segunda-feira, 29 de novembro de 2010

VISÕES DO MITO


ACADEMIA - PLATÃO E ARISTÓTELES

No geral, atribui-se à palavra mito o sentido de invenção, ficção, fábula, ilusão. O mito é visto também como uma representação idealizada de estados pelos quais a humanidade passou. Às vezes, uma ilustração de acontecimentos importantes na história da humanidade dos quais participaram personagens sobrenaturais, seres divinos, semidivinos ou humanos, tudo produzido pela imaginação coletiva, dentro de uma longa tradição oral ou escrita. Registrados, os mitos, além de seu aspecto religioso, são incorporados à história da literatura das culturas em que aparecem. Seu caráter oral pode ser notado se formos à etimologia da palavra, relacionada com o verbo mytheo, que significa falar, conversar, contar, anunciar. É possível ainda relacioná-la com o verbo myo, fechar-se, calar, manter-se silencioso, os olhos cerrados. Mito significou, assim, inicialmente, palavra. Depois, quando a ideia de Logos se fixou como conceito que definia o pensamento racional, mito adquiriu o sentido de algo não racional, discurso imaginário, conto fabuloso. Desse contexto saiu a palavra mitômano, pessoa dada a fantasias, mentirosa. Mania em grego quer dizer loucura, obsessão, paixão. Em português, temos o pospositivo mano, que tem conexão com a palavra grega. A Filosofia se coloca contra o mito ao criar a oposição Mito-Logos (Ratio para os latinos), entendendo o primeiro como ilusão, narrativa inverídica, inventada, podendo ser até indício de distúrbio mental. Logos será, então, o relato racional, analítico, verdadeiro.


Os antigos gregos viam no Mito aquilo que chamavam de hyponoia, um sentido subjacente, encoberto. Hyponoia em grego é suposição, conjectura, e, também, significação simbólica. Muitos gregos antigos viam também os mitos como alegorias. Uma expressão, no âmbito artístico ou intelectual, de pensamentos, idéias ou qualidades sob forma figurada, em que cada elemento funcionaria como disfarce dos elementos da ideia representada. A alegoria foi aplicada metodicamente, por exemplo, por pré-socráticos e estoicos na interpretação de textos homéricos para a descoberta de idéias, pensamentos ou concepções filosóficas neles embutidos.


Allos é outro e egor (egorein, discurso público) traz a ideia de se falar em público com o sentido de se dizer uma coisa, mas o de estar dizendo, na realidade, uma outra. Isto é, dizer outra coisa além do sentido literal do discurso. O termo alegoria substituiu, entre os gregos, na era cristã, na época de Plutarco (46-120), o termo hyponoia.


Desde então, Mitologia e alegoria se aproximaram bastante, tomando esta última o sentido de uma operação racional pela qual se estabelece a figuração sob uma forma humana, animal, vegetal, híbrida, animada ou inanimada de um outro ser real ou abstrato ou de um conceito qualquer. Pode-se, assim, por exemplo, representar a vitória (Nike) por uma mulher alada; um chifre (cornucópia) representará a prosperidade ou a abundância; uma águia, a ave que voa mais alto e que pode olhar o Sol sem baixar os olhos representará o maior dos deuses, Zeus; um tridente será o símbolo de Poseidon, deus do elemento líquido etc.


Com o tempo, os mitos começaram a fazer parte da Etnologia, da Sociologia, da História, usados por elas como tradição sagrada, modelo exemplar, revelação primordial, descrição das origens. Quanto à História das Religiões, será preciso uma referência mais detalhada. Inicialmente, devemos lembrar que as religiões vencedoras, especialmente a tradição judaico-cristã, consideram como mito as elaborações religiosas que não são confirmadas por seus livros sagrados. O sentido que dão ao Mito é o que o pensamento racional lhe dá, mentira, invenção, fantasia. As religiões “oficiais” também se colocam em oposição ao Mito na medida em que o consideram de tendências imanentistas, já que elas são transcendentalistas. Imanente é o que está contido intrinsecamente na natureza de um ser, de uma experiência, de um conceito. É imanente o que permanece no âmbito da experiência do possível, referente a uma dimensão concreta, material, possível, empírica. Imanente é o que não está além, numa realidade exterior. Já transcendente é o que ultrapassa os dados oferecidos pela experiência. As religiões da transcendência põem o divino fora da existência, Deus separado da criação, além do universo e dos seres criados por ele. Transcendência é sobrepujamento, superioridade, é o que excede os limites normais. As religiões da imanência são aquelas que vêem o divino dentro da existência, como, por exemplo, a mitologia grega.

