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domingo, 20 de junho de 2021

SÍNDROMES

                      

Como já vimos, síndrome é etimologicamente uma reunião tumultuosa (dromos=corrida, afluência de manifestações), de vários sintomas ou sinais que aparecem em relação a determinado estado patológico e que, no seu todo, permite orientar um diagnóstico. Já sintoma é indício, sinal (syn=junto + ptosis, queda; sinais reunidos, algo que cai num determinado lugar ao mesmo tempo). A medicina e a psicologia caracterizam uma síndrome como um conjunto de sinais ou sintomas observáveis em vários processos patológicos físicos ou psíquicos diferentes e sem causa  aparente específica. Como acontece com os complexos, muitas síndromes são designadas a partir de personagens da mitologia, de histórias e de lendas. A palavra síndrome também é usada para definir certas manifestações clínicas de uma ou várias doenças independentemente  da etiologia que as diferencia. Várias patologias ou idiopatias podem se esconder numa mesma síndrome. As síndromes, na área médica, geralmente são designadas pelo nome do médico ou cientista que primeiro as descreveu (síndrome de Down, por exemplo).  

Vamos a elas, pois: 

PÂNICO

PÂNICO – Esta síndrome é definida como um transtorno de ansiedade que produz geralmente, sem evidência de uma causa aparente, medo, muita apreensão, temores, tidos como infundados, levando a pessoa por eles tomada a “sentir” que algo indefinido e ruim está para lhe acontecer. Recorrente e inesperado, o transtorno acaba gerando, antes das crises, estados de preocupação constantes com a desconfiança de que ele esteja para ocorrer novamente, fazendo a pessoa imaginar que, numa delas, não conseguirá se controlar. Transpiração, aceleração de batimentos cardíacos, dor no peito, tontura, sensação de desmaio, calafrios, palidez são alguns de seus variáveis sintomas. 

PAN
Para entender um pouco melhor esta síndrome (pânico) atualmente, que parece ter um caráter “epidêmico”, segundo a divulgação que dela fazem os meios de comunicação, temos que ir ao deus Pan, da mitologia grega. Pan, em grego, quer dizer, tudo, todo. Filho do deus Hermes, disforme e monstruoso, teriomórfico, com a cabeça e os pés caprinos, com o restante do corpo humano, peludo, era o deus da fecundidade e da potência sexual. Brutal em seus desejos e terrível nas suas aparições, anunciadas por gritos apavorantes, Pan provocava o terror naqueles que se aventuravam nos territórios em que vivia sem honrá-lo devidamente. Estes territórios se situavam no chamado mundo desconhecido, que ficava no  grande Todo, além dos territórios conhecidos, simbolizados estes pela casa familiar. Estes territórios familiares eram, na mitologia grega, governados e guardados por Ártemis, a grande deusa lunar, irmã gêmea de Apolo, deus solar.

Quem ousasse ultrapassar os territórios lunares, já deveria ter aprendido a se separar dos lugares conhecidos, simbolizados, além da casa familiar, pela gruta, o que significaria sempre uma vitória sobre os temores do desconhecido. Ártemis e Pan nos dizem que a vida é feita de passagens, caminhada em direção do grande Todo, a ser refeita constantemente, a fim de que, em meio às provas e dificuldades, aprendamos a conquistar e a preservar a nossa necessária autonomia. Ártemis, lembremos, é a deusa das passagens, aquela que protege tudo o que entra na vida, as crias, os brotos, as ervas novas, os riachos, e que tem que caminhar em direção de uma vida “adulta”.

Cavernas, grutas, todos os lugares sombrios e profundos, são arquétipos maternais, lembrando vida inconsciente.  Eles se associam nos mitos aos ritos de iniciação, a ideias de dificuldades e de provas, sempre um convite àquele que entrou na vida para que parta em direção do grande Todo a fim de construir a sua personalidade.

Aqueles que não conseguem se separar da casa familiar, da gruta, são os lunares, os que ficam presos aos seus hábitos, aos seus automatismos corporais, às suas pressões atávicas, aos seus condicionamentos e idiossincrasias. São os que permanecem ou demoram-se demais na infância, preferindo o dentro ao fora, inclinando-se à esquizoidia. Aqueles que se atrevem a enfrentar o desconhecido sem ter aprendido a se desligar da gruta, sempre cheios de culpa e de ruminações inconscientes dolorosas, com o seu olhar voltado para trás, como Orfeu, são as vítimas preferidas de Pan, que os enche de terror pânico. Quem melhor explica esta síndrome é, sem dúvida, a Astrologia, encontrando-se as suas maiores vítimas entre os tipos cancerianos e/ou aqueles que têm a Lua em destaque nos seus mapas por posição e aspectos. A lâmina XVIII do Tarot é uma das melhores ilustrações desta síndrome.

