quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

QUARTO TRABALHO DE HÉRCULES


HÉRCULES E A CORÇA
  A Captura da Corça Cerinita - Era um animal maravilhoso, protegido por Ártemis, a deusa lunar, que vivia numa região selvagem da Arcádia, a Cerineia. Tinha as patas de bronze e os chifres de ouro, muito arredia, enorme, mas agilíssima e extremamente rápida nos seus deslocamentos. A missão de Hércules era a de capturá-la e levá-la viva a Euristeu. O animal carregava uma inscrição no seu corpo: “Dedicado a Ártemis por Taigete”. Sabemos que Zeus tentara violentar Taigete, uma das plêiades, e que Ártemis a livrara. Agradecida, a plêiade ofereceu o animal à deusa, tornando-o, pois, sagrado. Ninguém poderia, assim, caçá-lo ou capturá-lo. Se não considerada essa questão, uma tarefa aparentemente fácil para o nosso herói, acostumado a enfrentar monstros e perigosos malfeitores. Sabe-se, também, que a sugestão para que Hércules executasse este trabalho partira de Hera, para que o filho de Alcmena, ao vencer inimigo tão indefeso, sensível, tímido, sentisse mais remorsos e, por causa disto, fosse obrigado a novas expiações.  

GRÉCIA ANTIGA - ARCÁDIA
  Velocíssima, ágil, a corça sempre conseguia escapar do nosso herói. Aos poucos, Hércules percebeu que aquela missão, aparentemente tão fácil, ia se tornando dificílima. Depois de ingentes esforços, contudo, de um ano de intensa perseguição, conseguiu capturá-la na Arcádia, no momento em que o animal atravessava um rio, um lugar muito procurado pelo deus Pan para o seu descanso. 

Ferindo ligeiramente com uma flechada o animal, Hércules conseguiu aprisioná-la com seus fortes braços. Amarrou-lhe as patas e a colocou nos seus ombros. Pôs-se logo a caminho para dar cumprimento ao que lhe fora determinado, dirigindo-se a Micenas. Encontrou-se no trajeto com os irmãos Ártemis e Apolo, ambos reivindicando que o animal sagrado lhes fosse entregue. Firme no  intento de chegar ao seu destino, Hércules não deu ouvidos aos gêmeos divinos, entregando a corça finalmente a seu primo, que, posteriormente, o devolveu às montanhas da Arcádia.

Este trabalho está relacionado com o signo de Câncer, mês em que temos o início do solstício de verão, por oposição a Capricórnio,
solstício de inverno. Se Áries é a energia, Touro a matéria e Gêmeos a conexão, Câncer traz a ideia da forma. É um signo de massa, ligando-se às várias matrizes das formas, a família, a raça, a pátria, o grupo humano etc. É de Câncer que a forma emergirá (ou não) para se assumir como consciência iluminada em Leão, o signo seguinte.

A primeira ideia que o signo de Câncer nos propõe é a da vida instintiva, aqui simbolizada pela corça, animal que está sempre se movendo, rapidíssimo, hipersensível, que reage de modo totalmente indiscriminado com relação às pressões externas que recebe. Reage, não as discrimina. É a corça como tal  um animal lunar, noturno, indiferenciado, primitivo. Esta indiferenciação com relação ao ambiente explica-se astrologicamente pelo elemento água (frio e úmido) e pela regência da Lua, governante do signo de Câncer. O canceriano, como a corça, é no geral um indiferenciado com relação ao meio em que vive, seja por censura moral, por temores inexplicáveis, dúvidas, por pressões atávicas, hereditárias, por uma espécie de infantilismo psíquico. As patas de bronze do animal simbolizam aqui ao mesmo tempo pureza (isolam) e prisão (prendem). Os chifres de ouro apontam para o alto, para o signo seguinte, no caso, Leão. O chifre é símbolo da penetração do espírito que deve iluminar a matéria, no caso, a conquista de um eu racional.
 
