sábado, 10 de março de 2012

MAIS FLORES

A PEÔNIA




No Ocidente, as sementes e raízes da peônia, desde a antiguidade, têm uma reputação medicinal. É a peônia uma flor do gênero das ranuculáceas (família de plantas venenosas, cujas raízes lembram as patas de uma rã). O nome da flor foi retirado da palavra grega curandeiro (paion). Paion, nome já registrado em Creta, é um dos apelidos do deus Apolo, o médico dos deuses, pai de Asclépio, divindade médica de Epidauro. A peônia é muitas vezes identificada como a "rosa sem espinhos", por sua cor e semelhança.


APOLO


Em grego, ferir é paiein. Apolo é aquele que "como num golpe de mágica" curava as feridas, as doenças. Próximo deste verbo temos em grego pauein, acalmar, suprimir, fazer cessar as moléstias. Com o tempo, o apelido Peã se fixou para Apolo como uma espécie de deus curandeiro, a grande divindade das curas. A palavra serve também para designar um hino de agradecimento a ele pela saúde restaurada. O poeta Píndaro (fig.esq.) é o maior cultor deste gênero poético.





Para Homero, Apolo-Peã foi o deus médico que curou as feridas dos deuses Hades e Ares, agredidos por Hércules. Asclépio, filho de Apolo, também acabou por receber o apelido. Os deuses tinham os seus males (feridas) curados por um bálsamo aplicado por Apolo. O poeta da Ilíada presta grandes homenagens aos poderes herborísticos do deus.



A peônia era considerada por Homero (Ilíada) como a “rainha das ervas”; na poesia bucólica grega (séc.III dC) tinha o mesmo status, sendo aclamada inclusive por sua beleza e poderes curativos, tornando-se, nas mãos de Apolo, uma verdadeira panaceia, aliás, nome de uma das filhas de Asclépio, Panaceia (fig.esq.), a que socorre a todos. As demais filhas de Asclépio eram Áceso, a que cuida de; Iaso, a cura; e Higeia (fig.dir.), a Saúde (há uma bela estátua desta última no MASP, em São Paulo). O nome Asclépio tem relação com a palavra grega, toupeira, animal insetívoro, de olhos muito diminutos, quase cego, corpo alongado, com patas traseiras adaptadas para cavar. Simbolicamente, no mito, a toupeira é um animal de natureza ctônica, que conhece as profundezas da terra. Figuradamente, designa pessoas que trabalham em lugares escuros. Os sacerdotes de Asclépio “desciam” à escuridão do psiquismo dos doentes que procuravam a clínica de Epidauro. Para tanto, sabiam usar com grande habilidade a oniromancia, a técnica de interpretação dos sonhos.


HÉCATE

A peônia era também encontrada nos jardins da deusa  Hécate, que tinha um conhecimento profundo das ervas, o que confirma os seus poderes de maga.        Segundo consta, Hécate, a deusa triforme das encruzilhadas, que vivia no mundo infernal, num palácio ao lado do deus Hades, mantinha um jardim famoso na Cólquida, perto do Mar Negro, cercado por altas muralhas, com o auxílio de Medeia (sobrinha da maga Circe), que às vezes passava por sua filha.

Já entre os judeus, a flor era conhecida por causa de Moisés (fig.esq.), que sabia de suas virtudes antidemoníacas. Conta-se que ele aconselhou sua sogra, perturbada por espíritos infernais, a se dirigir ao pico de uma montanha, onde Deus lhe indicaria lugares em que a peônia crescia.



Dioscórides, médico e botânico grego do séc. I, compilou a primeira descrição sistemática de 579 plantas da Grécia e definiu cerca de 4.700 usos medicinais dessas plantas e o seu modo de ação. Seu trabalho chegou até nós pela tradução latina, De Materia Medica (c.65 dC). Esse trabalho teve importância fundamental para a medicina européia até o séc. XVII. Galeno, nascido em 131 dC, registrou mais tarde as propriedades das plantas descritas por Dioscórides e desenvolveu a concepção humoral do corpo humano.


Dentre as prescrições de Dioscórides, destacamos: para conter o fluxo menstrual, dar, numa taça de vinho, de dez a doze sementes da peônia vermelha; para combater pesadelos, histeria e dores uterinas, elevar a dose, dando-se quinze sementes. Depois do parto, para rápido restabelecimento das mulheres, acrescentar ao vinho raízes secas da planta.

Nos trabalhos de botânica que deixou, Dioscórides fez a descrição de dois tipos de peônia, uma chamada "macho" e outra "fêmea", mencionando que cresciam em zonas montanhosas, mais nos picos, e nos seus contrafortes. Plínio, o Velho, grande naturalista e enciclopedista romano, nos fala que as peônias cresciam nas áreas sombrias das montanhas e que eram um ótimo remédio para pessoas que tinham pesadelos. Já Teofrasto, grego, sécs. IV-III aC, grande botânico, discípulo de Platão e depois de Aristóteles, mencionara o valor medicinal da peônia, desfazendo inclusive a história que herboristas haviam espalhado, a de que sua colheita só deveria ser feita à noite para que fossem evitados ataques de pássaros. A história, evidentemente, procurava evitar que pessoas não iniciadas se entregassem à colheita predatória da flor.

