quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A QUESTÃO HOMÉRICA E A ILÍADA (2)

                       
HOMERO (P.L.LAURENT, 1746-1816)
É também pelos textos coletados sobre Homero (Vitae Homeri), espalhados em algumas bibliotecas, que ficamos conhecendo uma versão bastante sugestiva, dentre as muitas que ao longo dos séculos procuraram construir uma biografia do poeta. Esses textos estão guardados no Escorial (Vita Scorialensis) e na Biblioteca Nacional de Roma (Vita Romana). Eles atribuem ao poeta uma natureza semi-divina ou divina, ora filho da musa Calíope, ora filho de um (deus) rio, o Meles, e da ninfa Criteida, da Ásia Menor. Unindo-se ao rio Meles, que passa por Esmirna, tornou-se Criteida mãe do poeta Homero. 


APELES, 1334-1336 (NINO PISANO)
Numa outra versão, ela, Criteida, era filha de Apeles, que vivia na cidade de Cime. Sentindo a morte próxima, Apeles a entregou ao irmão, Meon, para que ele cuidasse dela. Todavia, escapando da guarda do tutor, ela se uniu a Fêmio, habitante da cidade. Certo dia, grávida, quando lavava roupa às margens do rio Meles, deu à luz um menino, que se tornaria mais tarde o poeta Homero. Essa versão, como se percebe, explica um dos apelidos de Homero, Melesígenes, o que nasceu junto do rio Meles. Uma variante desta versão nos revela que Criteida era uma jovem que nascera em Ios e mantivera relações com um gênio que fazia parte do cortejo das Musas. Raptada por poetas, a moça, grávida, foi conduzida a Esmirna, onde Meon, rei da Lídia, a acolheu.  Ao dar à luz a uma criança (o futuro Homero) junto do rio Meles, morreu sem conhecer o filho. 


APOLO  E  AS  NOVE  MUSAS  NO  MONTE  HELICON
( HENDRIK  VAN  BALEN , 1575 - 1632 )
Ainda dentro da versão acima, outra variante nos informa que Melesígenes ou Melesíanax, como também o chamavam, perdeu a visão, ganhando o nome de Homero por essa razão. Explica-se a mudança do nome porque os eólios davam o nome de homeros a uma pessoa cega.  Já poeta, a partir de então, cego, pôs-se ele a andar por várias cidades cantando os seus poemas. A tradição nos informa que morreu na ilha de Ios e ali foi sepultado.

MELPÔMENE
Grande parte dos que estudam Homero aceitam que seu primeiro nome tenha sido Melesígenes. Esse rio, o Meles, como se disse, corre perto da cidade de Esmirna, na Ásia Menor. Em muitos textos, o rio é considerado pai de poetas e cantores, o que mitologicamente é bem possível. Rio e poesia, como se sabe, sempre estiveram miticamente ligados. Os gregos antigos encontravam uma relação analógica entre palavra cantada e o fluir
EUTERPE
dos rios. Assim é que temos a versão de que a musa Melpômene gerou as Sereais depois de se ter se unido ao rio Acheloo. Uma outra musa, Euterpe, ou Clio, segundo uma versão, se uniu ao rio Strymon, na Trácia, para gerar o belo Rhesos, guerreiro luminoso, dono de famosos cavalos, massacrado por Ulisses e Diomedes. O nome desse herói deriva do verbo rheein, correr, fluir escorrer.  

Os problemas de visão de Homero são registrados de modo unânime por todos os que se aproximaram dele desde a antiguidade. O mesmo acontece com o problema das cores, que o poeta apresenta. Isto porque mesmo ao leitor mais superficial dos textos homéricos sempre causou uma certa estranheza o modo pelo qual ele se referia às cores. Ao descrever, por exemplo, o mar, ele usou o adjetivo oinokros (cor de vinho), oinora ponton (oceano cor de vinho), o mel era verde e assim por diante. Cegueira cromática?

Quem levantou o problema nos tempos modernos foi um leitor de Homero, o político britânico William Ewart Gladstone, em 1.858, que se incomodou bastante, ao ler o poeta, com as suas descrições, quando nelas entravam as cores. Outros estudiosos, principalmente o filósofo e linguista alemão Lazarus Geiger, constataram que entre sessenta adjetivos qualificativos usado para descrever os elementos e as paisagens, na Ilíada e na Odisseia, três deles somente se referiam a cores. Kyaneos, por exemplo, designava uma cor escura, o azul escuro, mas podia o adjetivo ser empregado também para designar o violeta, o preto e o marrom. 
   