AFRODITE

  O nome Ártemis admite várias etimologias, tanto pode vir de "sanguinária", como de "urso" ou de "protetora". É uma deusa
ÁRTEMIS
virgem, sagitariana, indomável, rebelde, sempre acompanhada por um cortejo alvoroçado de ninfas e de animais. É a Senhora das Feras (Potnia Theron), tendo por trás o modelo das Grandes Mães asiáticas. É a deusa protetora de tudo o que entra na vida e que tem de passar para outros estágios. Opõe-se a Afrodite, sendo muito cruel com os que cedem ao amor, aos que ficam "presos". Massacra impiedosamente (mães matam) os seres que simbolizam a doçura, que se "entregam", os que não "sabem" passar. A Lua (Ártemis) governa os territórios de passagem entre o conhecido (grutas) e o desconhecido (o Grande Todo). Nos seus territórios vivem seres entre o humano e o animal que testam aqueles que se aventuram nas travessias (Sátiros, Pan, Faunos, Egipans, Príapo etc.).

Câncer é assim o princípio plástico da manifestação. Seu símbolo astrológico tem forma dupla, com inversão de formas, representando os dois aspectos complementares da mesma coisa; 
a forma dupla é contida pela concha. O animal que representa o signo é o caranguejo (karkinos), ser que vive entre a água e a terra. Num outro sentido, é o signo da alma que habita o corpo físico, mas que vive predominantemente no elemento líquido, isto é, na emoção, no (hiper) sensível. A Lua é a dona do signo enquanto mãe das formas (fases lunares) e astro controlador das águas, das marés. Neste signo a forma aparece, torna-se dominante, e é, por si mesma, o seu próprio obstáculo. Na constelação de Câncer tudo isto está descrito através das suas estrelas. Lembremos que os hebreus na antiguidade chamavam esta constelação de "O Ataúde" pela falta de identidade que trazia, ao preponderar num tema natal, impondo-a a muitos dos tipos do signo, mesmo nos tipos bem logrados.

Como ser humano, cabe ao homem racionalizar, analisar, criticar
(separar) para que vá aprendendo a se diferenciar do animal. Pelo intelecto podemos escapar da vida instintiva, controlá-la e seguir em busca de algo mais transcendente, os outros, o mundo. Isto é representado astrologicamente pelo 3º quadrante, que fala da vida social, e pelo 4º quadrante, que fala do coletivo, da humanidade, que se opõem ao  1º (individual) e ao 2º (familiar). Esta, talvez a maior lição a ser retirada por Hércules do seu quarto trabalho e de suas relações com o signo de Câncer pelo nosso herói.

O problema maior quanto ao que aqui colocamos é que Hércules tem como dominante de sua personalidade o elemento fogo, como fica fácil perceber. Tudo nele é temeridade, generosidade, paixão, arrebatamento; não consegue manter a suficiente distância das pessoas para compreendê-las. É, como tal, um primário, isto é, estimulado, não pensa, reage, responde, envolve-se, arriscando tudo, acreditando estar fazendo sempre o bem.   

O signo de Câncer, como o próprio caranguejo sugere pela sua forma, pelos seus olhos, nos põe diante de uma grande importância
SÍMBOLO DE CÂNCER
dada à interioridade e a tudo o que nela se gesta, remetendo-nos a ideias de algo que está em preparação para entrar na vida; pensamos em esboço, embrião, prefiguração, germe, ovo, feto, broto, cria, erva nova, concha, couraça, revestimento, cobertura, proteção, casca. É o signo o grande arquétipo da vida maternal, falando-nos de origens, atavismos, automatismos, com a valorização de tudo o que preserva, envolve, conserva, mantém, aquece e também inibe, censura, prende, cria culpas, remorsos e que pode matar...

A corça é um símbolo do que se situa entre o informal e o formal. É por essa razão que a conquista da forma por um canceriano é tão difícil. Esta conquista terá que ser obtida pelo mental para se chegar inclusive, se possível, à intuição, que é a compreensão íntima do princípio da universalidade, uma evidência além das aparências, nada tendo de mediúnico, de sobrenatural. A lição que o nosso herói deverá retirar deste trabalho é exatamente a de entender que o instinto é atividade espontânea, não resultante da experiência, da educação, da reflexão. É uma faculdade material de sentir, congênita. Opõe-se à inteligência, que é reflexiva, e que precisa ser trabalhada pelo homem.

