quinta-feira, 21 de abril de 2011

ANOTAÇÕES SOBRE O ABSURDO NA LITERATURA *

A literatura grega, principalmente Homero, pai da literatura ocidental, é   rica em exemplos de comportamentos humanos que fogem da normalidade, embora a Grécia, como um todo, para muitos estudiosos, tenha passado à História como um modelo de racionalidade. Mesmo uma leitura desatenta do poeta da Ilíada nos mostra um bom número de atos contra a razão, condutas imprudentes, inexplicáveis, antisssociais, absurdas.


Até era a palavra que os gregos usavam para descrever um estado de espírito que levava o homem a uma perda, momentânea ou não, da consciência, uma espécie de loucura que o fazia agir irracionalmente. Por trás desse estado havia uma potência divina (1) a empurrar o homem, por razões diversas (inveja que os deuses tinham dos humanos, punição etc.) para fora dos limites da normalidade, do socialmente aceitável. Dizia-se, então, que assim agindo o homem ficava tomado pela hybris, impulso que o levava ao descomedimento.
Esse conceito de ate tinha também uma característica muito peculiar: não implicava na ideia de culpa, isto é, o “possuído” não se sentia culpado pela transgressão, já que ate se dava pela intervenção divina, tinha um caráter sobrenatural. Mesmo que ela gerasse um arrependimento, que houvesse uma purgação, não havia a ideia de pecado, de culpa. Só bem mais tarde, com o fim do mundo greco-romano, e com a crescente influência judaico-cristã, é que surgem o pecado e a culpa. Com maior ou menor intensidade, estas duas últimas ideias, acabarão por permear toda a vida social do Ocidente e obviamente a sua literatura.
A Idade Média literária começa tarde, talvez pelo século XII (a Canção de Rolando, um dos seus marcos iniciais, só foi composta por volta do ano de 1100). As canções de gesta, as novelas de cavalaria, a produção do amor cortês, as cantigas, no seu todo, com leves exceções, trazem a marca da moral oficial, a chancela da ordem. Os corajosos cavaleiros, sejam personagens históricas ou legendárias, se batiam sempre por seu Deus, pelo seu senhor ou pela sua dama, senhora, amiga. Se esta é a visão geral que a História registra e que a literatura estampa nas suas produções, não podemos esquecer que havia, contudo, uma crônica subterrânea deste tempo a falar de muita violência, de comportamentos inusitados, de roubos, saques, banditismo, de estupros. De qualquer maneira, porém, tudo isto ficava contido pelo social, as transgressões não implicavam uma recusa e sempre havia a possibilidade de ajustes pelos donativos e pela absolvição.