PETER PAN - Peter Pan é um personagem que recusa o crescimento, isto é, que não quer chegar à vida adulta, responsável, preferindo manter-se numa adolescência infantilizada. Nada de responsabilidades, de deveres. A Psicologia deu o nome de Síndrome de Peter Pan ao comportamento do adulto que receia os compromissos e/ou se recusa a agir conforme a sua idade. Tudo isto pode ser percebido nos beijos de Wendy, no desejo de Peter Pan ter uma menina da sua idade que pudesse ser sua mãe, nos sentimentos conflituosos para com Wendy e Sininho (representações de diferentes arquétipos femininos), no simbolismo de sua luta com o capitão Hook, papel tradicionalmente protagonizado pelo mesmo ator que representa o pai de Wendy.

 
Peter Pan apareceu pela primeira vez em 1902 num texto intitulado The Little White Bird, uma história das relações do seu autor (James M. Barrie) com as crianças de Sylvia Davies, de uma família amiga. Adaptada para o teatro, recebeu o título Peter Pan ou The Boy Who Wouldn ́t Grow, que estreou em Londres em 1904. Em 1906, apareceu um livro do mesmo autor com o título de Peter Pan in Kensignton Gardens, ilustrado. Peter Pan foi adaptado para o cinema várias vezes, sendo o personagem representado invariavelmente por uma jovem atriz. O teatro também investiu em Peter Pan.


Recusando-se a crescer, Peter Pan passa os seus dias de eterna juventude na pequena ilha de Neverland como líder de um grupo chamado Lost Boys, convivendo com fadas e piratas e encontrando de vez em quando crianças do “mundo de fora”. Incorporando muitos traços negativos do signo astrológico de Gêmeos, Peter Pan é principalmente um exagerado estereótipo de um exibido e descuidado jovem. Sua atitude diante da vida é displicente, descuidada, inconsequente mesmo, inclusive diante do perigo. O autor da história nunca explicou aos seus leitores como Peter Pan conseguia permanecer jovem. 

O personagem, para alguns estudiosos, faz parte de uma antiga tradição anglo-germânica denominada Toten Kindergeschichte (contos da morte de crianças). Outros encontram a explicação para a eterna juventude de nosso herói porque ele foi atingido pela poeira de estrelas que um dia caíram sobre a terra. Não há também explicação convincente sobre a sua capacidade de voar. Peter Pan alega que com bons pensamentos e  a poeira das fadas, esta última igual àquela que as estrelas deixam no seu rastro, é possível voar. Em temas folclóricos europeus, aliás, temos a figura do Sandman, um gênio do sono que lançava poeira nos olhos das crianças para que elas dormissem.

SANDMAN

PETER PAN E HOOK
Peter Pan é hábil na luta de espadas, na imitação de vozes e gestos, sendo acuradíssimas sua visão e audição. Peter Pan nunca conviveu com os seus pais. Numa passagem da sua obra, o autor nos revela que ele, um dia, muito criança, saiu de casa e que quando retornou, ao olhar pela janela, viu que os pais haviam encontrado um substituto para ele e que não mais o queriam. O grande oponente de Peter Pan é o capitão Hook (Gancho), cuja mão ele decepou num duelo. De tempos em tempos, Peter Pan visita o mundo real, de modo especial os jardins do bairro londrino de Kensington, relacionando-se com as crianças que ali brincam. 

A história de Peter Pan pode ser colocada em relação com a dos mitos heroicos. O nascimento do herói é geralmente milagroso (pai divino, mãe mortal ou o inverso); ele dá desde cedo, ainda na infância, demonstrações de seu poder, de sua habilidade, de sua força; costuma também se libertar do meio em que foi gerado, encontrando um deus ou um mestre que o orienta; passa por provas públicas (ameaças externas), lutando para adquirir o controle da sua vida interior, a mais difícil, já que sempre o ameaça a tendência ao descomedimento (hybris), ao descontrole interno, à passionalidade, que podem provocar a sua perdição e finalmente a sua morte. Sabemos que nos mitos o herói simboliza uma proposta de elã evolutivo, proposta que se traduz, para o homem comum, numa tomada de consciência de seu ego individual, sempre uma busca de autoconhecimento. Esta busca termina quando o homem alcança a sua idade madura. Há, contudo, nos mitos, um tipo de herói, parecido com Peter Pan, muito mais do mal, porém, que se recusa a se submeter às provas públicas para assumir aquilo que deve lhe caber essencialmente, o desempenho daquilo que lhe cabe. Na cultura ocidental, de um modo geral, a função mais importante dos heróis é a guerreira (matador de monstros e de inimigos), que representa a base de seu valor pessoal. Essa recusa significa a permanência em estágios de vida primitivos, uma renúncia à vida afetiva e à assunção de compromissos sociais, um desenvolvimento precário sob o ponto de vista psíquico. 

Dá-se, em inglês, o nome de trickster (trapaceiro) a esse tipo de herói, muito comum em várias culturas. A palavra inglesa trickster e o seu correspondente francês tricheur (enganador, trapaceiro) vêm do verbo latino tricari, com o sentido de trapacear, dissimular, enganar. O Trapaceiro é um tipo cujos apetites físicos se impõem na sua conduta, tem mentalidade infantil, vive apenas para satisfazer as suas necessidades mais imediatas e primárias, costumando ser cruel, insensível e cínico. 