Uma Lua debilitada num mapa astrológico é um forte indicador de grandes dificuldades para alguém conquistar uma identidade consciente, autônoma. Por isso, a visão do signo nos aponta para ideias de massa, de rebanho, de vida gregária. Opõe-se a vida instintiva à vida consciente, à vida inteligente, que tem caráter reflexivo, como se disse. Instinto, etimologicamente, quer dizer aguilhão, ferrão, picada, algo que se manifesta dentro de nós espontaneamente. A inteligência pressupõe escolha, reunindo sensação, associação, memória, imaginação, entendimento, discriminação, comparação. Difere da intuição, que é conhecimento instantâneo, imediato, sem conceitos. A intuição capta o evidente que está por trás das aparências; é visão direta, exclui provas; percebe logo o que é falso e o que é verdadeiro. É a verdade sem reflexão. Podemos dizer que a intuição “sabe” o que desconhecemos.

Os nativos do signo de Câncer têm normalmente uma grande necessidade de repouso, de vida tranquila, de segurança. E onde lhes seria mais fácil encontrar tudo isso senão no seu próprio lar? Esta necessidade envolve os cancerianos desde a infância, impondo-lhes uma forte ligação com o ambiente familiar, a mãe,
SCHUBERT
a casa, o bairro, a cidade, a pátria. Se tal não for realizável, o canceriano tentará “adotar” uma família, embora tenha muita dificuldade para vencer a sua natural insegurança, fechando-se muitas vezes na sua carapaça. Franz Schubert e Rainer Maria Rilke, por exemplo, são tipos que devem ser estudados à luz do que aqui se expõe.

Na vida prática, como fatores favoráveis aos cancerianos, destacamos: 1) a possibilidade de realizar algo que seja últil a outras pessoas, ao público em geral; 2) trabalhar em atividades e campos inteiramente tradicionais; nada de novidades, de independência profissional; obtendo alguma segurança, o canceriano é o tipo que mais facilmente “veste a camisa” da empresa em que trabalha; dedicar-se a atividades artísticas em que possa trabalhar em grupo (orquestras, corais, grupos de teatro etc.), um grupo que lhe a sensação de, com ele, “estar em casa”. Como fatores adversos à convivência e ao trabalho de cancerianos, destacamos a hipersensibilidade, o que pode torná-lo profundamente desconfiado, fatalista, de humor muito instável (estar de Lua, de ovo virado, etc.); a tendência para se agarrar demasiadamente a “certezas” que não passam de inferências e conclusões muito afetadas pelo seu emocional; a tendência de se tornar muito dependente daqueles que lhes dão alguma forma de segurança; esta tendência é muitas vezes manipulada pelo canceriano, sendo ele um “mestre” em criar culpa e remorso no outro quando esta segurança é abalada ou negada.

     O chamado complexo maternal está na base do psiquismo deste
tipo astrológico. O canceriano costuma apresentar a tendência, mais ou menos intensa, de se demorar na infância, de retardar a sua entrada na vida, de viver dentro de uma concha, de se refugiar no passado. Costuma se identificar com a mãe, apegar-se à família e aos seus valores, à infância, às recordações (são grandes memorialistas e historiadores; na psicologia, dedicam-se às crianças, a questões de educação, como o canceriano Rousseau). É um (hiper) sensível, um sentimental-imaginativo, inclinando-se muitas vezes à esquizoidia, ao autismo, à submissão passiva e feminina (mesmo nos tipos do sexo masculino), ao lunar, ao noturno, à contemplação, ao elegíaco, ao romântico, ao fantástico e à magia. O cinema de Ingmar Bergman não deixa de ser uma grande ilustração do que estamos
HUMBERTO D
aqui a expor. Os exemplos, para onde nos voltemos com essas informações, abundam. Só um canceriano como Vittorio de Sicca poderia ter feito filmes como Umberto D ou Ladrão de Bicicletas. Foi outro grande representante do signo, Marcel Proust, que ergueu, com a sua obra como um todo, talvez o maior monumento já produzido pelo homem para homenagear a memória.   