É só a partir do século XVII, com La Princesse de Clèves, de Mme. de La Fayette, que esse quadro começa a ser alterado realmente, pelo consciente afastamento da moral oficial. Aqui começa a morrer de fato o herói social. A fórmula de que l’amour doit détruire tous les préjugés será levada às últimas consequências nos séculos seguintes não só no plano moral mas, sobretudo, no social. Nesse livro se escondem, efetivamente, os primeiros sintomas da destruição que viria mais tarde.
Com Dostoiévski, já no século XIX, fecha-se o ciclo inicial, as cores se tornam mais carregadas. O irracionalismo irrompe de forma clara e precisa, sem subterfúgios ou entrelinhas. Agora, em nome do social se rejeitava a sociedade como um todo. Quando Ivan Karamazov toma o partido dos homens e proclama a sua inocência: minha indignação persistirá mesmo que eu esteja errado, iniciava-se um longo processo revolucionário ainda não encerrado na nossa literatura ocidental. O homem transgredia e assumia a responsabilidade pela transgressão. O herói, antes ao lado do social, começava a desaparecer; no seu lugar, uma estranha galeria de revoltados, galeria esta inaugurada pela Princesa e da qual fariam parte Valmont, Manon Lescaut, Julien Sorel, os irmãos Karamazov, Joseph K., Stephen Dedalus, Roquentin, Gregor Samsa, Meursault e muitos outros.
No século XIX, o processo ficava assim: havia que destruir ou, na pior das hipóteses, encontrar um correlativo para a razão. Apagar as luzes acesas no século XVIII pelos iluministas franceses. Não é assim por acaso que o personagem das Memórias Subterrâneas diz haver no homem, ao lado do espírito construtor, o destruidor; a razão, prosseguia, poderia ser uma boa coisa, mas era apenas a razão, que só satisfazia a capacidade humana de raciocinar na medida em que o desejo fosse a manifestação de toda a vida humana, inclusive da própria razão e de todas as inquietações possíveis. Entenda-se: era preciso destruir a razão dos séculos XVIII e XIX. Esta destruição significava, num primeiro momento, a rejeição do social, do econômico, do político, o tripé sobre o qual se assenta o conceito de racionalidade. Esta rejeição, na literatura, alcançaria boa parte da produção do final do século XIX e do princípio do século XX.
A partir da primeira guerra mundial, pela incorporação de questionamentos filosóficos, alarga-se ainda mais esse espectro da irracionalidade para se chegar às formulações mais definidas da corrente nas obras de escritores franceses da metade do nosso século. Não se discute mais o social, o econômico, o político, discute-se agora a existência. A palavra absurdo circula mais intensamente nos meios literários. Absurdo tanto no sentido corrente, de se ir contra o que é comum, de se rejeitar o habitual (absurdo, de ab, afastamento, e surdus, relativo ao ouvido, é etimologicamente o inaudito, o diferente do que comumente se ouve), como no sentido filosófico, de se ir contra a razão.

A Europa do século XIX, principalmente a dos anos posteriores a 1850, estava confusa. Na Rússia, Dostoiévski fala profeticamente da lenda do Grande Inquisidor. Lembremos que o mês de janeiro de 1878 marca o nascimento do terrorismo russo, quando Vera Zasulitch, na véspera do processo dos populistas, mata o general Trepov, governador de São Petersburgo. Este acontecimento precipita uma série de atentados e de repressões (2), pondo em questão, para destruir, anos mais tarde, todos os valores de uma organização social. O czarismo, e tudo o que ele representava, não era mais a Civilização, eterna e universal, mas uma forma perecível como as outras.
A princípio, ligou-se o irracionalismo ao ateísmo. Depois, ao se deslocar o eixo para o ocidente europeu, a atitude deixou essa visão unilateral. A “fome de imortalidade” que possuía Unamuno traduz certamente, em termos metafísicos e religiosos, as meditações dos personagens de Dostoiévski. Unamuno, protagonista em carne viva de sua própria novela metafísica, foi talvez mais interessante que os seus tipos novelescos, a insultar a razão e a sentir o nada como algo mais aterrador que o inferno: cochina razón... no me someto y me rebelo contra ella.
No capítulo III do Del Sentimiento Trágico de la Vida está claro: Más, más, y cada vez más; quiero ser yo, y sin dejar de serlo, ser además los otros, adentrarme la totalidad de las cosas visibles e invisibles, extenderme a lo ilimitado de lo espacio y prolongarme a lo inacabable tiempo. De no serlo todo y siempre, es como si no fuera, y por lo menos ser todo yo, y serlo para siempre jamás. Y ser todo yo, es ser todos los demás. O todo o nada!
E será que não poderíamos dizer o mesmo de Bernanos de Sous de Soleil de Satan, para quem “tudo deve ser sempre recomeçado”, de Graham Greene, de Gide? Aliás, é oportuno ressaltar que Unamuno, prefigurando já em grande parte certa estética e filosofia do absurdo, não foi lembrado pelos teóricos da corrente. Em especial por Camus, que em Le Mytbe de Sisyphe nos informa sobre os antecedentes dessa corrente, mas ignora este, o unamunesco, tão direto e tão próximo.

