segunda-feira, 27 de junho de 2011

A PRINCESA IMPERFEITA*




Desde que Mme. de La Fayette publicou, com a discreta colaboração de Jean Regnault de Segrais e La Rochefoucauld, em maio de 1678, La Princesse de Clèves, muito se escreveu sobre a importância desse pequeno volume para a literatura francesa de um modo geral e para o romance de um modo particular. Se a crítica oficial o proclama "clássico" interessam-nos, contudo, mais as razões pelas quais ele diz respeito àquele gênero literá­rio. E isto porque com La Princesse de Clèves abre-se o grande ciclo do romance psicológico e porque o ideal de vida heroico sofre o seu primeiro impacto, abalo. Bastariam essas razões, ainda que outras de caráter secundário pudessem ser levanta­das, para que o livro de Mme. de La Fayette seja visto senão como totalmente afastado pelo menos bem distanciado da forma clássica em que a crítica oficial sempre o pretendeu colocar.

Realmente, considerado como fruto de um período que se convencionou chamar de clássico nas letras fran­cesas, o livro nega muito dos cânones literários então vigen­tes e talvez outro motivo não haja para a persistência desse rótulo senão o de um pálido critério de ordem cronológica. Ou então certas cores históricas que por si só não bastam para integrá-lo ao classicismo. Critérios enfim que pouco representam e que, por isso mesmo, permitem-nos ainda hoje, depois tantos séculos, concluir pela grandeza do livro.

As histórias da literatura agrupam sob o nome de classicismo as manifestações artísticas que aparecem logo após a Renascença, estabelecendo o século XVII em França, os longos anos do reinado de Luís XIV, como paradigma e modelo supremo da escola. Os que assim vêem o classicismo ligam-no ao progresso que a França desfrutou nesse século tanto pelo domínio das armas como das letras, de modo a consagrar um ideal que se prolongaria eternamente sob a tutela da ordem, da razão, da autoridade, do absolutismo.

No plano econômico e político esta posição significava o desenvolvimento paralelo de monarquias de tendências totalitárias e da burguesia, unidas pelos interesses que tinham no capitalismo mercantil. O direito divino, por sua vez, contribuiria para que a ideia do Santo Império Europeu ou da República Cristã, hierarquizada, fosse substituída pela ideia da pluralidade de Estados soberanos e independentes. Como decorrência dessa política expansionista passou-se a reivindicar maior li­berdade de ação. Nas relações humanas isto significava uma revolução moral, que vinha contrapor à velha noção medieval de morrer no mundo para viver em Deus a de se gozar a terra e o que ela continha, observadas, porém, as regras e os interesses do Estado (uma fé, uma lei, um rei).

Devido a esta convergência total para a pessoa do rei, a vida, para as classes mais privilegiadas, começou a gi­rar em torno de dois polos: a corte e os campos de batalha. E é neste ambiente da corte que se vai criar o mito do l'honnête homme, que triunfa pela razão, pela bondade, pela beleza, ar­mas que só poderiam ser utilizadas por aqueles que tivessem l'air de la court. Culto, comedido, discreto, galante, “l'honnête homme” se caracterizaria tanto pela elegância exterior como interior, de elevada estatura moral, imagem de uma sociedade civilizada e disciplinada.

O escritor, honnête homme também, não tinha outra saída senão a de sacramentar esse estado de coisas, isto é, escrever o que o público leitor, bastante restrito por sinal, queria que ele escrevesse. Outros, porém, rebelaram-se. A primeira situação requeria um cerimonial de reconhecimento tácito entre escri­tor e público; a outra, o ataque às instituições e às belas palavras, ou seja, o rompimento daquela rede de convenções que se tecia nos salões, nas academias.

Se formos aos principais autores da época, ou aos que do assunto trataram posteriormente, concluiremos que a forma clássica, à primeira vista cabível, não se adapta a Mme. de La Fayette. Goethe (Sobre as condições necessárias para que se produza um clássico), Saint-Beuve (Qu’est-ce qu’un classique? Causeries de Lundi), Herbert Grierson (The First Half of Seventeeth Century), Joseph-Emil Fidao­-Justiniani (Qu’est-ce qu’un classique?) escreveram trabalhos, folhetos ou pronunciaram conferências sobre o classicismo. Goethe, por exemplo, escrevia em 1795, com o título acima, um curioso ensaio para dar as condições imprescindí­veis que um autor deveria observar para se tornar um clássico: a) viver num grande Estado que a­través de uma série de importantes sucessos se tivesse convertido em uma nação unificada e feliz; b) encontrar em sua pátria um elevado nível de civilização; c) abraçar com ampla simpatia tanto o passado como o presente; d) realizar-se apenas de­pois de muitas tentativas de predecessores; e) começar na juventude, entrever as possibilidades de um grande tema e desenvolvê-las com paciência e lentidão.

Não há dúvida que Goethe legislava em causa pró­pria. O seu classicismo revestiu-se efetivamente desse ecle­tismo que abrangia o passado e o presente, que recolhia Sha­kespeare e Diderot, que se encantava com a poesia popular de Herder, que se “fazia menor” diante de Winckelmann. O classicismo francês, contudo, é menos eclético, mais espontâneo e juvenil, pois observa um desdém aberto pelo passado remoto (o desprezo de Descartes, Pascal e tantos outros pela Antiguidade clássica) e pela "barbárie gótica", como se vê em Villon, Ronsard e Rabelais.