Uma das formas sob a qual esse herói se esconde é a da raposa, animal que simboliza a esperteza. Esse herói pode às vezes participar de provas, demonstrando até valores superiores. Suas vitórias dependem sobretudo de sua habilidade, de sua astúcia, de sua rapidez, podendo inclusive vencer gigantes. Ulisses, neste sentido, é um dos personagens míticos mais representativos do trickster. O que estas ideias nos revelam é que a psique individual se desenvolve a partir de uma fase pueril. Por isso, é comum que adultos psicologicamente imaturos sonhem muitas vezes com imagens dessa primeira etapa, nela se fixando.

TRICHEUR À L'AS DE CAREAU (LA TOUR, 1593-1652)

Na arte, quem imortalizou a figura do tricheur foi G. de La Tour, pintor francês do séc. XVII, na sua tela Tricheur à l' Ás de Carreau (Trapaceiro com o Ás de Ouros), onde entram três grandes pecados do tempo: o jogo, o vinho e a luxúria. Lembre-se que outra importante tela sua, La Diseuse de Bonne Aventure, faz parte do mesmo universo da tricherie.

LA DISEUSE DE BONNE VENTURE (CARAVAGGIO, 1571-1610)

Lembremos que a expressão Síndrome de Peter Pan foi popularizada a partir de 1983 pela Psicologia para designar adultos de pouca ou nenhuma maturidade. Em Neverland, nos jardins de Kensignton, Peter Pan nunca fica triste: Eu sou a juventude, a alegria, eu sou o pássaro que rompeu a casca do ovo. Ele quer permanecer sempre uma criança para poder se divertir, um símbolo, enfim, da infância da qual o homem adulto conserva uma nostálgica lembrança.

(Este texto sobre Peter Pan foi retirado de um E-Book meu intitulado Leituras – Caderno nº 2).

VON MÜNCHHAUSEN
Münchhausen – O nome desta síndrome vem da Literatura, de uma obra escrita no séc. XVIII pelo barão Karl Friedrich Hieronymus Freiher Von Münchhausen, uma série de contos sobre um personagem, que passava por inúmeros sofrimentos e dificuldades fantásticos, produzidos pela sua imaginação. O nome foi usado por um médico norte-americano em 1950 (Richard Asher), logo se fixando e aceito pelos meios técnicos, para designar um padrão de comportamento através do qual uma pessoa simulava sintomas de doenças com a finalidade de atrair a atenção de alguém tanto por carência afetiva, por insegurança ou por teatralidade. Pessoas que compulsivamente fingem estar doentes (manipuladores de sintomas) ou que chegam mesmo a provocar doenças em si mesmas, ingerindo drogas, produtos químicos etc, com a finalidade de obter cuidados médicos, fazer exames, pessoas que sentem prazer quando procuram diagnósticos. Uma variante desta síndrome é a hipocondria. O hipocondríaco se atormenta excessivamente por causa de sua saúde. Diferentemente do que tem a síndrome de Munchhausen, o hipocondríaco acredita realmente que está doente. Na origem, hipocondríaco (hypo, abaixo, e chondro, cartilagem, em grego) era o que sofria de suas vísceras, supondo-se que isto lhe produzisse um humor triste e caprichoso.

Os atacados pela Síndrome de Münchhausen, que se concentram nos aspectos patológicos (doenças, somatizações, traumatofilia etc.) da existência humana, sempre respondem mal a tratamentos, vivem se submetendo a vários exames, seu histórico médico é incoerente, têm muita familiaridade com hospitais e procedimentos hospitalares, gostando muito de ler a literatura médica, inclusive bulas de remédios, que muitas vezes colecionam.

Grandes vítimas desta síndrome são as crianças. Isto acontece quando um parente, a mãe geralmente, na grande maioria dos casos, de forma persistente tenta fazer, intencionalmente ou não, com que o filho se sinta doente, sempre uma forma de abuso infantil que pode inclusive fazê-lo a passar por sérios riscos. A pergunta é inevitável: qual a razão disto? Difícil precisá-la. Dentre as mais comuns, notamos: necessidade de chamar a atenção do pai da criança? Agressão contra um filho não desejado? Afastar-se, para cuidar do filho, de um ambiente doméstico detestado? 

Quando os sintomas psicóticos são compartilhados por duas pessoas (transtorno induzido), geralmente próxima ou da mesma família, adota-se para caracterizar a sintomatologia a expressão francesa folie à deux (loucura a dois). Exemplo: o medo ou a paranoia de um membro da família (um pai, uma mãe), serem passados para um filho. Quando mais de duas pessoas estão envolvidas, usa-se a expressão folie à trois, à quatre, à plusieurs (loucura a três, a quatro, a muitos).

STENDHAL– (veja neste blog). 