em pleno século XX, entre as duas guerras mundiais, o tema do. absurdo é retomado principalmente pelos escritores franceses: Malraux, Camus, Sartre. Camus, por exemplo, criou um personagem, Calígula, cuja grandiosidade absurda não tem paralelo em nenhum outro do teatro do absurdo. A peça é, provavelmente, dentre as modernas, aquela que mais próxima está, quanto aos cânones da tragédia, das regras definidas por Nietzsche; Calígula é o exemplo mais completo do que poderíamos chamar de teatro intelectual, não pela falta de vibração humana, mas pela maneira de como a experiência anímica e vital se traduz em fórmulas mentais.
Tematicamente, Camus não inventou nada. As brutalidades, os horrores e extravagâncias de Caio Calígula estão descritas, há mais de vinte séculos, em Os Doze Césares, de Suetônio. Embora em Suetônio os ingredientes nos sejam oferecidos com maior crueza e abundância, em Camus ficam ressaltados apenas os traços mais convenientes. Aquilo que no escritor romano é simples informação, em Camus adquire relevo único e uma característica dramática obsedante. “Até aqui falei de um príncipe; agora falarei de um monstro”, escreve Suetônio ao chegar a certa altura do seu relato. Neste momento, começa o drama do escritor francês.
Calígula é antes de tudo, antes de significar o desgosto pelo homem e pelo mundo (“este mundo, diz ele, é insuportável como está feito. Necessito da lua ou da imortalidade, de alguma coisa que seja demente talvez, mas que não seja deste mundo”) a personificação de certa angústia metafísica, o afã do absoluto, entendido como liberdade suprema. E por este caminho Calígula vai até o fim para chegar ao fundo: quando começa a falar, tudo parece que se quebra, as convenções são reduzidas a pedaços, as belas construções, a lógica. Não que esta lhe falte, ao contrário; Calígula mergulha no seu raciocínio. Crueldade, covardia e valor coexistem na sua personalidade, tão ousada e desesperadamente que até chegamos a pensar nos surrealistas, que, de certa forma, pretendiam realizar na ordem do conhecimento o que Calígula queria fazer no plano da ética.
Do mesmo modo, Le Malentendu, do mesmo Camus, representa uma expressão direta do absurdo, embora a importância desta peça, sob o ponto de vista literário, seja inferior à outra. O tema é atroz e vulgar, compreendendo tanto o Grand-guignol como o telegrama sensacionalista. Uma variação brutal da parábola do filho pródigo. A história é simples: mãe e irmã, donas de um hotel, não reconhecem seu filho e irmão, respectivamente, quando este retorna incógnito vinte anos depois (algo de As Bacantes nesta peça, sem dúvida, de Eurípedes). Tratam-no como um viajante qualquer e depois o matam para roubar. Anedota “literária”, construída mentalmente, composta com cuidado em todas as suas partes, anedota da qual outro escritor, não obsedado como Camus pelo absurdo, retiraria certamente muito proveito. E Camus nos dá, com sobriedade, linguagem simples, a ilustração mais perfeita deste universo descentrado, onde o equívoco é a regra e nada é reconhecido, Não nos esqueçamos, contudo, que a peça foi escrita no inverno de 1942-1943: Europa de privações, de quedas, exílios e ilusões perdidas definitivamente. Os outros livros de Camus, como A Peste e O Estrangeiro, por exemplo, não são mais também do que uma longa e brilhante explanação sobre o absurdo, sobre a sensibilidade absurda que se encontra dispersa pelo século.