Quanto aos gregos, o que nos fica é que esvaziaram progressivamente os seus mitos de todo valor religioso transcendente e metafísico. As religiões da imanência são as religiões do eterno retorno, politeístas; suas imagens falam de morte e renascimento, tendo por base os ciclos do mundo vegetal; seus deuses participam do humano, tipificando modelos de comportamento para o bem ou para o mal. As da transcendência, monoteístas, apontam para uma vida depois da morte, para uma bem-aventurança da comunhão com Deus, que está fora da existência, dela não participando; Deus criou o mundo distinto de si mesmo, tendo como atributos a eternidade, a imutabilidade, a onisciência e a onipotência.

Nas religiões da imanência o mito é vivo e, como tal, fornece modelos para a conduta humana, dando-lhe um sentido e valores. Os deuses gregos, por exemplo, serão, nessa perspectiva, modelos de comportamento. Hermes tanto pode ser visto como símbolo da inteligência realizadora humana como poderá representar as perversões desta inteligência, encontradas em expressões demagógicas, maliciosas, trapaceiras ou mentirosas. Zeus, divindade da qual dependem todas as leis físicas, sociais e morais, poderá ser considerado como fonte da verdade, mas poderá ser considerado também como símbolo do autocratismo.




Outro aspecto importante a destacar é que os mitos, os gregos, principalmente, para a cultura ocidental, estão na base daquilo que chamamos de arquétipos, já que dão a eles o seu revestimento primário, a sua roupagem. A teoria dos arquétipos entra em circulação no mundo ocidental modernamente através dos trabalhos de Jung (1875-1971), que os vê como imagens primordiais, formando o conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, compartilhado por toda a humanidade, presentes nos mitos e lendas dos povos ou no imaginário individual, aparecendo em sonhos, delírios ou manifestações artísticas. Jung recolheu o conceito de arquétipo no Hermetismo greco-egípcio e no De divinis nominibus, de Dionísio Areopagita. O termo aparece também em Philon, o Judeu, em Irineu, em Santo Agostinho e em Platão.

O mundo dos arquétipos é sombrio, insondável e a ele não se tem acesso direto. Só o percebemos por via indireta, através de sua manifestação no nosso consciente. Os arquétipos são possibilidades latentes, tanto como fatores históricos ou biológicos, e é através deles que podemos relacionar nossa vida anímica com os mitos. Em função da vida que levamos, conforme as condições existentes internas e externas de tempo, lugar e espaço, as imagens arquetípicas são “apresentadas” ao consciente. O inconsciente coletivo é o conjunto de todos os arquétipos que nele se agrupam, como sedimentos, sempre ativados e propagados pela tradição, migrando de um lado para outro, manifestando-se muitas vezes espontaneamente. O inconsciente coletivo distingue-se do inconsciente pessoal; seus conteúdos nunca estiveram na consciência, devendo-se a sua existência à hereditariedade. Mitologicamente, os arquétipos aparecem como temas, idéias elementares, representações de caráter coletivo, não-pessoal.