Michel Pastoureau sugeriu em seu precioso livro sobre a cor azul, com muita propriedade, que a finalidade desse kyaneos não era propriamente a de descrever uma cor, mas a de lhe dar um certo “sentimento”. Glaukos, por exemplo, muito usado por Homero, tanto foi usado para descrever o verde, o cinza e o azul como, algumas vezes, o amarelo e o marrom. Glaukos, constatou-se, traduzia mais uma ideia de palidez, de um certo esmaecimento, do que a definição de uma cor. As controvérsias entre os helenistas de todos matizes sobre estes problemas das cores em Homero vêm se estendo até hoje. As explicações são muitas. Uma delas: Homero enxergava mal as cores, confundindo-as. Outras: licença poética, surrealismo avant la lettre ou uso de drogas quando o poeta participava de certos embalos com garotos. 

 Além disso, outras dúvidas vieram se juntar àquelas legadas pela antiguidade, jogando mais lenha na fogueira das paixões que o tema homérico continua despertando. Em 1.897, num ensaio (The Authoress of the Odyssey), Samuel Butler (1.835-1.902) segundo estudos que fizera, afirmou que Homero era uma siciliana, que se retratara em Nausicaa,

personagem do poema. Robert Graves (1.895-1.955), por sua vez, pegou a deixa, trabalhou o tema, e escreveu um romance (
Homer’s Daughter) sobre essa personagem, que outra não seria senão a jovem filha do rei Alcinoos, que acolheu Ulisses quando ele deu com os costados em Esqueria, a ilha dos feácios.  É de se lembrar que, além de ter invadido a literatura, Nausica marca hoje a sua presença na Psicologia, ao dar nome a um complexo, o Complexo de Nausica, para ilustrar o comportamento dos apaixonados silenciosos, que não conseguem declarar a sua paixão.

As versões acima alinham-se certamente com variantes que ligam a origem de Homero à Odisseia. Duas hipótese: numa delas,  seriam pais do poeta  Telêmaco e Policasta, jovem filha de Nestor. Noutra, o poeta teria sido gerado por Ulisses e Penélope. Ambas explicariam, justificando-o, o tratamento que o poeta teria dado a tais personagens nos seus poemas.  Segundo esta linha odisseiana, seria explicado também o tratamento que o poeta dera a outros personagens que viviam no palácio de Ítaca. 

Embora os argumentos dos “separatistas” pudessem apresentar alguma pertinência, eles, por si só, não bastariam para justificar a tese de que os poemas tivessem sido  escritos por poetas diferentes. Dentre esses argumentos eram destacados os seguintes: os poemas consideravam e se referiam às divindades de modo diferente; as questões morais também apresentavam situações muito diversas. Ademais, nada tão opostos como Aquiles e Ulisses, "heróis" de ambos os poemas. 

Já se disse que Homero está presente em todos os textos nos quais se fazem referências às suas obras. Ele é reinventado a cada vez que alguém escreve sobre ele ou sobre os seus poemas, quando espetáculos teatrais ou filmes são montados ou produzidos, com base em suas biografias ou em suas obras, quando recitais poéticos celebram no mundo todo a “matéria homérica”. Todos, de uma forma ou de outra, recuperam os seus temas. 


DANTE  GUIADO  POR  VIRGÍLIO
( GUSTAVE  DORÉ , 1832 - 1883 )

Respigando aqui e ali, no séc. II de nossa era, Luciano, na sua História Verídica, nos relata um encontro com o eidolon de Homero na Ilha dos Bem-Aventurados, que ficava além do extenso rio Oceano que envolvia a Terra. Nesse encontro ele apresenta a Homero várias questões eruditas sobre A Ilíada e A Odisseia, discutidas no seu tempo. Já no séc.XIII, nos primeiros círculos do Inferno cristão, Dante (canto IV de A Divina Comédia), guiado por Virgílio, encontra-se com Homero, que está na companhia de Horácio, de Ovídio e de Lucano. No séc. XVIII, Giambattista Vico, François d’Aubignac e Friedrich August Wolf afirmaram que Homero era um personagem fictício, um nome por trás do qual se escondia uma corporação de rapsodos e de aedos.



Giambattista Vico (1.668-1.744), italiano, de Nápoles, foi filósofo, político e retórico. François d’Aubignac (1604-1676), nasceu em Paris, seguindo a carreira eclesiástica. Seu nome era François Hedelin. A ele acrescentou Aubignac quando se tornou superior da abadia de mesmo nome. Atuou na literatura, foi teórico do teatro, dramaturgo e filólogo. Friedrich August Wolf (1.759-1.824), nasceu na Alemanha e é considerado o pai da moderna filologia. Deixou, dentre outros, um livro importante para se entender a obra  de Homero (Prolegomena to Homero, versão inglesa), publicado em 1.795. 

