidas através dos sonhos os gregos davam o nome de oniromancia, técnica muito usada no santuário medico do deus Asclépio, em Epidauro. 
 
A adivinhação admitia também uma outra forma, muito difundida, a da leitura de fenômenos naturais, do comportamento de animais, de órgãos ou partes do corpo humano, chamadas todas essas variadas formas de mancias. Dentre as mancias mais praticadas podemos destacar, o augúrio, a partir do canto ou do vôo das aves; a hepatoscopia, a partir das entranhas de animais; a quiromancia, a partir das linhas da mão humana; a aeromancia ou eolomancia, a partir dos ventos e do movimento das nuvens; catroptomancia, a partir de imagens de espelhos; a ofiomancia, a partir do movimento das serpentes etc. Uma das formas mais respeitadas era a dendromancia, a adivinhação praticada pela leitura do movimento dos galhos e ramagens de árvores, de modo especial os do carvalho, árvore sagrada de Zeus (Santuário de Dodona).



SANTUÁRIO DE DODONA

Lembremos que Platão dava o nome de mania (loucura, excitação) à comunicação direta de um deus através de um medium. Os melhores exemplos desta comunicação estão em Delfos, no oráculo do deus Apolo,o dono da chamada mântica profética. As sacerdotisas do deus, tomadas por ele (entheos), em transe, transmitiam as suas sentenças, interpretadas pelos sacerdotes. Esta interpretação se tornava necessária porque, ao transmitir a mensagem divina, as sacerdotisas o faziam de modo pouco inteligível. Um dos nomes delas, aliás, sibila, provinha deste fato. Em transe, elas sibilavam as palavras, pronunciando-as, mais balbuciando-as, entre os dentes, com muitos esses. Em razão dessas dificuldades, um dos nomes de Apolo era Loxias (Oblíquo), em razão do sentido equívoco de seus oráculos.

Quanto aos antigos povos que habitavam a península ibérica antes do aparecimento de Roma, no séc. VIII aC, encontramos o mesmo interesse pelas mancias. Como os gregos, eles procuraram de algum modo conhecer e invocar as forças misteriosas da natureza que tanto afetavam as suas vidas. Abrir canais de comunicação entre o divino, o céu, a natureza, os entes dos vários reinos e o ser humano através das mais variadas mancias.

O que sempre esteve por trás desse modo de pensar, em antigas tradições como a grega, romana e outras, se baseava naquilo a que os antigos gregos deram o nome de sympatheia, conceito também presente nas suas primeiras elaborações filosóficas. Etimologicamente, sympatheia (syn, junto, mais pathos, afecção, entendida esta como qualquer alteração patológica do corpo humano) quer dizer acordo de sentimento, afecção idêntica. A sympatheia entende que o kosmos é um organismo, uma criatura (zoon) viva e visível, que tem dentro de si todas as coisas interligadas.

Quem melhor talvez tenha definido estas idéias foi Plotino (séc. II dC), com a sua famosa afirmação de que, no universo, da célula à galáxia, tudo era a mesma coisa, tudo estava interligado. Plotino, por isso, admitia a adivinhação (mantiké) astrológica que consistia na leitura do movimento dos planetas em torno da Terra, no círculo zodiacal. Ele sustentava a possibilidade da compreensão e do uso dos poderes simpáticos das coisas presentes no universo para que o ser humano pudesse alargar a sua visão do mundo. Sábio era para ele aquele que se dedicava à contemplação dessas coisas. 

Com os etruscos, povo que vivia na região central da Itália, correspondente mais ou menos à Toscana de hoje, os romanos aprenderam, além de outras coisas, as artes da profecia e da adivinhação. Os sacerdotes etruscos decifravam os desejos dos deuses estudando e interpretando os fenômenos da natureza, desde o traçado dos relâmpagos até o nascimento de uma vitela de duas cabeças. Uma das fontes mais confiáveis para eles, nesse sentido, eram as entranhas dos animais sacrificados, em especial o fígado, tomando a sua leitura o nome de hepatoscopia, devido principalmente à forma do órgão, sua cor e variações nos desenhos de suas veias.