Dentre as características cancerianas que podemos apontar na personalidade de Hércules, há uma, muito importante, que muitos dos que se aproximam de sua história para analisá-la, astrólogos ou não, esquecem. A sua grande fidelidade a padrões educacionais aos quais se ligou na infância e na juventude. Refiro-me à educação espartana. É por essa razão que Hércules sempre foi visto como o grande herói do Peloponeso, cuja cidade mais importante foi Esparta, glorificada por seu poderia militar.


 
Embora, com o tempo, devido à sua trajetória existencial Hércules tivesse se transformado num cidadão do mundo, grande viajante, não podemos esquecer de sua fidelidade aos padrões da educação espartana e de certos traços de sua personalidade, que vieram desse mundo, dos quais ele nunca abriu mão, demonstrados nos vários trabalhos que teve de cumprir e pela preferência que tinha pelo porrete como arma. Por tudo isto é que Hércules sempre foi considerado pelos espartanos como uma espécie de patrono das suas propostas educacionais.

É oportuno lembrar que decorrem também do que aqui se observa
TESEU
as grandes diferenças entre Teseu e Hércules, contemporâneos, ambos heróis nacionais, cada um a seu modo. O primeiro, Teseu, herói de Atenas, na Ática, era mais refinado, mais culto, tinha fortes pendores políticos, revelados como grande administrador quando teve que suceder ao pai. Hércules, ao contrário, herói do Peloponeso, era mais bruto, mais tosco, menos sociável, mais chegado aos meios populares, mais promíscuo, quase um herói de feira em muitos momentos de sua vida e por tudo isso bem mais próximo do homem do povo, mais aclamado. Tinham em comum muitos traços, é certo: eram filhos de grandes divindades, tinham um pai mortal, putativo; haviam nascido para representar uma ponte entre o humano e o divino. No mais, unia-os uma incontrolável tendência ao gigantismo, físico e psíquico; a inclinação às proezas; a liberdade quanto ao sexo; o gosto pelo aplauso público; por extravagâncias e muito mais. Mantiveram uma convivência que pode ser inscrita naquilo que os antigos gregos chamavam de hospitalidade, uma virtude heroica, da qual faziam parte inclusive a prestação de favores, o socorro em momentos difíceis, a hospedagem quando em viagens etc.

O objetivo da educação espartana era a formação de bons soldados. Quanto às letras, o mínimo: alguns poemas de Homero, algumas poesias de cunho moral, muitos cantos guerreiros. O mais importante sempre foram os exercícios físicos, o adestramento militar e os esportes nas suas várias modalidades, praticados intensamente. As crianças e os jovens eram submetidos à agôgé, uma forma de educação física continuada em que eram obrigados a suportar as intempéries, a fome, o cansaço e a dor. Tanto no verão
ÁRTEMIS ORTHIA
como no inverno, as mesmas roupas leves, o mesmo catre para dormir, a mesma alimentação frugal. Anualmente, eram as crianças chicoteadas diante do altar de Ártemis Orthia, divindade lunar que presidia a educação entre a infância e o ingresso do jovem na vida adulta. Fica fácil entender, por isso, porque Hércules passa por ser o instituidor dos mais importantes jogos (agones) pan-helênicos esportivos, as Olimpíadas (vide matéria neste blog).


JOGOS OLÍMPICOS
A fidelidade canceriana ao passado é em grande parte inconsciente. É por esta razão que as maiores vítimas da chamada síndrome do pânico têm em seus temas astrológicos, em grande destaque, o eixo Câncer-Capricórnio, com influências lunares muito desfavoráveis (Lua angular, geralmente muito debilitada por signo, casa e aspectos). É neste quadro astrológico, iluminado pelas contribuições da mitologia, que encontramos um conjunto de elementos, mais ou menos interligados, de forte valor emocional que constituem um grande entrave para o desenvolvimento de qualquer personalidade, criando muitas dificuldades de adaptação e, sobretudo, de mudança. A medicina moderna, como se sabe, classifica a síndrome do pânico como um transtorno de ansiedade que pode afetar percentuais elevados (grupos de risco) de até 3% da população, principalmente em grandes centros urbanos. 

