terça-feira, 24 de julho de 2012

HIPSTER, BEAT E ZEN*


   

Século XX, fim da segunda guerra mundial, década dos anos 50. Vivíamos num tempo de violência, violência física e moral. A História estava repleta de nomes sugestivos: Nagasaki, Coreia, Dachau, Hiroshima, Hungria, Congo etc. O homem então estava enquadrado: Nazismo, Fascismo, Capitalismo, Comunismo. Era o tempo das mãos sujas, como diria Sartre. Os anos que se seguiram à segunda guerra mundial trouxeram o espectro atômico, as neuroses, os conflitos, as desilusões. As gerações anteriores haviam legado duas guerras e a ameaça de uma terceira. Se as verdades defendidas e proclamadas eram desmentidas no dia seguinte, o que fazer? Se todas as formas de felicidade - família, religião, pátria, trabalho – nada significavam, qual a saída? Se a vida não passava de uma longa e tediosa acumulação de fins, para que viver? E os jovens viram-se solitários, incapazes de responder às perguntas que a nova situação propunha.



 


Foi nesse panorama desolado que um fenômeno novo apareceu: o hipster. A origem da palavra é discutível. Hip tanto designa alguém que está “por dentro” como pode se referir a um consumidor de ópio ou a um enlouquecido, junkie. Hipped é também o que está em desvantagem socialmente, o que não tem nada a ver com o que está acontecendo. A palavra começou a ser usada em 1951 ou 1952 nos meios literários não oficiais e musicais (jazz), sempre associada às drogas. Depois é mencionada algumas vezes nas obras de Chandler Brossard (Who Walk in Darkness) e de Allen Guinsbert (Howl); Jack Kerouac, em On the Road, usa pela primeira vez a fórmula Beat Generation, que é adotada, e somente em 1958 surge Beatnik, palavra criada pelo colunista Herb Caen, de São Francisco. Beat tanto pode ser beatífico, santificado, como batida de jazz, marcação do ritmo, como cansado (da hipocrisia) ou como estado de espírito; nik é um diminutivo, pejorativo em ídiche. Todavia, já em 1957, Normam Mailer (The Naked and The Dead), num ensaio intitulado The White Negro, publicado em Dissent, procurara fazer a análise desse novo fenômeno, das suas causas, e do novo herói, o hipster, que rejeita a permanência, a ordem imposta pelos squares (o burguês, o convencional), a continuidade e todas as verdades, exceto, como ele diz, the instantaneous ones.


Nos Estados Unidos, estes novos bárbaros, que escolheram o presente para o compasso de suas vidas, constituíram a chamada Beat Generation. Kerouac, na sua primeira novela, The Town and The City, deu, em profundidade, uma definição à fórmula, trazendo para a superfície o mundo subterrâneo que conheceu em Nova York, povoado por essa estranha casta de americanos, dispostos a levar as suas experiências às últimas consequências. Na Inglaterra, com algumas diferenças, eles eram os Angry Young Men. E é justamente porque muitos dos beatniks e dos angry young men traduziram artisticamente as suas experiências e perplexidades de jovens do meio do século XX que os seus depoimentos têm valor para nós. Contudo, não devemos esquecer que, se o hipsterismo é particularmente importante nos EUA, o fenômeno encontrava também os seus equivalentes na Inglaterra, na França, na Suécia, na Polônia, na União Soviética e em muitos outros países.

O hipster americano era oriundo do proletariado e vivia no submundo das grandes cidades como Nova York, São Francisco, Los Angeles, Chicago. Ele podia ser um músico de jazz, ganhar a vida como um pequeno criminoso, assaltando supermercados ou postos de gasolina, ou viver de biscates em Greenwich Village ou, pelas estradas do país, numa fazenda, trabalhando nas colheitas. Alguns, todavia, encontraram refúgio em lugares mais rendosos, como cômicos de televisão ou artis­tas de cinema (James Dean). O hipsterismo desenvolveu-se grandemente nos EUA devido, principalmente, à difusão do jazz no país. Vale notar aqui que é o jazz que há de fornecer a inspiração formal para as obras dos beatniks. Kerouac diz o seguinte: Quero ser considerado um "jazz-poeta", improvisando um longo blue numa "jam-session", domingo à tarde... Outro beat afirma: "O escritor espontâneo deve possuir espírito particularmente ágil e extraordinariamente impressionável, capaz de armazenar não pedaços episódicos dos acontecimentos, mas completas e elaboradas associações". E conclui Kerouac: A linguagem é fluxo tranquilo, a partir da mente, de ideias, palavras pessoais secretas, improvisado (como a música de jazz) sobre o tema da imagem.