Na religião romana, a adivinhação se associará bastante ao movimento das aves nos céus. Ler os auspícios era, literalmente, interpretar o seu voo. A palavra auspício era retirada de auspicium (avis, ave, mais spicium, do verbo specere, olhar, especular). Um empreendimento começava sob bons auspícios se os adivinhos constatassem que os pássaros entravam pela direita do espaço celeste observado. Se entrassem pela esquerda, os presságios não seriam bons. 

É interessante notar que se dava o nome de templum ao espaço celeste delimitado para nele se fazer a devida observação. Templum era um espaço celeste escolhido pelos áugures, um espaço entre duas montanhas, por exemplo. O templum era observado a partir de um edifício construído adrede para tal fim, passando depois o nome a designar qualquer edifício para fins religiosos. Contemplar era então fixar o olhar em alguma coisa, olhar atentamente, muitas vezes com encanto e admiração. Contemplar, nesse sentido, tem relação com considerar, palavra esta que também tem a ver com o céu. Sidus, em latim, é estrela (em um grupo); sideralis é o que concerne aos astros. Considerar é, pois, olhar atentamente os astros para entender a sua influência. No sentido contrário de considerar temos a palavra desastre, que significa afastamento dos astros (des, prefixo que denota separação, afastamento).

Em Roma, “ler os auspícios” significava literalmente observar as aves do céu. De acordo com a lenda, Rômulo e Remo decidiram qual dos dois deveria fundar Roma observando o voo de abutres. Remo, voltado para determinada direção, avistou seis deles; Rômulo, postado em outro lugar, distinguiu doze, o que lhe deu superioridade na disputa. 

Sabe-se que bem mais tarde a leitura dos auspícios em Roma se orientou para a observação de frangos. Há um fato histórico notável que confirma esta forma de leitura. Durante a primeira guerra púnica (Cartago), o comandante da esquadra romana, Cláudio Pulcro (fig. esq.), levou para o mar em sua nau um bando de frangos, esperando através deles ler augúrios que o aconselhassem a agir, conforme eles ciscassem a sua comida. 

Os frangos, contudo, por razões inexplicáveis, recusaram o alimento que lhes era dado. Enraivecido, Pulcro lançou-os ao mar. Os romanos atribuiram a desastrosa derrota romana diante dos cartagineses ao comportamento ímpio de Pulcro. Quando de seu regresso a Roma, Pulcro foi julgado, condenado e teve que pagar pesadas multas, não tanto pela derrota, mas, sobretudo, pelo seu inadequado comportamento com relação à matéria religiosa.


Galinhas e frangos eram símbolos de abundância não só na Roma antiga como na Índia e na Pérsia devido ao grande número de ovos e das ninhadas que produziam as primeiras. Os etruscos lhes atribuíam dons divinatórios porque elas cacarejavam ao botar os seus ovos. Quando os etruscos sacrificavam uma galinha ou um frango, serviam-se de sua clavícula para fazer um voto. 

Galinhas e frangos negros eram conhecidos, desde essa época, como agentes do Diabo. Na Idade Média, dizia-se que o Diabo tomava muitas vezes a forma de um frango negro para assistir aos sabás. Muitos alquimistas viam no frango um símbolo da Obra porque nele eram encontradas as suas três cores: o vermelho na sua crista; o branco nas suas penas; e o negro nas suas patas. Era por essa razão que o vaso dos alquimistas tinha o nome de poulet, frango em francês.



                                                     ETRUSCOS

Foi ainda através dos etruscos que os romanos se familiarizaram com a mitologia grega, cujos deuses, com o nome de novensiles (deuses novos), foram adotados em Roma com poucas modificações. Para o pragmatismo dos romanos, essa “importação” não trazia maiores problemas. Entenda-se: os romanos aceitavam com muita naturalidade a ideia da acomodação em seu panteão de divindades dos povos com os quais entravam em contacto, seja por conquista ou pelo comércio.

A religião romana se baseava sobretudo nos ritos, em aspectos formais que tinham, dentre outras, a finalidade de fazer o Estado funcionar bem, dando-se pouca ou nenhuma importância às questões espirituais. O que os romanos sempre pretenderam é que a divindade fizesse algo por eles, uma espécie de barganha segundo a máxima do ut des.