A mais importante divindade a considerar, quando as dificuldades acima apontadas aparecem, é o deus Pan, filho do deus Hermes e
DIONISO E SEU SÉQUITO
de Dríope, uma ninfa. No mito, consta que foi rejeitado pela mãe por ser muito feio, peludo, teriomorfo, ter orelhas pontiagudas e patas como a de bodes no lugar dos pés. Hermes o recolheu e o levou para o Olimpo. Saltitante e alegre, desde cedo, deu demonstrações de um intenso furor erótico. Deram-lhe os deuses o nome de Pan (etimologicamente, o todo, tudo). Dioniso, o deus das metamorfoses, se encantou com o jovem deus, obtendo a permissão de Hermes para, quando possível, incorporá-lo ao seu séquito.

Pan passou a viver na Arcádia, região dos pastores e dos poetas, sendo-lhe atribuídos, de comum acordo com a deusa Ártemis, o domínio das regiões que ficavam entre  oikos (ambiente familiar, simbolizado pela gruta), o conhecido,  e o desconhecido, o grande todo. Pan passava os seus dias perambulando por seus territórios, sem ocupar um lugar fixo, ora dormindo em grutas, banhando-se nos rios, com muitos companheiros, tocando flauta (syrinx), perseguindo as ninfas e assustando os viajantes que se aventuravam pelos caminhos e pelas montanhas.
 
PAN

 O sentimento de solidão e de desamparo que costumava atacar os viajantes quando longe do oikos, principalmente em dias escuros, de mau tempo, ou em noites sem Lua, quando nenhuma voz humana era ouvida, os campos silenciosos, os animais recolhidos, esse sentimento de solidão e desamparo, dizia-se, começou a ser considerado como de inspiração de Pan. Ansiosos, aterrorizados
SÁTIRO
mesmo, os viajantes, muitas vezes, sem uma causa aparente, ficavam paralisados, transtornados por essa “presença oculta” do deus, que se anunciava por um som terrível, entre o grito humano e o uivo animal. Aos poucos, esse sentimento passou a ser chamado de “terror pânico”, um estado entre o pavor e o espanto, inexplicável, somatizado de diversos modos, tremores, taquicardia, desmaios. Pan e as divindades a ele ligadas, no mito greco-romano, Sátiros, Silenos, Faunos, Príapo, Silvanos, Paniscus, Egipãs, Centauros etc., têm origem campestre e relação com a fertilidade animal e vegetal, simbolizando sempre as permanentes ameaças da vida instintiva, não reflexiva, sobre a vida racional.

Embora não possamos falar de síndrome do pânico quando falamos de Hércules e de suas histórias, fica claro que dentre uma das mais importantes lições a retirar do seu quarto trabalho e da relação que ele tem com o signo de Câncer é a de que devemos aprender a lidar com as nossas pressões atávicas, com as nossas origens, com as nossas tendências herdadas, com os nossos instintos de sobrevivência, com a nossa memória. É claro que precisamos nos relacionar com o nosso núcleo familiar, com os costumes de nossa tribo, com as nossas raízes. Mas devemos também tentar entender até que ponto tudo isto pode oferecer dificuldades para a conquista de um eu autônomo, enchendo-nos de culpa e de remorsos quando percebemos que um eu é algo que deve ser conquistado e não herdado. Tudo isto nos ocorre ao lembrar do quanto Hércules, ao longo de sua vida, permaneceu fixado nos valores do seu mundo de origem e nos traços arrebatados de seu temperamento, sempre distinguindo mal entre o que é possível e o que é impossível.

PERSEU
Há um herói grego, do qual já falamos, e ao qual devemos recorrer quando abordamos os valores cancerianos. É Perseu, o matador da Medusa, monstro que petrificava aqueles que com ela trocassem olhares. Perseu conseguiu decapitá-la, utilizando seu escudo como espelho. Exibindo-o, tendo o seu próprio olhar devolvido, a Medusa foi petrificada por seu próprio reflexo. Como monstro, ela  simbolicamente representa todas as formas de estagnação, de fixação, de  bloqueios diversos que impedem a caminhada do homem em direção do Todo.  Um dos sentimentos mais imobilizantes que o ser humano alimenta é o da culpa, aqui expressa pela consciência mais ou menos penosa de estar descumprindo deveres afetivos familiares; tudo piora quando esse sentimento se agrava por contribuições religiosas que lhe dão um caráter de pecado moral e religioso, quando se tem que abandonar a gruta em busca de uma identidade própria. 