MEDEIA - Princesa e feiticeira do reino da Cólquida, sobrinha de Circe, a grande maga da mitologia grega. Mulher inquieta, apaixonada, de temperamento fogoso, sua história se liga ao mito dos Argonautas, o da conquista do Velocino de Ouro. O chefe da expedição, Jasão, só se tornou vitorioso porque contou com a total proteção de Medeia, que, com a sua arte, deu-lhe condições de vencer todos os inimigos e de superar todos os obstáculos. Em troca, Jasão prometeu levá-la para a Grécia, jurando-lhe amor eterno. 

JASÃO E MEDEIA, 1907 (JOHN WATERHOUSER)

Na Grécia, em Corinto, viveram bem, tendo dois filhos. Jasão, herói famoso, porém, rendeu-se aos encantos de Glauce, cujo pai, o rei Creonte, lhe prometera o trono quando morresse se casasse com a filha. Jasão repudiou Medeia para se unir a Glauce. 

Parecendo conformar-se com tal situação, mas, no fundo, enlouquecida pela traição e ingratidão do marido, Medeia enviou como presente de núpcias a Glauce uma coroa e um manto de ouro, impregnados de poções mágicas letais, dos quais saíam também labaredas que tudo incendiavam quando usados. Ao tentar socorrer a filha, Creonte também morreu. Ao mesmo tempo em que Glauce e o pai morriam e o palácio em que viviam era reduzido a cinzas, Medeia assassinava os filhos. 

Foi o comportamento desta trágica figura da mitologia grega, Medeia, que serviu de base para se dar forma à chamada Síndrome de Medeia. Um dos aspectos mais terríveis descritos por esta síndrome é aquele em que a pessoa por ela possuída mata aqueles que mais ama, os filhos, no caso. Tal acontece geralmente quando, numa relação matrimonial, tida pela mulher como "perfeita", o marido, um dia, a repudia porque encontrou um outro amor. 

Mais recentemente, deu-se, nos meios jurídicos, o nome de Síndrome da Alienação Parental a uma variante da Síndrome de Medeia. A referida síndrome se configura quando um dos parceiros (geralmente a mulher), na iminência de ser abandonado (a) pelo outro, procura, por ações e atitudes, influenciar os filhos, despertando neles um sentimento de ódio, de profunda aversão, contra ele, mesmo sem nenhum fundamento real. 

A leitura do mitologema nos dá condições de abordar outro aspecto da Síndrome de Medeia. Destruído o palácio real de Corinto, mortos Creonte, Glauce e os filhos que tivera com Medeia, Jasão tornou-se um farrapo humano, vindo a morrer quando, alcoolizado, dormindo na praia, um dos mastros da desmantelada nau Argos lhe caiu sobre a cabeça. A rigor, Medeia nada lhe fez diretamente, mas o atingiu profundamente, acabando com as suas expectativas de futuro, transformando-o num molambo. 

A Síndrome de Medeia costuma também se manifestar nas mulheres que são tomadas pelo Complexo de Hera, mulheres que investiram anos e anos num casamento oficial, garantindo ao marido um cenário familiar pomposo, de sucesso social, colaborando de todas as maneiras (jantares, festas, solenidades, clubes etc.) para que ele possa se transformar num Zeus. Neste caso, o ódio das "medeias" não se volta contra os filhos, mas, às vezes, fisicamente, contra a "outra" e o marido ou, em outros casos, só contra o seu Zeus. O que cito aqui vai depender do temperamento (dominante elementar) da mulher/Medeia. Se ígnea a dominante, comuns a agressões físicas, pessoalmente, escandalosas, ou, então, a contratação de "profissionais" que se encarreguem desse serviço sujo (surras, perseguição, agressões, mutilações, destruição do patrimônio, incêndio etc.). Se terrestre a dominante da mulher-Medeia, a vingança será exercida de preferência através de bons e caros advogados que sempre saberão como arrancar "tudo" ($$$) de um apalermando Zeus, se ele não tiver tomado anteriormente providências para neutralizar a ação da mulher, antes uma Hera dócil e agora uma terrível Medeia .

DIÓGENES - A Síndrome de Diógenes é também conhecida como a Síndrome do Abandono do Autocuidado. Diógenes de Sínope, conhecido como Diógenes, o Cínico, viveu como filósofo na Grécia antiga (séc. V-IV aC). O cinismo (de kynos, cão) era uma doutrina filosófica que prescrevia a busca da felicidade através de uma vida simples e natural através de um completo desprezo por comodidades, riquezas, apegos, convenções sociais e pudores, utilizado de forma polêmica a vida canina como modelo metafórico, ideal, e exemplo prático destas virtudes. 

