terça-feira, 27 de novembro de 2012

GALAHAD - I

                                        
CARLOS MAGNO

Com o título de canções de gesta aparecem nos séculos seguintes ao reinado de Carlos Magno, na Europa, mais na França, certas produções poéticas, geralmente compostas em versos de dez sílabas, que louvam os feitos maravilhosos e heroicos de certos cavaleiros que teriam vivido nas cortes de tempos passados, de modo especial na carolíngea (sécs. VIII-IX).


Esta literatura é considerada como um sub-gênero da epopeia e tem características formais específicas, usa uma linguagem estereotipada e procura desenvolver  temas ao mesmo tempo
AMOR CORTÊS
religiosos e guerreiros. Gesta vem do latim, gesta, gestorum e tem aqui o sentido de façanhas, feitos heroicos, memoráveis, reais ou imaginários.

Desde o final do séc. XI, a canção de gesta passou a ser salmodiada por um cantor profissional itinerante, diante de um público muito variado que se reunia em lugares de grande concentração popular, praças públicas, feiras, mercados ou lugares de peregrinação. Os auditórios desta literatura, de forte tradição oral, eram entusiastas tanto nas cidades como nas estradas. O ritmo era um dos elementos essenciais destas produções. Os cantores (poetas, menestréis, trovadores) procuravam desenvolver seus temas repetidamente, uma sucessão de clichês muitas vezes, usando técnica semelhante à dos aedos gregos dos tempos de Homero, tudo para facilitar a sua memorização. De outro lado, valendo-se de recursos como os da variação na repetição, uma espécie de recurso retórico muito peculiar, procuravam eles prender a atenção dos auditórios, formados em grande parte por um público iletrado.

Esta literatura, inicialmente voltada para a glorificação dos feitos fundadores da civilização medieval, guerreira, feudal e cristã, foi mudando, a partir do séc. XII, procurando expressões menos rudes, mais elegantes de vida, nas quais as mulheres passavam a ter um papel mais ativo. Surge então a chamada literatura cortês, praticada nas cortes. Dava-se o nome de corte ao entourage de um príncipe; era esse entourage que o ajudava e aconselhava, auxiliando-o a administrar os seus domínios, a fazer justiça e a tomar decisões políticas. Nos séculos XI e XII, as cortes dos príncipes ocidentais constituíram o cenário onde começou a se desenvolver esta literatura cortês.

                                                   
OS VISITANTES DA NOITE
(ARLETTY E ALAIN CUNY)

Os costumes e as maneiras se suavizam nesse período. A nobreza medieval se torna uma classe hereditária cada vez mais fechada. Sob a influência da Igreja, os sentimentos de generosidade e de polidez entram em circulação. Cria-se uma vida mundana, pontuada por festas e cerimônias. As mulheres, as damas, adquirem um papel importante na fixação das novas regras de convivência palaciana, regras que aos poucos vão permeando inclusive a vida das camadas sociais mais baixas.

 As escolas episcopais e monásticas formavam um público de leitores atraídos pelas obras em latim e em francês. Estas obras eram escritas especialmente para uma elite mais civilizada, tendo por tema aventuras sentimentais em meio a ambientes elegantes e luxuosos. Esta literatura tomou o nome, como se disse, de cortês porque se destinava, sobretudo, a um público que frequentava a corte.

No séc. XII, a promoção da mulher é favorecida por uma iniciativa da Igreja: o culto da Virgem Maria passa a ser muito prestigiado nos meios católicos com o objetivo de se realçar, como altamente desejáveis sob o ponto de vista social, modelos espiritualizados de vida. Esses modelos procuravam acima de tudo valorizar o papel da mulher na construção dessa nova ordem, destacando temas como a concepção do mundo e da sociedade articulada por uma relação hierárquica entre carne e espírito, impondo-se este àquela de modo indiscutível; a santidade do casamento; a virgindade da mulher solteira; a atenuação da natureza carnal da mulher, não mais fonte absoluta da luxúria; a desculpabilização da mulher como causadora da expulsão do Paraíso; as limitações eclesiásticas e judiciárias a que as mulheres estavam submetidas eram naturais, pois o homem tinha sido criado à “imagem de Deus” (Gen 1,26) etc.