As imagens arquetípicas aparecem historicamente neste ou naquele período, tomando a forma de símbolos, formas que lhes são dadas pelo consciente, que os atualiza, tornando-os, assim, perceptíveis. O arquétipo nunca será apreendido diretamente, pois, mas será sempre percebido através do símbolo que o reveste, símbolo este produzido ao longo da história do homem, neste ou naquele período. Todo arquétipo (etimologicamente, algo forjado, modelado, há muito tempo e que, por isso, tem poder) é, potencialmente, sempre um símbolo. Quanto mais individualizado o arquétipo, quanto mais abstrato e singular for, menos universal. O arquétipo materno, por exemplo, pode se apresentar simbolicamente, conforme a época, como caverna, goela, fada, bruxa, baleia etc. Quanto mais profundo, fisiológico e instintivo for o arquétipo, mais universal e coletivo será o símbolo. Os arquétipos que geram símbolos coletivos são fornecidos, sobretudo, pelos mitos. Para a cultura ocidental, a mitologia grega nos dá o revestimento básico dos arquétipos. As imagens míticas, principalmente, como arquétipos do inconsciente coletivo, podem atuar sobre a vida consciente, despojando-a de sua autonomia, gerando fenômenos de massificação, de alienação etc.

No ocidente, as explorações da teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos omitem por razões várias, que julgamos inoportuno aqui discuti-las, a prioridade do Hinduísmo no que diz respeito à sua formulação. Evidentemente, as elaborações hinduístas não se estruturam como as teses de Jung ou de outros estudiosos que no Ocidente se voltaram para a teoria dos arquétipos, nem têm a mesma apresentação, mas não se pode deixar de reconhecer a semelhança que a teoria jungiana tem com as formulações hinduístas. Em alguns Upanishads (Mundaka, Brihad-aranyaka, Taittiriya), encontramos referências a um substrato último da consciência, uma imensidão informal, experimentada ora como vazio, ora como silêncio, ora como obscuridade, considerada como região sem limites que se estende além da vida consciente. É chamada de atma com o significado, no Vedismo, inicialmente, de alma, elemento imaterial da individualidade. Posteriormente, no Hinduísmo, toma o sentido de alma profunda (atman), identificada com o Brahman, enquanto subjacente ao eu empírico, reservando-se a designação de atma àquilo que se torna puramente individual.

O atma se situa no fundo do ser, sendo comum a todos os seres. Os textos o descrevem como uma espécie de oceano informal de onde poderão emergir aspectos da natureza particularizada de cada ser. Esta imensidade é, no seu todo, impensável, distante, mas poderá estar muito próxima. Este eu profundo não é isto ou aquilo, dizem os textos, é impalpável, não podendo ser destruído. Como um oceano é uma unidade, um continuum indivisível que liga e é comum a todos os seres. O eu pessoal é um nó temporário, um ponto particular da consciência. O Hinduísmo fala de um ponto (bindu) onde a alma individual (atma) encontra a alma universal (atman).




COMO ESTUDAR OS MITOS



A palavra mitologia pode designar não só o conjunto de mitos e lendas relativos a uma religião como também o seu estudo metódico e comparado com o objetivo de se lhes determinar a origem, o sentido, a evolução e as suas respectivas relações. Neste ciclo, nos limitaremos mais a uma visão de conjunto do que à apresentação dos elementos que possam servir de base para um estudo comparativo. A mitologia se apresenta para nós como uma das primeiras manifestações do homem que procura dar um sentido à sua vida, o homem que pensa diante do espetáculo do mundo. As suas primeiras produções vão do temor ao terror, passando pelo respeito, pela admiração e pelo agradecimento. Não conseguindo captar o sentido do que tem diante dos olhos, o homem primitivo procura acalmar as forças naturais que estão à sua volta, atuantes incessantemente, inexplicáveis. O mito é a primeira representação de tudo isso, origem de todas as religiões, da literatura, de toda a poesia, da arte.