No tempo do imperador Nero, havia um médico, Thessalus, de enorme fama, que freneticamente denunciou todos os seus colegas como incapazes. Foi enterrado na Via Appia. Uma inscrição, em grego, na lápide, o proclamava o “Conquistador dos Doutores”. Thessalus enviou uma carta a Nero (muito chegado a convulsões) e nela discorria sobre a peônia, afirmando que ela crescia e minguava simpaticamente como a Lua; se arrancada na fase crescente, sua raiz não pode ser utilizada para a expulsão dos demônios, agravando ela a moléstia do paciente. Deve-se arrancá-la na fase decrescente lunar.


Astrologicamente ligada ao Sol, a flor e suas raízes, segundo antigas crenças, só podem ser colhidas à noite e, mesmo assim, se um cão a ela estiver amarrado (?), porque ela pode soltar um grito, fatal para quem ouvi-lo. Este cuidado evitará também um possível ataque de aves, no caso o pica-pau, ave de Marte. Esta ave, como se sabe, era muito honrada na Roma antiga, pois alimentou Rômulo e Remo quando o leite da loba se tornou insuficiente.

Na China, como flor nacional, a peônia se liga a significados de riqueza e de honras, tanto pelo seu porte como pela sua cor vermelha; está muito presente em todas as festividades populares, especialmente nas da primavera, em casamentos e nascimentos. Associa-se também ao cinábrio e à fênix, o primeiro, droga alquímica e a outra, ave mítica, ambos trazendo ideia de longevidade, de imortalidade. No Japão, era (é) a peônia símbolo de fertilidade, ligado à alegria e ao casamento.

FÊNIX

Por causa de sua cor avermelhada, que sugere vitalidade, a peônia foi também muito apreciada na Idade Média. Os grânulos e raízes de uma peônia colhida em noite sem Lua e aplicados em compressas sobre os pulsos ou colocados em volta do pescoço, como um colar, eram remédios excelentes contra a epilepsia. Lembre-se que ainda hoje, em alguns países da Europa (no interior da França, por exemplo), um colar feito com sete raízes da planta, colhida na Lua minguante, entre a meia-noite e o nascer do Sol, é considerado um remédio eficaz contra a dança de São Guido ou coreia, um mal nervoso acompanhado de convulsões.

Chamada na Europa de Rosa-de-Nossa Senhora, símbolo da Virgem Maria, a peônia dos jardins (Paeonia Officinalis), sempre foi muito procurada por suas inúmeras virtudes: ajudava muito as crianças quando do aparecimentos dos primeiros dentes; era, para muitos, além do que já se apontou acima, remédio infalível contra a asma e a gota. Recomendava-se também a peônia aos homens do mar, pois ela evitava tempestades.


A PAPOULA



Na Arte, a papoula aparece muito ligada a algumas divindades gregas. A Hipnos, deus do sono, a Morfeu, deus dos sonhos, seu filho, e a Nix, a Noite, a grande divindade primordial. O simbolismo tem clara relação com as propriedades do ópio da papoula, que cresce como flor silvestre na Grécia e no Mediterrâneo oriental.


HIPNOS

Desde a mais remota antiguidade, a papoula era usada para infusões herbáceas. Liga-se também a flor à deusa Deméter (Ceres entre os romanos) e à sua filha Kore (Perséfone, entre os gregos, e Prosérpina, entre os romanos), como símbolo do sono hibernal da vegetação. Numa outra passagem do mito de Deméter, a flor aparece quando Hipnos, o deus do sono, dá à deusa, muito nervosa, devido ao desaparecimento de sua filha, uma beberagem feita com a flor.


DEMÉTER

Lembremos que Kore foi raptada por Hades e arrastada às profundezas infernais quando colhia flores (narcisos para alguns, lírios para outros). Deméter proibiu terminante que flores fossem usadas nos seus cultos, exceção feita às papoulas, pelo motivo acima apontado, que, por isso, crescem livremente no meio dos trigais. Nos mistérios eleusinos, tendo portanto relação com Deméter, a papoula simbolizava a terra, lugar onde se realizavam as transmutações, isto é, nascimento, morte, esquecimento e renascimento. No mundo eslavo, na Rússia, especialmente, diz-se da jovem que se torna mulher e envelhece sem perder a virgindade que ela é como a papoula. Os antigos gregos acreditavam que a presença de papoulas num campo era imprescindível para a prosperidade do vegetal nela plantado.