VIRGEM MARIA

Lembre-se que a Virgem Maria, antes do século IX só tinha uma festa (1º de janeiro); no fim do século XII ela já contava com quatro: Anunciação (25 de março), Assunção (15 de agosto), Natividade (8 de setembro) e Purificação (2 de fevereiro). Entre os séculos XIV e XV, acrescentar-se-ão Visitação, Entrada no Templo, Dores de Maria e finalmente Concepção. Com essa promoção, a Virgem Maria se “individualiza” e adquire autonomia com relação às questões ligadas ao seu Filho, apesar de todas as discussões que se seguiram nos meios cristãos sobre essa “independência”, embora sempre garantida a pureza da mãe de Deus, sempre declarada como virgem ante partum, in partu et post partum.

                                           
LA DAME À LA LICORNE

Uma das melhores imagens sobre o papel da mulher nessa nova ordem apareceu entre os séculos XV e XVI. Refiro-me ao conjunto de seis tapeçarias que tem por título La Dame à la Licorne, hoje no Musée de Cluny, em Paris. Em cada tapeçaria, sobre um fundo ornado de flores (millefleurs) e animais, uma jovem mulher é representada cercada de emblemas heráldicos, notadamente um leão e um unicórnio. O conjunto forma uma alegoria dos cinco sentidos; na sexta tapeçaria aparece a frase À mon seul désir, ou seja Segundo o meu livre-arbítrio, ou ainda Sem submissão aos sentidos.


HISTORIA REGNUM
Dentro da literatura cortês, muito variada, há um tópico temático que recebeu o nome de "Matéria Bretã", de inspiração celta, mais exatamente a lenda do rei Arthur. Em 1.135, Geoffroi de Monmouth publicou a sua "História Regnum Britanniae" (História dos Reis da Bretanha), em latim. Esta obra foi traduzida livremente, em octassílabos, para a rainha Alienor, pelo poeta anglo-normando Wace. Revelava-se por ela, para os franceses, a lenda do rei Arthur, chefe dos celtas, que comandou a resistência contra a invasão dos saxões no séc. VI.

A figura de Arthur se situa entre a fronteira do real e do imaginário. Sua identidade histórica é a de um chefe militar que organizou no século VI a luta da nação bretã contra o invasor saxão. A literatura vai lhe dar uma segunda existência e fazer dele um rei mítico, um soberano ideal, ao mesmo tempo modelo e representação de todas as virtudes cavaleirescas da Idade Média.


TÁVOLA REDONDA

A história de Arthur se insere nas tradições da mitologia dos celtas e fala de sua volta, do seu retorno maravilhoso. As lendas trataram Arthur como um rei poderoso e refinado, que mantinha uma corte luxuosa, dela fazendo parte, como mais próximos, os valentes cavaleiros da Távola Redonda. Estes cavaleiros sentavam-se à grande mesa circular para evitar disputas quanto às preferências reais. O cenário das aventuras de Arthur e de seus cavaleiros era a Armórica (nome da Bretanha antes do séc. VII).

                                               
ARMÓRICA


A crônica de Arthur foi cantada por bardos galeses e por diversos outros (Nennius, Monmouth), fixando-se na França pela obra de Wace e principalmente pela de Chrétien de Troyes (1.135-1.183), o criador do romance moderno, centrada esta última no ciclo do Graal. No século XIII, todas estas obras foram colocadas em prosa sob o título de Lancelot em Prosa ou Corpus Lancelot-Graal, compreendendo cinco partes: A História do Santo Graal, A História do Mago Merlin, O Livro de Lancelot do Lago, A Demanda do Santo Graal e A Morte do Rei Arthur.