A interpretação dos mitos é matéria bastante complexa. Muitas propostas foram apresentadas, todas com a sua “verdade”. Cada uma delas destacando um ou mais aspectos interessantes, mas deixando muito a desejar ao pretender tornar-se a única e verdadeira forma de interpretação. Dentre as principais “escolas” de interpretação dos mitos, destacamos: a chamada escola bíblica, defendida por Banier (abade), que vê nos mitos (pagãos, não cristãos) formas desfiguradas da revelação divina; o evemerismo (Evêmero da Messina), que entende os mitos como recordação de acontecimentos históricos; a escola simbólica, proposta pelo platonismo na antiguidade e retomada nos tempos modernos; a escola filológica (Max Müller, Kuhn, Bréal), achando que os mitos podem ser explicados por fenômenos linguísticos; a escola religiosa (Bérard), que explica os mitos como produto de fórmulas rituais e cerimônias; a escola antropológica de Lang que, a partir do absurdo e do aspecto selvagem dos mitos, os vê como produzidos em períodos de barbárie total; a escola psicológica (Regnaud), para a qual os mitos são produto de uma atividade psicológica idêntica à nossa, do homem de hoje; a escola de Frazer (O Ramo de Ouro), que associa a origem dos mitos a um totemismo primitivo.

Qualquer que seja o ponto de vista adotado, o que se coloca inicialmente é que os mitos têm uma forte ligação com os fenômenos cósmicos e naturais e com as primeiras elaborações religiosas. O homem primitivo se via dentro de uma totalidade de caráter sobrenatural. Sua primeira relação com tudo que o cercava, principalmente os acontecimentos celestes, o movimento dos astros, foi afetiva, pois sua vida parecia depender senão totalmente pelo menos em grande parte do céu. Ele viu por trás dos fenômenos celestes, mesmo nos mais simples, forças sobrenaturais atuando. O céu era bom, o céu era mau. Ele começou então a representar tudo isto, adotando comportamentos que, a seu ver, poderiam reverter ou inibir o que o céu mandava de negativo, aplacando-o, diminuindo a sua inquietação, o seu temor. Por outro lado, aumentar o caráter propiciatório da atividade celeste, quando suas manifestações eram favoráveis.

Os mitos têm um modelo estrutural e uma linguagem próprios. Procuram ordenar o mundo, cosmizando-o Sua elaboração, entretanto, faz parte de um período pré-lógico. Sua linguagem é altamente metafórica, admitindo vários níveis de leitura, tendo, por isso, um caráter polissêmico. Sua riqueza analógica é imensa, pois, ao condensar significados, atuam tanto sincrônica quanto diacronicamente. O discurso mítico, elaborado com palavras que nunca deixam de perder seus significados antiquíssimos, primordiais, se torna suscetível de adquirir significados novos pelo uso, pela sua atualização.

As primeiras indagações desse homem pré-lógico se voltaram, também, para a origem de tudo que o cercava. Nasciam os mitos cosmogônicos, meteorológicos, mitos sobre a invenção do fogo que ele via no céu e na terra, mitos sobre o seu aparecimento e sua morte, histórias que são encontradas de forma mais ou menos idêntica em todas as latitudes. Para dominar as potências naturais, o homem primitivo se valeu de certas práticas e atitudes de caráter talvez mais mágico que religioso. Estas práticas e atitudes foram, contudo, sendo ritualizadas, sacralizadas, tornando-se solenes, categóricas, pois era preciso usar fórmulas certas, fazer oferendas corretas. Os cultos se divinizavam, nasciam os mitos, perdendo-se muitas vezes o seu sentido institucional primitivo.

Ao gerar cultos e ritos, os mitos constituíram-se em paradigmas de ação, em modos de ser. Seus personagens acabaram por tipificar comportamentos, fixando arquétipos, atualizados historicamente por símbolos. Neste sentido, os mitos vão além do visível ao apontar para um real sempre maior do que aquele que conseguimos apreender pelos nossos sentidos e pela nossa razão. Eles nos permitem entender o visível como uma expressão do invisível, sendo aquele um meio de acesso à realidade total.