Esta maneira de viver leva ao isolamento social e a descuidos, às vezes totais, com relação à higiene pessoal, saúde e alimentação. As atitudes com relação à vida pública são hostis. Comum a tendência ao acúmulo de lixo e de coisas inúteis (syllogomania, em grego). Geralmente são pessoas excêntricas, esquizoides, independentes, agressivas, que vão envelhecendo cada vez mais isoladas. 





segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

DOS PECADOS - A INVEJA

   
A INVEJA
(H. BOSCH, C.1450-1516)
Comumente, a inveja é um sentimento de desgosto provocado pela felicidade ou pela prosperidade alheia. No plano da via afetiva, confunde-se com o ciúme, estado emocional complexo que envolve um sentimento penoso provocado em relação a uma pessoa de quem se pretende amor ou fidelidade exclusivos. A inveja e/ou o ciúme são fenômenos passivos, paixões, portanto, que têm como principal característica a paralisação da ação normal da razão. As paixões, como sabemos, quando se instalam, impedem que comandemos a nossa conduta, que determinemos a nossa vontade. 

Os gregos tinham três palavras para falar da inveja, phtonos, dzelos e baskhainia. Baskhanos era o que olhava com maus olhos, era o curioso, o invejoso, o denegridor, o caluniador. Phthoneros era o ciumento, o invejoso. A palavra ciúme veio para nós do grego, dzelos, passando pelo latim, zelumen, zelumis com o sentido de intensa paixão amorosa. Os franceses têm jalousie, sentimento vivo, intenso, sombrio, palavra que veio também pela mesma via acima apontada, dando na língua provençal gilos. Os espanhóis dirão celos, os italianos gelosia e os ingleses jealousy. O ciúme tem a ver com o receio, o pavor, o temor de perda,a desconfiança, a tortura, o masoquismo.


A  INVEJA ( EDWARD  MUNCH ,

Dos tormentos da alma, o ciúme e a inveja talvez sejam os mais avassaladores. E isto porque eles não existem sem o querer, sem o gostar, sem o amar. Talvez ainda porque eles apareçam sempre associados a outras emoções destrutivas como a dúvida, a angústia, a desconfiança, a mágoa, a solidão, o desamparo, o medo, a rejeição, a paranoia, a necessidade de afirmação pessoal, a autodefesa, o amor próprio etc. Haverá alguém imune à inveja e ao ciúme?


LUPICINIO  RODRIGUES
Inah foi a primeira namorada, a primeira noiva e a primeira desilusão de Lupicínio Rodrigues. Foi também a primeira e única mulata de sua vida. Depois, só teria problemas com louras, como ele mesmo declarou. Com Inah, o romance começou em Santa Maria, lá no Rio Grande do Sul, de onde ele era. Ambos muito jovens, a relação durou seis anos. Terminou porque Lupicínio não se decidia quanto ao casamento. Algum tempo depois de ter tudo findado, Inah se casou com outro. Quando Lupe, como era chamado, a viu de braço com o marido, sentiu um choque tremendo, um misto de ciúme, amizade, despeito e horror, como disse. Adquiriu, como a chamava, uma dor de cotovelo “federal”, daquelas que duram a vida inteira, diferente da dor “estadual” e da dor “municipal”, que também duram, mas passam. O resultado dessa dor de cotovelo “federal” foi Nervos de Aço, samba gravado por Francisco Alves, o primeiro grande sucesso de Lupicínio Rodrigues. 

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? 
Ter loucura por uma mulher
 E depois encontrar esse amor, meu senhor, 
Nos braços de outro qualquer.
Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
 E por ele quase morrer?
 E depois encontrá-lo em um braço
 E nem um pedaço do meu pode ser
 Há pessoas com nervos de aço
 Sem sangue nas veias e sem coração
 Mas não sei se passando o que eu passo
 Talvez não lhes venha qualquer reação
 Eu não sei se o que trago no peito
 É ciúme, amizade, despeito ou horror
 Eu só sei que quando eu a vejo
Me dá um desejo de morte e de dor.”

O ciúme e a inveja, nos dicionários, passam por sinônimos. Inveja vem do verbo latino invidere, olhar de modo malévolo, mau olhado, o famoso malòcchio dos italianos. No caso da inveja, o olho se transforma num emissor da energia que está nos sentimentos ruins que experimentamos porque o outro possui alguma coisa que desejamos ou passamos a desejar quando o vemos com ela (ele). Este mau olhado recebeu dos italianos o nome de gettatura, do verbo gettare, arremessar, lançar longe. Uma energia destrutiva que se lança contra alguém.

Já os gregos antigos chamavam a inveja “ruim” de phtonos, sentimento em que se misturam á mágoa e à a dor uma sensação muito desagradável produzida pela felicidade merecida ou não de alguém da qual não participamos. Phtonos era alegorizada sob a forma de um demônio, um espírito maléfico, que vivia em companhia de muitos outros, no Inferno grego, o  Hades, no Bosque de Perséfone, seu território vestibular. Alguns mitógrafos consideravam Phtonos como filha de Afrodite e de Dioniso.