O Graal ou Santo Graal (gradalis em latim é um prato largo e cavo, uma espécie de terrina, onde se colocam alimentos de forma gradual; em grego, temos “krater”, que deu a forma latina cratale, cratalis) seria um cálice muito grande, de que Jesus Cristo teria se servido na última ceia com os discípulos e no qual José de Arimateia teria recolhido o sangue e a água provenientes das chagas do Crucificado quando de sua Paixão. Segundo lendas bretãs medievais, o Graal teria sido levado para a Bretanha (atual Inglaterra) no ano de 64 dC e depositado numa capela dentro de um bosque. O tema do graal está na base de muitas lendas, inspirando os romances do rei Arthur e dos seus cavaleiros.

Os cavaleiros de Arthur se empenharão na busca do precioso cálice, que tomará um sentido místico e eucarístico nos romances. Com efeito, o Graal é um símbolo da vida mística, de aspiração à perfeição cristã que leva a Deus. A cavalaria, que antes estivera a serviço do rei ou da dama, de inspiração terrestre, militar, colonizadora, estava agora a serviço do céu, uma cavalaria celeste.

Dentre os mais hábeis cavaleiros na busca do Graal destacaram-se Lancelot e Perceval. Contudo, por viverem mundanamente, não conquistarão o precioso tesouro. Foi Galahad ou Galaaz, filho de Lancelot do Lago, cavaleiro puro, livre de toda tentação terrestre, que se aproximou do objeto maravilhoso, antes de deixar a terra, contemplando-o num êxtase que representava a felicidade mística (no século XIX, a lenda do Graal foi retomada por Richard Wagner para a sua ópera Parsifal).


                                
LANCELOT

Para chegar ao Graal, à plenitude interior, era preciso, diz a história, ir além de Lancelot ou de Perceval. O Graal equivale ao caldeirão da mitologia celta, que tanto proporcionava de modo inesgotável alimento para o corpo como iluminava interiormente. Tanto o Graal como o caldeirão celta equivalem ao chifre da abundância, a cornucópia, como a encontramos na mitologia grega e em outras tradições com o mesmo sentido. É uma conquista que não está ligada a conquistas externas, mundanas, pelas armas, mas, sim, por uma radical transformação interior, do espírito e do coração. A história do Santo Graal, lembremos, ganha outra dimensão, ampliando-se bastante o seu alcance histórico e psicológico, quando estudada à luz da Astrologia (signo de Virgem).

                                       
CONSTELAÇÃO DE VIRGEM


É a partir de Virgem, signo-recipiente do ego nascido no signo anterior, Leão, que devemos fazer a opção: buscar um caminho evolutivo, indo em direção do terceiro quadrante zodiacal, que se abre
ESPADA DE GALAHA
com o signo de Libra, ou se regredimos, ficando à mercê das várias pressões instintivas, representadas pelos signos anteriores (Câncer, Gêmeos, Touro e Áries). A purificação do ego leonino em Virgem pede, para a grande aventura cavaleiresca, que, feitos os votos de Galahad, o “homem ideal” entre na posse de suas três virtudes: coragem, fidelidade e castidade.

Galahad é nome que vem do hebraico, galead, testemunho, de onde chega ao latim bíblico, Galaad (Gênesis XXXI, 47-48). Galahad, na história, era descrito como um cavaleiro extremamente delicado, solícito, o que menos tinha a ver com o sexo  feminino. Sua pureza e sua quase que total ingenuidade é que lhe deram fama.

GALAHAD
Lendas celtas revelam que, quando a Távola Redonda foi instituída, um lugar foi mantido deliberadamente vazio. Esse lugar era chamado de “Siège Dangereux” (assento perigoso), destinado ao cavaleiro que um dia encontrasse o Graal. Este cavaleiro deveria possuir uma inigualável pureza e, para provar seu valor, deveria retirar uma espada de uma pedra onde fora cravada (este episódio é uma transposição do mesmo acontecimento que encontramos no mito de Teseu, famoso herói grego). Vários cavaleiros do cortejo de Arthur, incluindo Gawain (Gauvain) e Perceval, tentaram em vão retirar a espada. Lancelot, ciente de sua adúltera relação com a rainha Guinevere, para não desvalorizar a prova, declinará de tentá-la.