  Pelo jazz, o hipster chegou ao negro, que é a fonte a­limentadora da sua filosofia existencial, juntamente com os outros dois grandes rebelados da sociedade americana:
o delinquente juvenil e o junkie boêmio. Mailer, no seu já citado ensaio, diz: "Em lugares como Greenwich Village, completou-se um ménage-à-trois. O boêmio e o delinquente viram-se face a face com o negro, e o hipster tornou-se um fato da vida americana. Se a marijuana foi o anel de noivado, o filho foi a linguagem hip, pois sua gíria expressa estados abstratos de sensação no qual todos podem tomar parte, pelo menos todos que forem hipsters. E nesse casamento do branco com o negro, foi o negro que trouxe o dote cultural... O hipster absorve a síntese existencialista do negro e, para todos os efeitos práticos, pode ser considerado um "white negro". Assim, brancos e negros, que renegaram os mundos de onde provêm, porque em ambos há "squares", passaram a viver marginalmente sob o signo da violência.


Com efeito, o negro americano teve que escolher desde cedo (os livros de Richard Wright são bem esclarecedores): ou ele se curva, se humilha, se submete, ou então ele elege a violência como meio de vida, isto é, ele passa a dizer não aos squares, tanto brancos como negros. E, como o negro, o hipster vive no presente, pois ele deixava de lado qualquer forma de antecipação para agarrar-se somente ao que podia revelar a verdade do seu momento. Todos os contactos do hipster eram, por isso, imediatos e intensos: um diálogo sempre no presente. Com esta atitude "presentista", ele procurava desviar conscientemente a realidade do tempo do devenir como fator histórico. Dava-se o mesmo com o negro que vivia na violência. Sem futuro, o negro tinha que viver num eterno presente. Todos os seus atos eram provisórios, com um sentido limitado ao dia, ao momento em que eram praticados. Era uma forma extrema de revolta; uma espécie de anarquismo desesperado que engendrava facilmente o crime, como temos no herói de Native Son, de Richard Wright.


Como o hipster era jovem, a problemática do sentido da sua vida não apresentava, a rigor, nada de doentio, como tampouco devia-se considerar patológica a angústia do homem que lutava por esse mesmo sentido. O que havia era uma recusa lúcida, não se deixar influenciar pelo complexo social, dominado pelo squares nem se deixar educar com vistas a esse conjunto O hipster procurava criar valores de situação para contrapô-los aos valores eternos do square. Só assim, segundo ele, a existência do homem se destacaria como algo essencialmente concreto. Só deste modo, sob esta forma concreta e imediata, adquiria a vida humana um valor de obrigatoriedade moral, peculiar e singular, apto a realizar as suas possibilidades originais, que não se apresentavam senão uma vez.  Ninguém, dizia o hipster, virá ao mundo com as mesmas possibilidades nem voltará a tê-las; as ocasiões que se apresentavam eram únicas.


Daí a aproximação entre o Zen a “beat generation”. D.T.Suzuki, nos seus Ensaios, que divulgaram o Zen no Ocidente, dizia: "Se o intelecto fosse capaz de trazer uma nova ordem à inquietação, não haveria necessidade de filosofia, após ela ter sido sistematizada por um grande pensador, um Aristóteles ou um Hegel. Mas a história do pensamento prova que cada nova estrutura criada vem sempre a ser posta de lado pelas seguintes. Esse constante construir e destruir tem sentido como maneira de ser da filosofia, pois a natureza inerente ao intelecto pede que isso aconteça. Mas quando se trata da própria vida, não pode­mos esperar pela última solução oferecida pelo intelecto. Não podemos suspender nem mesmo por um momento nossa atividade de vida à espera de que  a Filosofia nos revele seus mistérios. Que os mistérios permaneçam como estão viver nós podemos. A fome não pode esperar até que se faça uma completa análise do alimento e se determine o valor nutritivo de cada elemento".