Perseu é, no caso considerado, o herói que venceu a Medusa, a mãe terrível, responsável pela imagem excessiva da culpa que filhos podem criar para si mesmos quando tentam conquistar um eu independente. Cortar a cabeça da Medusa é dominar de modo permanente um sentimento desproporcional, exagerado, paralisante e mórbido que sobrevém quando há necessidade de que os muros familiares sejam ultrapassados, sobretudo psiquicamente. A sensação de culpa que Perseu conseguiu superar, ao sair do palácio para matar a Medusa, está representada no mito por aquilo que se chama momento da separação (equivalente ao nosso processo de individuação), de iniciação, correspondente ao rito da eufebia na antiga sociedade grega.

O que aqui se coloca não significa obviamente repudiar ou renegar os “valores da gruta”, mas saber integrá-los a esse eu a construir, transformando-os em algo próprio. Todo ser humano tem sempre uma profunda ligação com a infância; não conhecer ou renegar o poder das origens é, como sabemos, alimentar problemas emocionais que mais tarde necessitarão sempre de algum (muitos) ajuste, nem sempre fácil.

A morte da Medusa representa tanto um momento de separação como de iniciação. Afastar-se da proteção familiar e caminhar sozinho no mundo, tentando construir um eu, é algo que pressupõe sempre a libertação dos poderes inconscientes da gruta. Fala-se aqui da transposição de uma porta, a porta solsticial representada na astrologia pelo signo Câncer, período que marca no hemisfério norte o início do verão, com o aumento da intensidade luminosa, tudo sugerindo a prefiguração de um eu, quem sabe, que virá, dando acesso a um outro tipo de vida. Perseu abandonou o seu mundo materno no qual estava protegido, embora Danae, a mãe, tivesse tentado retê-lo de todas as maneiras, inclusive chantageando-o emocionalmente. 
 
DANAE E PERSEU

 O que se depreende desta passagem referente e trazendo-a para mais perto de nós (a função diacrônica e sincrônica do mito), fica cada vez mais claro, nesta nossa modernidade tão inconsciente e inconsequente, que o poder da gruta, isto é, o princípio feminino vem abocanhando vorazmente grandes nacos do poder antes totalmente concentrado nas mãos do poder patriarcal. Está à vista de todos que as religiões patriarcais estão em acelerado processo de deterioração, de desmoralização, e que o poder patriarcal inexiste praticamente no ambiente familiar (nem mais economicamente os pais são hoje importantes). O que temos é o que chamo da vingança da Grande-Mãe. Subjugada e satanizada pelas religiões patriarcais, só hipocritamente honrada, ela está voltando com tudo, para retomar o seu lugar. Onde está então o problema? Uma das causas do cenário acima apontado está (esteve), sem dúvida, na idiota pretensão do poder masculino de que poderia construir o mundo sem a participação do princípio feminino através de religiões monoteístas, patriarcais, guerreiras e colonialistas, sempre atreladas ao poder econômico.

A Medusa, no mito, é um dos aspectos negativos, o mais negativo, da mãe que se recusa a ver rompido o cordão umbilical, a mãe que não quer perder a dependência do filho. Negativamente vivido esse arquétipo, como se sabe, pode se projetar, às vezes nostalgicamente (O Jardim dos Finzi-Contini, de De Sicca, obra-prima), em campos, jardins, árvores, fontes, casas, a cidade natal, a igreja etc. Comuns, por exemplo, os casos de pessoas que odeiam a figura materna, mas que amam a natureza, os campos, os bosques Pode também o arquétipo se manifestar, às vezes, como pesadelo noturno, uma imagem apavorante, uma serpente, um túmulo. Na sua feição negativa, a figura materna aparece nos sonhos como uma força primitiva egoísta, exigindo sempre, não dando paz. A tarefa do herói consistirá em aprender a ir diferenciando a sua personalidade da imagem materna.