Não importa que Camus, muito lucidamente, chame de “suicídio filosófico” a atitude existencial. Ele também foi queimado pela corrente, por essa lava vulcânica. Tratava-se para ele de saber se a vida deveria ter um sentido para ser vivida. A conclusão a que chega é a de que viver é fazer viver o absurdo. Paradoxo, pirueta literária, saída pela tangente? Não, pois ele não temeu o abismo, tem consciência dele e isso permite que ele se mantenha numa posição de lúcida vigília, já que se o absurdo aniquila as possibilidades de liberdade eterna, devolve e exalta, ao contrário, as da liberdade de ação.
Isto mesmo, com outras palavras, estava em Sartre, em O Ser e o Nada, quando ele afirma que o concreto é o homem no mundo, esta união homem-mundo. Com esta colocação, Sartre invertia o cogito, ergo sum cartesiano. A tese existencial ia para o outro lado. Enquanto Descartes colocava a filosofia do século XVIII sob a dependência da essência, o existencialismo a colocava na dependência da existência (há certamente algo do budismo nesta posição...). Ou seja, conhecer nada mais seria que um modo de existência decorrente de estar no mundo. Mesmo que os deuses nos tivessem dado o efêmero, o provisório, o precário, não importa. O homem era, afinal, o responsável. Se para Heidegger a existência se revelava como “cuidado”(3), para Sartre, num primeiro momento, ela aparecia como “náusea”, ou melhor, como contingência, ansiedade, absurdo.
Quando Roquentin, o protagonista de A Náusea, de Sartre, tem no jardim público a “iluminação” do que significa existir, seu solilóquio desemboca naturalmente no absurdo. E continuando ele faz uma série de digressões, considerando o absurdo como algo relativo no mundo dos homens, apesar de isto lhe ter causado, ao contemplar a raiz nodosa de uma árvore, a experiência do absoluto, sinônimo de absurdo. Comprovação idêntica à de Camus, em O Mito de Sísifo, quando escreve que “os homens também segregam o inumano em certas horas de lucidez”. É por isso que Sartre designará aqueles que tentam justificar a sua existência como necessária por um termo muito pouco filosófico, são os salauds, os habitantes de Bouville, os “porcos”, cheios de comédia e de ilusões. Mas será nas novelas de Kafka que o absurdo encontrará a sua mais perfeita corporificação. Sartre, por exemplo, fala muito no “viscoso”. Nenhuma das criações de Sartre ou de Camus, contudo, supera a “viscosidade” de A Metamorfose, a angústia suspensa de O Processo ou o sentimento do inacessível de O Castelo.


Esses escritores do absurdo, que chegaram ao fim, acabaram possibilitando a volta do homem: uma a uma as portas foram abertas, abriram-se todas e nada havia. Na nudez desolada da paisagem foram eles que recolocaram, porém, a questão da ação do homem na história dentro de uma outra perspectiva. Para certos críticos idealistas, a negação e o absurdo que as obras de Camus, Kafka ou Sartre mostram não poderiam levar senão ao desespero. Muito se escreveu sobre as angústias existenciais. Ao contrário, contudo, cortada a esperança do absoluto, foram eles que nos fizeram de certa maneira retornar à terra, ou melhor, foram eles que nos fizeram ver que estamos “condenados” a ela retornar, porque dela ninguém escapa. Aliás, é como está em Hesíodo, poeta grego do século VIII antes de Cristo: “Terra (Geia) de amplo seio, de todos assento (sede) irresvalável sempre” (Teogonia).
Esta “condenação” era a constatação direta de que o homem não estava determinado por nenhuma essência previamente dada. A obtenção de uma essência não dependeria de nada, de ninguém, a não ser dele mesmo. É por isso que Sartre conclui que só através de um compromisso, do seu compromisso, poderá o homem chegar à essencialidade. Em O Existencialismo é um Humanismo, Sartre esclarece este ponto ao afirmar que o homem é ação e que ele só existe enquanto realiza o seu projeto. Não estando determinado por nada, cada indivíduo é o que faz de si mesmo, tornando-se assim responsável pelo que é. O homem, por isso, nada mais será do que o seu próprio do projeto.
(1) - Até era uma divindade grega, filha de Zeus e de Eris, deusa da discórdia. Personificava o delírio da razão, fazendo com que os possuídos por ela se tornassem vítimas das próprias palavras que proferiam. Deuses e mortais não escapavam dela. Zeus a expulsou do Olimpo para que viesse morar entre os homens.
(2) - O tema será aproveitado por muitos escritores. Camus o utilizará para Les Justes.
(3) - A fonte do conceito de cuidado está nos gregos. A forma de viver dos humanos é preocupação constante, cansaço. A fadiga é a forma extrema da preocupação (keedos). Os deuses são isentos de preocupação, de cuidado. Viver no desgosto é próprio dos homens, diz Aquiles na Ilíada.
*Publicado em 1991, na revista Artéria.