A papoula é uma flor da família das papaveráceas, cultivadas como ornamentais para o comércio de flores ou pelas sementes, das quais são extraídos óleos e tinturas que encerram alcaloides. Um dos seus nomes é Papaverum somniferum. Aparece solitariamente, sendo chamada popularmente de dormideira. As cultivadas na China e no Irã são muito utilizadas na produção da morfina e da heroína, presentes no ópio. Às vezes, a papoula é chamada de mimo-de-vênus e de rosa-louca (Hibiscus mutabilis). O Cristianismo se apropriou da flor, tornando a papoula vermelha símbolo do sacrifício de Cristo e do sono da morte. No moderno folclore europeu, diz-se que do sangue dos soldados mortos na batalha de Waterloo nasceram as papoulas vermelhas.


                                     
Desde os tempos da chamada civilização creto-micênica, o uso da papoula era conhecido, como podemos perceber em estátuas nas quais elas aparecem fixadas numa espécie de chapéu ou tiara que figuras femininas ostentam. Hipócrates (séc.V aC), o chamado pai da Medicina grega e patrono da arte médica em geral, filho de um sacerdote do deus Asclépio, nascido na ilha de Cós, usava cápsulas de papoula, inclusive seu suco (ópio), como soporífero. O já citado Dioscórides deixou instruções precisas para a fabricação do ópio a partir da flor, como também muitas informações para que seus discípulos se tornassem aptos a distinguir as imitações desta droga, já muito valorizada à época. Segundo ele, uma pílula do tamanho de uma pequena semente, como a da maçã, seria suficiente para aliviar dores, trazer o sono e conforto no caso de males abdominais. Elevadas doses ou descontrole no uso da droga poderiam levar a um estado de torpor e, provavelmente, à morte.



HELENA

Há uma passagem no mito grego em que se registra que Helena deu um tranquilizante que chamava de nepenthes a alguns heróis para que esquecessem os amigos mortos na guerra, a tristeza das perdas. O episodio é narrado na Odisseia, quando Telêmaco foi procurar notícias de seu pai (Ulisses) junto a Menelau, rei de Esparta. Este tranquilizante de Helena, ao que parece, era feito com láudano, uma tintura de ópio. Helena, quando de sua estada no Egito, ao voltar de Troia em companhia do marido para a Grécia, familiarizara-se com a farmacopeia egípcia, a mais rica do mundo antigo. A palavra nepenthe quer dizer em grego "o que dissipa a dor, a aflição", sendo também um epíteto do deus Apolo. Nepenthe (fig.dir.) é ainda o nome de uma planta não muito conhecida na antiguidade, planta da família das nepentáceas, carnívora. Nepenthe, misturada ao vinho, produzia uma bebida que tinha a propriedade de causar euforia, alegria.

Em várias tradições e culturas, a papoula (um pequeno sachê com seus grãos) é usada sob os travesseiros para favorecer um sono tranquilo e sonhos agradáveis. Como estimulante, a papoula serve para desanuviar ambientes, pois proporciona alegria e bom-humor, além de aumentar a criatividade, sendo considerada, por isso, um excelente talismã para escritores e artistas.

Outras culturas, porém, por causa das propriedades narcóticas, consideram a papoula perigosa, já que ela pode eliminar o autocontrole de uma pessoa. Cercada de inúmeras lendas, a papoula, em certas regiões da França (Dinan), conta-se, foi punida por Deus por causa de seu orgulho, inspirado por sua grande beleza. Deus permitiu que o Diabo a tocasse, razão pela qual ela ficou marcada para sempre: são as pequenas manchas negras que aparecem ao fundo de sua corola.


AFRODITE

É de se lembrar que em razão do grande número de suas sementes, a papoula, conhecida por isso como fecunda papavera, aparece associada no mito grego a Afrodite. Como um símbolo de castidade e antiafrosíaca, a flor tem ligação com Ártemis. Ainda com relação ao mito grego, as papoulas, em algumas versões, têm origem na caverna onde vive Hipnos, deus do sono, perto do país dos cimérios, junto ao qual corre o rio Lethe, o rio do esquecimento. O país dos cimérios, os que habitam as trevas, fica nos confins do ocidente, além dos domínios do deus Oceano. É uma região onde a luz não chega, que fica perto do mundo dos mortos. Ulisses teve que atravessá-la para descer ao Hades, quando foi interrogar o vidente Tirésias (fig.esq.), em busca de informações para encontrar o caminho de volta a Ítaca, seu reino.





Os gregos costumavam representar os deuses Hipnos, do Sono, Thanatos, da Morte, e a mãe de ambos, Nix, a Noite, coroados de papoulas ou carregando-as nas mãos. No simbolismo eleusino, a flor era um símbolo do sono e do esquecimento depois da morte que antecedia a ressurreição. É neste sentido que a papoula emblematiza os estados letárgicos, sempre denotando indiferença e ignorância. Como enteógena (que leva a Deus), a papoula é sagrada porque pode proporcionar viagens fora do corpo; como alucinógena, a papoula é maldita porque é muita usada por feiticeiros.