                                            
CAMELOT


Ao chegar a Camelot, Galahad, filho de Lancelot e de Elaine, lançou-se à prova, realizando-a com sucesso. É depois deste acontecimento que os cavaleiros vão procurar o Graal, sendo Galahad o primeiro a dele se aproximar, não podendo, por isso, retornar mais ao mundo dos homens. Sua alma foi transportada por anjos para os céus, para onde também foi o Graal, levado da terra misteriosamente por mãos que das nuvens desceram.

Através dos séculos, a imagem de Sir Galahad, como a de um cavaleiro cristão puro e ascético, foi suplantada pela de um cavaleiro cortês, um perfeito “gentilhomme”. Alguns estudiosos que especularam sobre os romances do Graal chegaram a sugerir que isto se deveria provavelmente a uma certa homofonia entre Galahad e a palavra galant em francês ou gallant, graceful em inglês, (galante, gracioso, gentil, valente, garboso). É com este sentido que Galahad “vive” na língua inglesa como um termo que descreve um modelo de cavalheirismo e de cortesia com relação ao sexo oposto, um perfeito gentleman.

O ideal de espiritualização da cavalaria, que Galahad encarnou, mais do que qualquer outro cavaleiro,
GALAHAD - ILUMINURA
se perdeu. O que ele passou a representar no ideário anglo-saxônico está bem longe daquele cavaleiro que era, antes de tudo, o mestre da sua montaria. O cavaleiro que, ao mesmo tempo em que servia a sua religião e o seu rei, que participava das cerimônias da corte ou que poderia se devotar a uma dama, nunca deixava de interiorizar os seus combates. Talvez o que tenha contribuído bastante para esta descaracterização tenham sido as palavras do velho rei Merdrain, ao abraçar o nosso herói: “Galahad, preposto divino, lídimo cavaleiro por quem tanto esperei, abraça- me e permite que eu repouse sob tua proteção, a fim de que eu possa morrer entre teus braços; pois tu és virgem e mais puro que qualquer outro cavaleiro, tanto quanto a flor de lis, signo de virgindade, é mais branca que qualquer outra flor. És um lírio de virgindade, és uma rosa ereta, uma flor de boa virtude e da cor do fogo, o fogo do Espírito-Santo que tão bem te ilumina; eis que minha carne, envelhecida e morta, já se sente toda renovada.” (A Demanda do Santo Graal).

Galahad é também, sem dúvida, um símbolo que atualiza o grande modelo que é o deus Balder, dos povos nórdicos, num outro contexto. De uma santidade espantosa, Balder é o melhor de todas as divindades escandinavo-germânicas, todos o louvam; sua aparência é tão bela que ele se torna luminoso, sendo comparado, por isso, às brancas flores dos campos, como acontece com Galahad. Balder é, dentre todos os deuses, o mais clemente, possuindo todas as virtudes: sabedoria, sensibilidade e bondade. Galahad, como Balder, ignora os vícios, seus pensamentos são sempre sublimes, suas palavras são sempre justas.




O cinema vem, há muito, explorando a literatura cortês: Os Visitantes da Noite (Marcel Carné, 1942), Lancelot du Lac (Robert Bresson, 1974), Em busca de Santo Graal (Monty Python, 1975) e Excalibur (John Boorman, 1981) são, dentre muitos outros, filmes realizados sobre os Cavaleiros da Távola Redonda, o Graal, os menestréis etc. Os melhores deles, considerados inclusive outros que se fizeram posteriormente, continuam sendo os de Marcel Carné e de Robert Bresson, obras maiores desses grandes cineastas franceses.