Dentre todos os estudiosos da obra de Homero, avulta, mais perto de nós, sem dúvida, a figura de Victor Bérard (1.864-1.931), helenista, historiador, navegador, crítico literário, diplomata e engajado politicamente no campo dos dreyfusards. Grande tradutor francês da Odisseia, foi conhecido por unir um grande rigor histórico e linguístico a uma inspiração artística na produção dos seus textos. Deixou centenas de artigos e cerca de dez livros sobre a “matéria grega”, mais especificamente sobre a questão homérica. Além disso, tornou-se muito conhecido em toda a Europa por suas expedições pelo mar Mediterrâneo, ao tentar reconstituir as viagens de Ulisses. Bérard sempre acreditou que Homero teria se inspirado sobretudo  em cartas de navegação fenícias para descrever  as viagens de nosso herói. 

Os estudos sobre Homero, conhecidos até Bérard, sempre consideraram que os deslocamentos de Ulisses sempre haviam se dado pelo mar Mediterrâneo, entre o mar Negro e Gibraltar, afirmando-se que ele nunca havia ultrapassado as colunas de Hércules. Por isso, segundo esse ponto de vista, era A Odisseia um poema mediterrâneo. Com seus estudos sobre o poema, esmiuçando o texto homérico como talvez ainda ninguém o fizera, com suas viagens, com o seu grande

conhecimento sobre navegação, regime de marés e ventos, inclusive sobre a construção dos barcos antigos usados na navegação mediterrânea e atlântica, Bérard nos provou que A Odisseia era também um poema atlântico. Ou seja, Bérard procurou demonstrar que os caminhos percorridos por Ulisses alcançaram as ilhas do mar do Norte, chegando o herói grego até a Islândia, provavelmente. Merece referência especial um álbum, Dans Le Sillage d’Ulysse, publicado postumamente (1935), no qual estão reunidas fotografias tiradas pelo fotógrafo Fred Boissonas, companheiro de viagem de Bérard. 



 FRED  BOISSONAS , 1900

Foi, sem dúvida, através de Homero que pudemos perceber o quanto as primeiras tribos indo-europeias que se instalaram no futuro território grego, se sentiram incomodadas pela desenvoltura com quem as civilizações troiana e cretense dominavam, como talassocracias, o comércio marítimo do Mediterrâneo oriental. 


Quando chegaram à Grécia por volta de 2.000 aC, essas tribos, os futuros aqueus, ignoravam praticamente tudo relativo ao mar. O território que ocuparam era montanhoso, limitando bastante o acesso interno. Tiveram que se voltar para o mar, sendo forçados a criar uma vocação marítima. Foi isto que os levou relativamente em pouco tempo à conquista de territórios, de colônias, como as da Ásia Menor, do sul da Itália e da costa africana, alem, é claro,  além das inúmeras ilhas do Egeu e de Creta. 

A história da Grécia tem como ponto de partida o mundo cretense. Por volta de 1.800 aC, Cnossos e Faístos, em Creta, despontavam como centros altamente desenvolvidos. Cerca de dois séculos depois o palácio de Cnossos (Labirinto) foi destruído. Invasões micênicas e terremotos puseram fim à civilização creto-minoana por volta de 1.400 aC. No ano 1.000 aC, invasões dóricas, jônicas e eólicas subjugam os aqueus, que lá haviam chegado pelo início do segundo milênio. Fundaram eles centros que viriam a se transformar nas grandes cidades gregas: Atenas, Tebas, Esparta e outras.

A fundação de cidades no exterior (colônias) se devia sobretudo à ação da iniciativa particular, o que lhes dava uma certa independência com relação aos centros de poder continentais, mantendo-se a ligação apenas sob o aspecto religioso. Essa modalidade de colônia é chamada de apoikia. Posteriormente, foi criado um novo tipo de colônia, de iniciativa do poder da polis, mantendo os emigrantes os seus direitos de cidadania. 

Depois de 1.400 aC, o comércio micênico tomou o lugar do comércio minóico, mantendo os micênicos intenso comércio com com Troia (exportação de louças), com a costa da Ásia Menor, Síria, Egito, Palestina e Itália. Pesquisas arqueológicas vêm nos informando que no sul da Inglaterra foram encontrados vestígios de louça e de utensílios (punhais) importados da Grécia, possivelmente levados pelos micênicos, que traziam de lá, da Cornualha, estanho, muito necessário para a fabricação do bronze, vital para eles.