As primeiras fabulações míticas têm, no seu todo, dois aspectos principais, um meteorológico e outro agrário, isto é, céu e terra. Nas primeiras construções míticas predomina a imaginação afetiva, de caráter utilitário (forças benéficas, luz, e forças maléficas, trevas). Equinócios, solstícios, nascente, poente, lua cheia, lua nova, nascimento, vida, morte, teofanias, epifanias, hierofanias... Aos poucos, tudo isso vai sendo expresso, ocorre a antropomorfização das forças que atuam no cosmos, os personagens ganham atributos, caracterizações, irradiação, ampliação, complexidade. Vem desses primeiros tempos a ideia de que as lutas nos céus se assemelham aos conflitos que o ser humano experimenta intrapsiquicamente. Ficou também evidente que a função consciente do homem se ligava à terra, que a função supraconsciente tinha relação com o céu iluminado e que a função subconsciente tinha analogia com o interior da terra (subterrâneos, cavernas, grutas, profundezas do mar). Mais tarde, tudo isto seria entendido assim: a função consciente (intelecto) estaria relacionada com o real, podendo levar o homem do utilitário e mais urgente ao distante e superior, isto é, ao espiritual (supraconsciente). Obstáculos a esta caminhada estariam no subconsciente (emoção, imaginação), função involutiva, regressiva, uma volta ao pré-consciente. A busca evolutiva, do consciente ao supraconsciente, poderia se deformar, adquirir formas extravagantes, doentias, devido a ameaças tanto internas quanto externas.


O PROBLEMA DO MITO NAS SOCIEDADES ARCAICAS

A importância do problema religioso e consequentemente dos mitos se coloca certamente para o ser humano desde o momento em que ele, ao longo da sua história, chega ao período em que ocorre a superação do seu estado de primata (ordem dos mamíferos que compreende o homem, o macaco, os lêmures; primatas africanos, arborícolas, corpo e membro esguios, pelagem, focinho longo). Os primatas (os primeiros) são arborícolas e onívoros, de cérebro grande e diferenciado, olhos bem desenvolvidos, voltados para a frente, visão binocular, cinco dedos, o primeiro oponível aos demais. É neste período em que se dá o que chamamos de hominização que os primatas adquirem características humanas (mamífero superior da ordem dos primatas). Esta hominização gera o homo sapiens, de cérebro volumoso, posição ereta, mãos preênseis, faculdade inteligente de abstração e de generalização, capacidade de produção de uma linguagem articulada. Além de sapiens, ele é habilis e erectus. Até onde conseguimos chegar, esta figura teria se fixado por volta de 100.000 anos atrás, segundos pesquisas feitas da Europa (homem de Neandertal, Alemanha) e na Ásia.

O homem, para se manter em pé, tem obrigatoriamente que ficar em estado de vigília, desperto, atento, vigilante. Essa postura o obrigou a organizar o espaço de modo diferente dos pré-hominídios. Quatro direções são estabelecidas a partir de um centro, uma à frente e outra para trás e mais duas laterais, à direita e à esquerda; duas mais são criadas, uma acima de sua cabeça e outra dos seus pés para baixo. O espaço se organizava a partir do corpo humano. O homem procurava controlar o espaço no qual se via lançado, um espaço ilimitado, desconhecido, que o enchia de medo, de terror. Essa experiência se torna fundamental, criar a noção de um centro em torno do qual tudo se organiza (visão antropocêntrica). Esse espaço será dividido, repartido, delimitado. Nele o homem agirá. Os pontos de referência do seu espaço-tempo ele os obtêm a partir do movimento dos astros no céu. É o fenômeno da cosmização. Ele vai tomando posse da terra em nome do céu, de onde parece vir o seu princípio de animação.

Sua atividade coletora e sua vida nômade, em busca de melhores condições climáticas, duram milênios, embora, quando de sua hominização, já começasse ele a fabricar instrumentos e utensílios de modo a poder intervir na terra, fixar-se nela. Esta fase agrícola só se definirá melhor num período posterior. A fabricação de instrumentos, contudo, é um dos dados que temos mais concretamente para distinguir, com clareza, o aparecimento do paleantropídeo (palaiòs, velho, e anthropos, homem), bem diferente do pitecantropo (pithékion, pequeno macaco), macaco antropoide encontrado na ilha de Java, precursor do homem (pitecismo, semelhança ao macaco). O homem dava os seus primeiros passos na tecnologia, o cérebro se desenvolvia.