No que diz respeito à criança, ao jovem ou ao adulto, a fixação na figura materna apresenta geralmente uma tendência involutiva,
A GRUTA
regressiva. Mesmo com relação àqueles que parecem ter se libertado, tendo se mandado para o mundo, a maioria continua a sofrer uma fascinação inconsciente que acaba por ameaçar de paralisação a conquista de um eu independente ou o seu desenvolvimento. Neste sentido é que a mãe se torna um não-eu, sempre hostil, em razão do temor que inspira pela dominação inconsciente exercida.

A constelação de Perseu, por sua relação com a de Andrômeda, a princesa por ele libertada, é também conhecida pelo nome de a do Príncipe. Simbolicamente, príncipes representam a promessa de um poder autêntico, independente, qualquer que seja o domínio considerado, o contexto em que apareçam como personagens em mitos, lendas, folclore etc. É ele o primus inter pares. Por isso, falamos de príncipes dos poetas, das artes, das ciências, do futebol . O príncipe é também a imagem de um estado adolescente de vida, ainda não totalmente controlado. Esse estado, para ser ultrapassado, precisa de provas. O príncipe está mais para o lado do herói que do sábio, estado a que, com o tempo, ele poderá ter acesso. 

A BELA ADORMECIDA E O PRÍNCIPE
  A figura do príncipe sempre aponta para a metamorfose de um eu inferior num eu superior, entrando sempre a força do amor (do feminino) como agente desta transformação. A grande vitória do príncipe é tanto a morte do monstro como a recompensa de um amor total. Outro, aliás, não é sentido da famosa história do Príncipe e da Bela Adormecida. Não podem ser esquecidas também todas as conotações cósmicas e sexuais embutidas neste tema. A libertação da princesa pelo príncipe pode significar a ação de deuses solares libertando ou acordando a adormecida aurora.

No mito, Perseu é o herói que encarna a alegoria da passagem iniciática na qual, depois de sua efebia (uma prova, a morte da Medusa) ele se une a uma princesa por ele libertada. Princesas são simbolicamente, nos mitos, nas lendas, nos contos, aspectos do inconsciente masculino. Personificam, como anima, todas as tendências psicológicas femininas do inconsciente masculino, que ele não entende bem ou, como é o mais comum, delas nada suspeita. Tendências que ele, o príncipe, o herói, precisa resgatar, libertar, para dar à sua personalidade uma dimensão cósmica, ou seja, para que ele possa viver coletivamente, humanitariamente, espiritualmente, se quisermos.

Perseu é um herói que não segue o modelo clássico. Ele só teve um pai divino (Zeus); nunca teve, como os demais, um pai divino e um
pai mortal, putativo) e, pelo que consta, ao contrário de todos os heróis, terminou os seus dias em paz com Andrômeda, com muitos filhos. Lembro que o nome da princesa etíope, Andrômeda, é formado por suas palavras gregas, aner, andros,  e medein, que significam, respectivamente, homem corajoso, viril, herói, e cuidar, de comandar, ou seja, Andrômeda é “a que reina sobre o homem” ou “a que dá limites ao homem”. Ou, se quisermos, o homem corajoso, viril, é aquele que sabe conscientemente integrar à sua personalidade o princípio feminino.

A constelação de Perseu vai de 12º Touro a 11º Gêmeos. A sua estrela mais brilhante é Marfak, alfa, hoje a 1º23´ Gêmeos. Depois, como beta, temos Algol, a 25º28´ Touro, e Capulus, um cluster a 23º30´ Touro. Segundo Ptolomeu, as influências de Perseu, no seu todo, apontam para uma natureza aventureira, dão inteligência,
MEDEIA E OS FILHOS (DELACROIX)
mente poderosa, mas, às vezes, ações questionáveis sob o ponto de vista ético. Sobre Algol muito se fala e escreve. É chamada de Caput Medusae, aparecendo associada a figuras femininas do mito e das religiões como Lilith entre os judeus, como Kali, Bhairavi e Chinnamasta no Tantrismo da Índia, como, dentre muitas outras, as mênades, Hécate, Electra, Medeia, Fedra e Lâmia na mitologia grega.