Dzelos era o nome que os gregos davam a um ciúme ou a uma inveja especial. Quando este sentimento se instalava chamavam-no de dzelotymia. Nesta palavra, juntam-se os termos tymia e zelos, o primeira tendo relação com afetividade, emoção (a glândula timo é representa em muitas tradições como a sede da vida afetiva; corresponde, no Yoga, ao chakra anahata, também chamado erroneamente de chakra cardíaco). Dzelos era, pois, para os gregos, uma espécie de ciúme positivo, uma inveja saudável, ao levar aquele que a experimentava a tentar se igualar a alguém ou a superá-lo, uma forma de emulação. Uma competição sadia sem sentimentos baixos, sem falsidade. Seria uma forma de cuidado diligente, vigilante, precavido, cauteloso aplicado a um desempenho emulador. 

De dzelos saiu negativamente a palavra zelote, Demonizado, Phtonos se apossa daqueles que fingem ter zelo, que simulam falso comportamento zeloso. A palavra adquiriu também o significado de fanático. O ciúme negativo, a inveja, o mau olhado e todos os demais sentimentos ruins passaram a ser designados pela palavra phtonos. Semelhante é este demônio àquele que entre os romanos representava a Invidia, um espectro feminino com serpentes na cabeça, olhos vesgos, magérrima, com um réptil roendo-lhe o coração. 

SANTO TOMÁS DE AQUINO
Santo Tomás de Aquino diz que é próprio do amor o querer bem ao outro, ao amigo, à mulher amada, ao homem amado, pois, nessa dimensão amorosa, o outro é como se fosse o nosso próprio eu. Os que se entristecem com a felicidade do outro vão de encontro à caridade, pois é através dela que amamos o próximo. A caridade, na doutrina católica, é uma virtude teologal que conduz ao amor a Deus e ao nosso semelhante. Num sentido amplo, ela se constitui de atos pelos quais o próximo é beneficiado, especialmente os pobres e desprotegidos.

Tomás aponta, como “filhas” da inveja, a murmuração, a detração, o ódio,a exultação pela adversidade e a aflição pela prosperidade. Um dos grandes objetivos da inveja é o de impedir a satisfação, o prazer alheios. A inveja usa para isto o que comumente chamamos de “falar mal de alguém”, disfarçada ou abertamente. No primeiro caso temos o que os latinos designavam por sussurratio, que podemos traduzir como fofoca. No segundo caso, temos a detração.


FOFOCA
Fofoca é palavra de origem africana, tendo sido criada a partir de um verbo que tem o sentido de remexer, revolver, esgaravatar. A palavra tomou o sentido de dito maldoso, de divulgação de detalhes da vida de uma pessoa que ela gostaria que não fossem revelados. Detração é difamação, expressão maledicente com o intuito de agredir, de fazer mal.

TOLSTOI
É na literatura, evidentemente, que encontramos os melhores exemplos do ciúme. Na literatura, o tema é tratado de modo admirável por Tolstoi, em A Sonata de Kreutzer (1891). A mulher de Pozdnychev o engana com um violinista e ele a mata. Esta história de adultério permitiu a Tolstoi expor as suas ideias sobre o quão nefasto pode ser amor físico nas circunstâncias por ele apontadas. Shakespeare também tratou do tema em Otelo, o Mouro de Veneza. Ele estrangula Desdêmona, sua esposa, convencido pelo pérfido e traiçoeiro Yago de que ela o enganava.    

Corneile (séc. XVII), dramaturgo francês, dizia: O ciúme, que parece ter por objeto apenas a pessoa que amamos, prova na verdade que amamos só a nós mesmos. De Oscar Wilde (séc. XIX): As não bonitas são sempre ciumentas de seus maridos; as bonitas nunca! Não têm tempo. Estão sempre ocupadas com o ciúme em relação aos maridos de outras mulheres. E Proust arremata: Para aquela (mulher) que é objeto de ciúme, ele passa a ser considerado como desconfiança injuriosa e, por isso, é uma autorização para enganar o ciumento.

Qualquer que seja o ângulo pelo qual o examinemos, o ciúme é sempre um sentimento intenso, hostil, sombrio, que se pode experimentar também quando se vê alguém se aproveitar de algo que não possui ou que desejaríamos possuir com exclusividade. Ou, ainda, inquietação que nos toma quando temos de abrir mão de algo que muito prezamos ou estimamos em proveito de outra pessoa. 


BALZAC
Balzac, seguindo os gregos, dizia que o ciúme e a inveja se transformavam em emulação nas pessoas superiores; nos inferiores, se transformavam em ódio. O campo emocional do ciúme é vastíssimo, tem muitas nuances, formas expressivas. Freud, a partir da inveja e do ciúme, criou a expressão inveja do pênis para designar um elemento constitutivo, segundo ele, da sexualidade feminina, que pode se apresentar de diversas formas, indo do desejo frequentemente inconsciente dela própria possuir um pênis para dele gozar à vontade no coito. Lembremo-nos de Mafalda (personagem do grande Quino) ao ver um menino fazendo xixi: Maman, mira maman, que cosita más práctica, comprame una?