Dentre as conquistas tecnológicas do homem, a mais importante foi, sem dúvida, a do fogo, que o homem aprendeu a produzir, a conservar e a transportar. Esta conquista marca definitivamente a separação do homem do mundo animal. Com o fogo o homem inventa, cria, transforma, se socializa. Segundo alguns documentos, essa conquista teria ocorrido a uns 600.000 anos atrás. Esse ser se descobre então dotado não só de inteligência, mas de imaginação também. Uma das principais leis do mundo animal, a de que era preciso matar para sobreviver, ganhava agora nova expressão. O homem supera definitivamente, então, os seus ancestrais quando se transforma em carnívoro. Durante alguns milhões de anos, os paleantropídeos se entregaram à caça, já que, diante das novas necessidades, a coleta de frutos, raízes, moluscos etc., se tornava insuficiente para garantir a sobrevivência da nova espécie.

É durante esse período de passagem do pitecantropo ao paleantropídeo que a caça determina não só a divisão do trabalho em função do sexo mas reforça também o processo de hominização. As relações entre o homem que abate a sua caça ou, mais tarde, o animal domesticado, cria aquilo que se denominou “solidariedade mística” entre o caçador e as suas vítimas através do sangue derramado. O sangue, veículo da vida, lembra o fogo, o calor, o vermelho. Instala-se a noção de sacrifício, ligada a uma ideia de troca.

Há muitas divergências entre os estudiosos quanto à existência ou não de uma religião, de mitos, nesse mundo tão distante de nós. É a partir do Paleolítico, o chamado período da pedra lascada (1 milhão de anos atrás ?), que a “documentação” fica mais precisa. As atividades humanas já parecem mais definidas. Na última fase do Paleolítico, a superior, a caça completa a coleta de frutos e sementes e o osso aparece como material usado pelo homem para a fabricação dos seus dois grandes instrumentos da época, a ponta e o raspador.

Dentre os “documentos” desses tempos destacamos as ossadas humanas, ferramentas de pedra, pigmentos vermelhos, restos de túmulos, pinturas rupestres, estatuetas de osso e pedra etc. Ao lado do valor puramente utilitário que esses “documentos” revelam, nota-se já uma certa preocupação “religiosa”, um valor mítico-religioso, embora ainda nada se apresentasse sistematizado, como se veria no período seguinte, o Neolítico.

A ideologia religiosa desse mundo apresenta como aspectos salientes, além de outros, a crença que o homem pode se transformar em animal e vice-versa. Importante também a crença em entidades (guardiãs) que protegeriam a caça e os caçadores. Outro destaque é a crença numa vida depois da morte, confirmada pelo sepultamento dos corpos numa posição curvada, fetal, e pelos objetos que o morto levava. Muito numerosas e importantes, sem dúvida, são as pinturas rupestres, encontradas em várias partes do mundo. Geralmente, as pinturas se encontram longe da entrada, o que permite supor a sacralização do recinto como uma espécie de santuário.


Venus de Willendorf


Outro ponto a salientar: a descoberta de imagens femininas, em períodos mais recentes, permite a conclusão, ainda que não aceita unanimemente, de que elas representariam uma espécie de contraponto do universo masculino, lembrando uma certa ordem cósmica, o mistério da criação e as regenerações cíclicas periódicas do mundo natural. Essas figuras, estilizadas, se caracterizam por formas exageradas, abdômen e nádegas (esteatopígias), principalmente, cabeça desprovida de traços distintivos. Preconceituosamente, essas estatuetas foram chamadas de Vênus mais o nome do lugar em que foram descobertas pelos arqueólogos (Vênus de Lespugue, de Willendorf). Em muitas destas estátuas e nas inscrições da época notam-se motivos geométricos, dentre eles a suástica.