O Zen é um meio e uma visão de vida que não pertencem a nenhuma das categorias formais do moderno pensamento ocidental. Não é uma filosofia nem uma religião; não é uma psicologia ou um tipo de ciência.  Historicamente, o Zen pode ser considerado como a realização de antigas tradições culturais hindus e chinesas que se fixaram profundamente na cultura japonesa e que, depois da segunda guerra mundial, passaram a exercer uma influência considerável nos meios intelectuais e artísticos do Ocidente, principalmente norte-americanos.


 Algumas das principais propostas do Zen já estavam de certa forma embutidas na obra dos escritores da beat generation, duas em especial: procurar livrar o homem do dualismo, partindo da compreensão do absurdo das escolhas. “Nós devemos, dizia o Zen, começar por sentir a relatividade e por conhecer que a vida não é uma situação da qual há algo para se extrair.” A outra proposta se referia à necessidade de se viver no aqui e no agora. Ação e instantaneidade. 



Enquanto a experiência do Zen não implicava nenhum curso de ação, pois que não havia fins, não havia motivações, ela se voltava, sem hesitações, para qualquer coisa que lhe fosse apre­sentada. Era o caso dos heróis de Kerouac (On the Road). A mente passava, então, a funcionar sem blocos, sem entraves, sem vacilar frente às alternativas. Não pense! Aja!, dizia o mestre Zen.  O que tivemos então foi uma libertação do tempo. O Zen nos diz que, se abrirmos os olhos e virmos claramente, tornar-se-á óbvio que não há outro tempo a não ser o do instante vivido; o passado e o futuro são abstrações sem qualquer realidade. Ou, como disseram os hipsters e os beatniks, só o presente é eternamente real. Ou, ainda, como disse Jack Kerouac, ao responder à pergunta “Andar para onde?” “Não sei, mas devemos andar”.






É evidente que o Zen que chegou aos escritores da beat generation nada tinha de ortodoxo, sempre uma visão extremamente pessoal. Aliás, vale lembrar, quanto a essa questão da “pureza doutrinária” que o maior divulgador do Zen nos EUA foi o inglês Allan Watts, que para lá se mudou em l938. Instalando-se na Califórnia, São Francisco mais exatamente, como professor universitário, dali espalhou o Zen através de textos e palestras. Watts, salientemos, nunca foi bem aceito pelos meios oficiais do Budismo Zen (ramificações japonesas) instalados no país nem pelos scholars e psicólogos que na esteira de Suzuki teorizaram sobre a doutrina.




A relação entre o Zen e a beat generation (Kerouac, Gregory Corso, Allen Ginsberg, 
Anatole Broyard, Lawrence Ferlinghetti e outros) foi, à época, claramente apontada em muitas publicações (essa dimensão escapou do filme de Walter Salles e dos que se meteram a falar sobre o seu filme). A Chicago Revue, por exemplo, divulgou, à época, textos de Jack Kerouac juntamente com matérias sobre o Zen. Em 1959, para jogar mais luz (ou mais poeira) sobre a relação, foi publicado Beat Zen Square and Zen, em paperback, de autoria do próprio Allan Watts.  Jack Kerouc, lembremos, desde o início dos anos 50 se interessara pelo Zen; tem na sua bibliografia um livro (Dharma Bums, Vagabundos do Dharma) em que essas questões são abordadas, um livro dedicado a um poeta chan (Zen chinês), no qual alguns procuram descobrir a personalíssima espiritualidade de Kerouac. 

 


*O pretexto para a reapresentação deste artigo (modificado) é o filme “Na Estrada”, de Walter Salles, ora em exibição em alguns cinemas de São Paulo. Este texto foi publicado, em maio de 1961, no jornal A Tribuna, de Santos (in Literatura, Arte, Cultura), a pedido de Geraldo Ferraz.