Afora outras relações que Algol permite estabelecer, lembro  que na literatura, no âmbito feminino, encontramos interessantes exemplos de autores e personagens que vivenciaram ou puseram em circulação o arquétipo, que sempre aponta para o rompimento do que é oficial, dos limites por ele impostos, muitas vezes 
tragicamente. São exemplares nesse sentido mulheres ou personagens que procuraram viver a vida e/ou o amor livremente no que eles podiam ter de mais profundo e intenso, válidos todos os sacrifícios para se chegar a um absoluto, no mais das vezes, sempre fugidio ou negado. Como nomes que fazem parte deste universo, cito Safo de Lesbos, a Princesa de Clèves, George Sand, Mariana Alcoforado, Florbela Espanca, Ana Karênina, Elvira Madigan...

Ainda sob o ponto de vista astrológico, é preciso esclarecer que se
MOZART
Algol, por um lado, pode trazer ideias de violência, obsessões, autodestruição; sempre um ponto onde se acumulam sentimentos intensos, ela pode, positivamente, por outro, nos pôr diante da liberação de energias muito poderosas, como temos, por exemplo, nos temas astrológicos de Mozart e de Albert Einstein.

No zodíaco, a constelação de Câncer, que os antigos egípcios associavam ao escaravelho, se estende de 22º Câncer a 17º Leão. Sua forma é a de um caranguejo, animal criado pela deusa Hera para auxiliar a Hidra de Lerna, monstro enfrentado por Hércules em seu oitavo trabalho. Esmagado pelo herói, o crustáceo foi colocados nos céus em agradecimento aos serviços prestados. Na figura celeste dele, na região da cabeça, há uma nebulosa chamada Manjedoura, Colmeia ou Presépio (hoje a 6º15´Leão), uma região que era vista pelos antigos como o “berço da vida”. Esta nebulosa está associada a tempestades e inundações. É de se ressaltar que dentre as oitenta e três estrelas da constelação de Câncer, como se disse,  nenhuma se destaca por sua magnitude. Na tradição cristã, ela recebeu o nome de O Sepulcro de Lázaro. A mais brilhante estrela de Câncer, alfa Cancri, é Acubens (hoje em Leão a 12º57). Esta estrela é a que carrega o simbolismo do escaravelho egípcio, lembrando ressurreição.

Através do mito de Dioniso, duas estrelas de Câncer receberam os nomes de Asno do Sul e Asno do Norte. Estes animais foram montados por Dioniso e por Hefesto quando da Titanomaquia, a luta dos deuses olímpicos contra os titãs. As imagens da  constelação de Câncer foram incorporadas mais tarde pela iconografia cristã não só para através delas se montar o cenário do nascimento de Cristo e para, quando adulto, fazê-lo entrar triunfalmente em Jerusalém (Domingo de Ramos). O asno tanto significa estupidez, ignorância, obscuridade, como paz, pobreza, humildade e paciência. É sob este último aspecto que ele é visto como montaria dos deuses em muitas tradições gregas. Quando selvagem, o asno representa os ascetas do deserto, os solitários.

DOMINGO DE RAMOS (GIOTTO)
 Associada também a Câncer encontramos a constelação de Argo Navis (10ºCâncer-20ºLibra), subdividida em quatro: Carina (casco), Puppis (popa), Vela (vela) e Pyxis (mastro). No Egito, era a barca do deus Osíris e de Ísis. Entre os gregos, era a nau dos argonautas; entre os judaico-cristãos, era a arca de Noé. Qualquer que seja a tradição, a ideia é sempre a mesma: é em Câncer que realmente começa a vida como viagem e com ela as proposta de buscas, de lugares distantes, mesmo os julgados inalcançáveis. 

ARGO NAVIS
 Finalmente, não podemos esquecer das constelações do Cão Maior (0ªCâncer-0º Leão) e do Cão Menor (18º-28º Câncer), interpretadas em cada cada tradição de um modo diferente, sempre ligadas a Câncer. A principal estrela desta última, Procyon, como seu nome indica, faz uma alusão ao nascimento de Sirius (Sothis para os gregos), uma das estrelas mais brilhantes do céu, símbolo do eu que virá. É a estrela da canícula, a que traz o verão e que no Egito, como estrela de Ísis, anunciava as cheias do Nilo. A melhor leitura que podemos fazer desta constelação, de Sirius e de suas ligações com a de Câncer é, sem dúvida, através da Lâmina XVIII do Tarot, que tem o nome de A Lua.