 DO UT DES

Primitivamente, em Roma, então uma aldeia de agricultores e pastores, as manifestações religiosas tinham um caráter puramente animista. Não havia propriamente divindades, mas espíritos impessoais que animavam a natureza como um todo e o movimento dos astros. Eram os numes, entidades amorais, nem boas nem más, sem afinidade com os humanos, tanto podendo ajudá-los como prejudicá-los na sua vida cotidiana.




Nos primeiros tempos de Roma eram os chefes de família que estabeleciam a melhor maneira de fazer a comunicação com tais entidades, para apaziguá-las, como invariavelmente acontecia. Aos poucos, essa função foi passada para um chefe comunitário, o rex e alguns assessores, áugures, adivinhos etc. Nasciam assim institucionalmente os grupos religiosos que assumiram a intermediação das relações da comunidade com tais entidades. Aos poucos, percebeu o “rex”, denominado também pontifex, que a melhor maneira de controlar e operar o sistema religioso montado seria a de antropomorfizar as representações das referidas entidades em operação no cosmos.

A esse sistema religioso se deu o nome de politeísmo. O número de divindades, dependendo do sistema religioso, cresceu bastante, partindo-se da ideia de que havia espaço para todos. Colégios sacerdotais proliferaram descontroladamente, o que evidente causou sérios problemas entre as administrações temporais e as religiosas.

Santo Agostinho, alguns séculos mais tarde, investiria contra essa situação, ridicularizando o grande número de divindades romanas, reverenciadas sobretudo pela gente do campo (pagãos). Dizia ele: Pensam que eles tinham coragem de confiar a um só deus as suas terras? Não! Rusina devia cuidar dos campos, Jugatino dos picos e Colatina do resto dos montes, Valônia dos vales. Segesta tampouco podia proteger sozinha o grão; quando já estava na terra, era Seia quem devia cuidar dele; depois de crescido e pronto para a colheita voltava aos cuidados de Segesta. Prosérpina (fig. dir.) foi por eles eleita a deusa das primeiras folhas e espigas de trigo, Nódoto era o deus dos nós, Volutina, das lâminas. Patelena, das orelhas em formação, Hostilina, das barbas, Flora (fig. esq.), das flores, Lactúrcia, das flores de cor branca, Matuca, das flores que estavam sendo cortadas e Runcina das já cortadas. Seus portais tinham três deuses: Fórculo, das portas; Cardéia, dos gonzos; e Limêncio, das soleiras.


As superstições romanas convergiam em grande parte para o mundo natural. Nos presságios, admitiam catástrofes anunciadas pelo grasnar de corvos e buscavam proteção do azevinho contra o mau-olhado. Ao lado
desta procura de augúrios, havia muita fé, sempre com base na tese da simpatia universal, nos efeitos mágicos de certas plantas e no uso medicinal de certos animais. A coruja, por exemplo, era tida como arauto de desgraças. O poeta Horácio afirmava que as suas penas eram muito usadas em bruxarias. Outros, ainda exemplificando, afirmavam que o ciclame (flor) não só ajudava nos partos como favorecia o despertar da sensualidade e do amor nas mulheres. A águia, pássaro sagrado das legiões romanas, aparecia sempre associado a tempestade e a relâmpagos.

Algumas explicações: embora associado a deuses, Apolo, Palas Athena, Wotan e outros, o corvo, em todas as tradições, é uma ave fúnebre, tida como mensageira da morte. Ligado às trevas, mensageiro do Outro Mundo, o corvo anunciava a morte se grasnasse com insistência perto da casa de alguém. Se porventura pousasse no telhado de uma casa onde se velasse um morto, inevitável era a danação de sua alma.

O azevinho, que traz felicidade e prosperidade, deve os seus poderes à cor verde, que conserva no inverno e que representa a vida eterna. Nesse sentido, aproxima-se muito do agárico ou visco, parasita do carvalho, árvore divina por excelência. Dentre os povos antigos, só os gregos consideravam a coruja positivamente, associando-a à deusa Palas Athena. Os romanos a consideravam uma ave ignóbil e de mau augúrio, mensageira das Parcas, divindades da morte. Virgílio evoca o seu canto fúnebre. Quando uma coruja entrava no templo de Júpiter no Capitólio, os romanos purificavam a cidade com água e enxofre, além de fazer sacrifícios.