Quanto aos demais itens alinhados por Goethe, os que nos parecem mais importantes, convém recordar que a literatura grega floresce durante a malfadada guerra do Peloponeso; que a chamada época clássica na Inglaterra não corresponde a um esplendor político (Rainha Elizabete) ou militar (Waterloo); que o século de ouro espanhol coincide com o declínio político desse país; e que a grande época da literatura e da filosofia alemãs (Goethe, Schiller, Kleist, Novalis, Hegel etc.), se verifica ao tempo das maiores humilhações napoleônicas.

Por outro lado, se considerarmos que a palavra "clássico" poderá significar: a) o que deve ser ensinado em classe isto é, próprio para escolares; b) os melhores autores; c) autores antigos ou dignos dos antigos, forçoso é concluir que nenhum destes sentidos se adapta ao livro de Mme. de La Fayet­te nem a Racine, a Boileau ou a Molière, que nunca pensaram em reivindicar tal título. Isto porque essa canonização, na maio­ria das vezes, feita à revelia do escritor, implica um juízo de valor, passível de ser modificado. É que cada período, cada escola, cada princípio, ao proclamar a sua verdade, se pretende eterno e se elege como universal. Esta pretensão confunde, pois, historicidade com tradicionalismo, pressupondo, na lite­ratura, a adoção de lugares-comuns ao invés de se tentar estabelecer uma relação concreta entre autor e público. ­

Entretanto, bem pouco é necessário para que tudo mude. E na verdade, já no século XVIII, com os prenúncios do Romantismo, introduziam-se novas concepções. Daí, um quarto significado para a palavra "clássico": seria tudo o que se opõe ao romântico, ou se fala o clássico, tudo que se opõe ao excessivo, violento, ao obscuro, ao enfermiço. Aliás, é o próprio Goethe que, nas suas Conversações com Eckermann, invoca a honra de ter sido o primeiro a propor essa oposição entre clássico e romântico, muito embora, no mesmo ano em que isso fazia, exaltasse (carta ao conde Reinhard) com paixão os jovens românticos franceses por combaterem as velhas regras clássicas.

Ser clássico, chamar-se a alguém de "clássico" pouco representa, pois esta designação supõe um juízo imutá­vel. É como escreve Ellie Faure num estudo sobre Matisse: os que se chamam de clássicos me fazem pensar naquele mercenário dos tempos de Felipe IV que dizia aos seus camaradas de armas: Adiante, meus amigos, à guerra dos cem anos!. Se transferirmos o problema às outras artes, à pintura e à arquitetura, por e­xemplo, notaremos sem grande esforço que as qualidades distin­tivas do classicismo não têm em ambas o mesmo significado. A expressão "música clássica", além de falsa, engloba hoje, mesmo para aqueles que a entendem como válida, obras e ideias bem diferentes das do século XVII. Sob este aspecto, o "clássico" denota tudo o que é habitual, tradicional ou tradicionalista; tudo o que já foi saboreado e respeitado pela "gente séria", por oposição ao moderno, que sempre inquieta e desconcerta.




Evidentemente, uma observação apressada não verá em La Princesse de Clèves mais do que uma estória de amor com personagens demasiadamente perfeitos, matéria romanesca pau­pérrima, que um estilo sóbrio, pobre quase, levou a um grande resultado formal. O olhar mais penetrante verá, porém, que atrás desses personagens, desses cenários históricos belíssi­mos, se escondem os primeiros sintomas da destruição do que se construía ao tempo.


Le Prince et la Princesse de Clèves
(Marina Vlady e Jean Marais), filme de Jean Delannoy

Ainda que nos apareça exteriormente submissa, a princesa, devido à influência que recebe da mãe, conceitos de uma moral egocêntrica e prática, visa, no fundo, apenas ao seu bem-estar e ao seu conforto. Les raisons qu'elle avait de ne point épouser M. de Nemours lui paraissaient fortes du côté de son devoir et insurmontables du côté de son repos ou Je ne sais même si je ne vous le dis point pour l' amour de moi que pour l' amour de vous.

Entre outras coisas o que se propõe aqui é nada mais nada menos que o afastamento da moral oficial e se Mme. de La Fayette não cria deixa pelo menos entrevista a elaboração de um código moral bem diferente daquele defendido por l'hon­nête homme. Ainda mais: a completa ausência da religião, a dubiedade, a falta de heroísmo, a ambivalência, a fraqueza, talvez patética, nitidamente desenhadas no livro são traços que fazem de Mme. de La Fayette a precursora da fórmula l'amour doit détruire tous les prejugés, posta em moda no século se­guinte.

La Princesse de Clèves inicia, pois, um longo processo, levado às últimas consequências no terreno moral por Julien Sorel, em Le Rouge et le Noir, depois dos ataques de Laclos, do Abbé Prévost, de Rousseau, Benjamim Constant e Balzac. De Julien Sorel em diante o quadro se ampliaria com a introdução de novos elementos: a moral é subvertida completamente, deixando de ser imprescindível ao u­niverso do "heroico". Preparava-se o ataque final, consumado no século XIX pelos moralistas da revolta e no século XX pelos rebeldes sem causa. E a essa estranha galeria inaugurada pela Princesse de Clèves, por Val­mont, Merteuil, Manon Lescaut, Emile, Adolphe, Rastignac, o conde Mosca e Julien Sorel vêm se juntar os irmãos Karamazov, Stephen Dedalus, Joseph K., Roquentin, Mersault, Gregor Samsa, os personagens de Henry Miller, os beats, hipsters e angry young men.

*Alguns filmes relacionados com o tema acima:

La Princesse de Clèves (Jean Delannoy), A Carta (Manoel de Oliveira), La Belle Junie (Christophe Honoré)

Ver neste mesmo blog "À Margem do Amor Cortês"