Psicólogos, espíritas, médicos, umbandistas, terapeutas, operários, empregados de escritório, fanáticos por novelas de TV, religiosos, conselheiros espirituais, exorcistas, políticos, bispos, pais-de-santo, poetas, músicos, psicopatas, donas de casa, cartomantes, membros de torcidas organizadas, protestantes, professores catedráticos, praticantes de Yoga, evangélicos, cardeais, gente que tem conta no exterior em paraísos fiscais, todos e muitos mais têm sempre o que dizer sobre o ciúme, cada um a seu modo, sem dúvida.

Uma das visões mais lúcidas do tema está na que Astrologia conscientemente praticada oferece. É no eixo Touro-Escorpião, signos fixos, sempre mais sujeitos às paixões, que temos os melhores exemplos do que aqui se trata. É óbvio que o ciúme, tanto num como noutro caso, se manifesta sobretudo, mais agudamente, nos tipos malogrados de ambos os signos. O que aqui observamos quanto aos dois mencionados signos não exclui, contudo, a possibilidade de encontrarmos manifestações de ciúme em outros signos. Quem poderá se declarar imune a esse tipo de paixão? 


Em Machado de Assis, sempre sutil e refinado, encontramos observações como esta (Relíquias da Casa Velha): Havia nela tanta modéstia e recato que o ciúme dele podia dormir com as portas abertas. Se quisermos mais do nosso Machado temos que ir a uma de suas obras máximas, Dom Casmurro, onde ele analisa de modo magistral o ciúme de Bentinho por Capitu, deixando-nos dúvidas que discutimos até hoje. 

No caso de Touro, do elemento terra, o ciúme se liga invariavelmente a um desejo de posse material de um ser, de um objeto amado, ou da fruição ou gozo de alguma sensação prazerosa. Não satisfeitos, tais desejos, pela falta, pela carência, gerarão sempre algum tipo de sofrimento. Por outro lado, satisfeito ou obtido o objeto do desejo, sobre o qual repousa em grande parte a segurança física e psíquica do tipo aqui descrito, o ciúme, latente sempre, acabará se mostrando. 

Já quanto ao escorpiano (elemento água), a segurança está ligada ao emocional. Costumam os escorpianos viver a sua afetividade de modo total, absoluto, na base do tudo ou nada. Muitos escorpianos, quando amam, desejam do outro o corpo, a alma e o resto... Em ambos os casos, o ciúme, com facilidade chega à obsessão, à ideia fixa, podendo o sentimento tomar um caminho destrutivo (se não possuo, ninguém possuirá), patológico. É evidente que quanto maior o número de astros nos signos apontados, principalmente os chamados planetas pessoais, além do ascendente, maior a ênfase passional. Não é por acaso que encontramos nesse eixo as figuras mais emblemáticas da paixão e, consequentemente, do ciúme e da inveja, seja pela sua vida pessoal, por sua atividade profissional ou pela obra que deixaram. Como exemplos, basta citar: Stendhal, Eurípedes, Dostoievski, Lupicínio Rodrigues, Balzac, Goethe, Jean-Paul Sartre, Carlos Drummond de Andrade, Luis Inácio Lula da Silva, Richard Wagner, Picasso, Racine, Restif de la Bretonne, Albert Camus, Henri Georges Clouzot, André Malraux, Freud, Hitler, Kant, Marx etc.


ROLAND  BARTHES
Roland Barthes, semiólogo francês, em Fragmentos de um discurso amoroso, disse, tentando colocar o ciumento contra a parede: Como homem ciumento eu sofro quatro vezes: por ser ciumento, por me culpar por ser assim, por temer que meu ciúme prejudique o outro, por me deixar levar por uma banalidade; eu sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum. 

A Bíblia é um dos maiores repositórios de exemplos das paixões humanas: o ciúme de Caim; o de Sara, que induziu Abraão a expulsar Agar e seu filho Ismael; as relações entre Esaú e Jacó; a traição de Judas (ciúme de Pedro); a venda de José, como escravo, aos egípcios; o ciúme de Lia diante da beleza de Raquel; o ciúme de Satã por Deus ter criado Adão e muito mais.

APELES
O ciúme e a inveja costumam andar juntos com o ódio, já diziam os gregos. E completam: acompanha-os, de longe, o Arrependimento, sob a figura de uma mulher de luto, com as roupas esfarrapadas, os olhos lavados de lágrimas, em desespero, a procurar com os olhos a Verdade. Uma das melhores ilustrações deste entendimento dos gregos nos foi deixada pelo pintor Apeles (séc. IV aC), amigo e retratista de Alexandre Magno.


MEDEIA  E  FILHOS
(NINO  PISANO, 1334-1336)
No mundo grego, quem melhor falou sobre o sentimento humano foi Eurípedes, conhecido pelo apelido de pintor das paixões, nas suas tragédias, com os seus personagens femininos, dentre os quais, mais que todos, se destaca Medeia. Transtornada pela traição de Jasão, ela se vinga, causando a morte do rei Creonte, de sua filha Creusa e de seus próprios filhos: nada morderá mais rijo o coração de meu marido, é a fala de Medeia.