O ciclame sempre foi famoso por suas virtudes afrodisíacas, muito usado por isso na fabricação de filtros amorosos. Dormir num quarto com ciclames assegurava um sono tranquilo. Suas folhas, tendo a forma de uma orelha, sempre foram muito usadas para as afecções do ouvido.



A águia sempre fez parte do universo simbólico das divindades maiores que se manifestavam através dos mais poderosos fenômenos atmosféricos.

JÚPITER TONANS

    Júpiter, como Zeus, é o deus do trovão, do relâmpago e do raio e, como tal, das grandes tempestades.

Com tantos deuses para escolher, desenvolveram os romanos inúmeros ritos relacionados com as suas devoções pessoais. Os ritos mais importantes eram naturalmente aqueles dos quais participavam as figuras políticas mais importantes da vida pública nacional. Evidentemente, o que acontecia em Roma era exemplar sob esse ponto de vista. Com o tempo, os colégios sacerdotais adquiriram grande poder político e social, nada se fazendo sem a intervenção de um de seus membros ou de todo o colegiado. Desde declarações de guerra até uma simples viagem familiar, nada na vida romana podia ser empreendido sem a sanção ou o beneplácito divino, sem a intervenção religiosa.


VIRGENS VESTAIS

Havia três instituições religiosas que em Roma deviam receber obrigatoriamente contribuições de todos os cidadãos: o colégio das Virgens Vestais, o órgão público encarregado da guarda dos oráculos sibilinos e o trono imperial na pessoa do imperador, que ostentava o título religioso de pontifex maximus.

Os oráculos sibilinos (esq.) eram constituídos por uma coleção de escritos crípticos, de difícil interpretação, que datavam dos tempos dos etruscos. Seu prestígio religioso e político era enorme. Eram consultados sobre questões nacionais importantes, no caso de calamidades, pestes, fome, situações críticas de guerra etc. A consulta só podia ser feita com a autorização do senado romano e através do mais importante colégio sacerdotal do país.



O conteúdo dos oráculos é para nós um grande mistério, pois nenhum deles se conservou.
No nível popular, sempre houve ao longo dos séculos, no mundo latino, um grande interesse pela leitura e pela invocação das forças do mundo natural, como sons e vozes, forças que muitas vezes nunca haviam recebido nenhuma configuração nem localização precisa. O homem do campo, de modo especial, tinha uma espécie de teogonia que se manifestava pelo rumor do vento na folhagem das árvores, no crepitar do fogo, pelo movimento e pelo comportamento dos animais, para ele sempre sinais de alguma coisa a vir. 

No mundo latino, a mantiké, como aconteceu em outras tradições, ficou também circunscrita à esfera do feminino. Entenda-se: a recepção, ao contrário da ação (masculina), sempre foi privilégio do mundo feminino, pois tem a ver psicologicamente com o úmido e não com o quente, este tipicamente masculino. O úmido favorece os contactos, é impressionável, receptivo, acolhedor. É por esta razão, por exemplo, que Tirésias, para se transformar no maior vidente da mitologia grega, teve que conhecer o feminino, passar pela experiência do conhecimento dos dois sexos. Ao se submeter a provas iniciáticas na juventude, Tirésias escalou o monte Citeron e lá viu duas serpentes em conluio amoroso. Separou-as. Imediatamente, tornou-se mulher. Sete anos mais tarde, voltou à mesma montanha é se deparou com a mesma cena, duas serpentes em conluio amoroso. Matou então o macho, recuperando o seu sexo masculino. 

Ressalte-se com relação a este aspecto da adivinhação que a aristocracia romana sempre revelou muita desconfiança com relação aos carmina oraculares, todos de natureza feminina. Cícero (esq.), por exemplo, entendia que o verbo vaticinor, atus sum, ari significava algo como divagar, falar de modo incoerente. Plínio Velho, o grande enciclopedista romano, entendia o verbo como uma forma de delírio, no sentido de demência.