Mais ainda: hoje, pelas pesquisas que continuam a ser feitas, é possível admitir que as populações do Paleolítico já haviam elaborado algo semelhante aos mitos cosmogônicos e escatológicos na forma em que se fixariam mais tarde; possuíam também mitos relacionados com a origem do homem, da caça, mitos que falavam da origem dos animais e da ascensão do homem ao céu, de vôos mágicos (xamanismo) etc.

Entre o Paleolítico e o Neolítico temos o Mesolítico, caracterizado pela mudança do clima glacial para pós-glacial. Aos poucos, com a substituição das estepes por prados e bosques, deu-se início à economia produtiva, de base agrícola, completada pela crescente domesticação dos animais, por volta de 8.000 aC. Os recursos aumentam e se diversificam. Ao lado da caça, os produtos da pesca e da apanha de moluscos e caracóis adquirem grande importância. Essas atividades levam as populações a se fixar no litoral, na beira de lagos, de rios e pântanos; a cabana substitui a morada nas cavernas e reentrâncias das rochas. Com isto, uma grande expansão populacional é registrada, desenvolve-se o comércio, aceleram-se as trocas e movimentos populacionais.

É neste período Mesolítico que a agricultura (plantas alimentares, cultura de gramíneas, cultura de cereais) e o pastoreio se definem, ao lado de outras atividades importantes: fabricação de arcos, flechas, cordas, cerâmica, redes, anzóis, embarcações, ferramentas várias, roupas, toldos etc. Toda esta atividade tem uma carga simbólica muito grande, cheia de significados profundos. Ao tomar posse da terra, nela se fixando como agricultor, o homem do Mesolítico precisava entender a linguagem do céu, elaborar um calendário lunar, compreender os ciclos. A relação entre o homem e o mundo vegetal se torna mais forte; a fertilidade da terra era semelhante à fertilidade feminina. O mistério da criação e da morte era das mulheres. O espaço começou a ser valorizado de outra forma, ficando clara a distinção entre a vida sedentária e a nômade. Surge a ideia do tempo circular e dos ciclos cósmicos.

As datas do Neolítico, designado durante muito tempo como o período da pedra polida, são fixadas mais ou menos entre 5.000 e 2.500 aC. Neste período acentua-se a domesticação de animais. Ao cão, cuja domesticação é bem mais antiga, juntam-se os porcos, bois, carneiros; a tecelagem e a cerâmica se impõem, adquirindo a agricultura grande complexidade e extensão. São levantadas grandes construções de pedra, menires, dólmens e cromlechs. O desenvolvimento da agricultura leva consigo mitos, idéias religiosas. O culto do touro ganha expressão no Oriente Próximo e dali se espalha pelo mundo mediterrâneo. Os cultos neolíticos têm como itens importantes temas como a morte, a fertilidade, os fenômenos meteorológicos e os lugares sagrados.

No final do Neolítico, intensifica-se o uso dos metais. Os heróis de Homero desconhecem o ferro, usam o bronze e o cobre. A chamada idade do ferro, caracterizada pelo uso corrente desse metal, começa por volta de 1.200 aC. O ferro, todavia, já era conhecido pelos sumérios. O mais antigo vocábulo conhecido para designar o metal vem de duas palavras sumérias, “céu” e “fogo”, o metal celeste. Os egípcios e os hititas, por exemplo, conheciam o ferro meteórico, o ferro negro do céu. A metalurgia, os metalúrgicos, mineiros e ferreiros formam agora a nova classe privilegiada. São os transformadores da Natureza. Aparece a Alquimia, que toma as formas exotérica e esotérica, isto é, material e espiritual. Os ferreiros estão nos mitos, fabricam armas para os deuses, jóias para as deusas. Por volta do ano 1.000 AC, o ferro já estava sendo utilizado na Índia e na Grécia.




Colagens de  Adriana Peliano