Não é de estranhar, por exemplo, que no nosso Brasil colonial algumas enciumadas sinhás (tratamento que as escravas davam às patroas) mandassem quebrar os dentes das “negrinhas roliças” ou, então, que mandassem cortar seus seios para servi-los, assados e

temperados, aos maridos, nos jantares. Uma dessas piedosas senhoras, irritada com os elogios que seu marido fizera aos olhos de uma “mulatinha” os serviu em calda, como sobremesa. Por aí, vemos que Peter Greenway não exagerou quando mostrou em seu filme, O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, o marido servindo à esposa o amante morto, temperado e enfeitado numa cerimônia cheia de requinte.


O cinema, aliás, é pródigo em filmes sobre o ciúme. Um deles, por exemplo, é Carmem, baseado no romance de Prosper de Merimée e na ópera de Ceorges Bizet. Grandes nomes do cinema se voltaram para essa fascinante personagem, Chaplin (1916), Lubitsch (1918), Otto Preminger (1954), Peter Brook (1983), Carlos Saura (1984), Godard (1983) e Rossi (1984). Destaque ainda para outros filmes, alguns igualmente importantes: A Caixa de Pandora (Pabst), A Teia de Chocolate (Chabrol), Amar Foi Minha Ruína (Stahl), Atração Fatal (Adrien Lyne), Infielmente Tua (Zieff) etc.

A poesia luso-brasileira guarda preciosidades sobre o tema. 
CASTRO   ALVES

De Castro Alves:

Nas ruínas desta alma a raiva geme.
E cresce o cardo – a morte
Ciúme! Dor! Sarcasmo! Aves da noite!
Vós povoais-me a solidão sombria.


Um dos maiores textos sobre o ciúme é, sem dúvida, o pequeno poema Cidra, Ciúme, de Soror Maria do Céu (1658-1753), esquecida autora do Barroco português, também atingida pela insidiosa paixão: 

É ciúmes a Cidra,
E indo a dizer ciúmes disse Hidra,
Que o ciúme é serpente,
Que espedaça seu louco padecente, 
Dá-lhe um centro de amor o apelido,
Que o ciúme é amor mas mal sofrido,
Troquem, pois, os amantes,e haja poucos,
Pelo zelo de Deus, ciúmes loucos.

Até em obras aparentemente tão inocentes como na história da Branca de Neve podemos encontrar o veneno do ciúme infiltrado: A madrasta: Dize a pura verdade, dize, espelho meu, há no mundo mulher mais bela que eu? O espelho: Aqui neste quarto sois vós, com certeza, mas Branca de Neve possui mais beleza.

Nada, porém, entre nós, melhor do que o encontrado em doutos tratados que sobre o tema se produzem, como o samba brasileiro para nos falar sobre o ciúme. O patrono dessa produção é, par droît de conquête, o eterno Lupicínio Rodrigues, imbatível no gênero.  É nesse espaço da cultura popular que encontramos obras em que se fixaram expressões como “dor de cotovelo” e “dor de corno”, e conceitos como o de “cornitude” (gênero lítero-musical), todos a discorrer sobre os males das paixões. 

É de Caetano Veloso um dos clássicos no gênero, “Dor de Cotovelo”. Seus primeiros versos nos dizem:
CAETANO  VELOSO

O ciúme dói nos cotovelos
Na raiz dos cabelos
Gela a sola dos pés
Faz os músculos ficarem moles
E o estômago vão
E sem fome
Dói da flor da pele ao pó do osso
Rói do cóccix até o pescoço.

Do grande mestre Lupicínio Rodrigues, Vingança, que bem poderia passar por uma homenagem a Medeia, a fada-madrinha de todos os que matam ou matarão por paixão: 

“Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que lhe encontraram chorando , bebendo,
Na mesa de um bar
E que quando os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz
Não lhe deixou falar
Ai, mas eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que tive mesmo que fazer esforço
Pra ninguém notar

Mas enquanto houver força em meu peito
Eu não quero mais nada
Só vingança, vingança, vingança
Aso santos clamar
Você há de rolar como as pedras
Que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu
Pra poder descansar.

Diante do que expus até agora, nestes momentos finais, para que se complete melhor a visão do tema, obrigatória uma incursão, ainda que breve, à Psicologia e à Psicanálise. Na história do freudismo, os estudos sobre a inveja apareceram totalmente associados à sexualidade feminina. Freud, como se sabe, defendeu a tese de um monismo sexual e de uma essência masculina com relação à libido humana.  Nessa perspectiva de uma libido única, Freud defendia a ideia que, num estágio infantil, as meninas desconheciam a existência da vagina e faziam o clitóris desempenhar o papel de um homólogo do pênis. Daí a sensação que apresentam, segundo ele, de terem nascido providas de um órgão castrado. A sexualidade da menina se organizaria então em torno de um falicismo, isto é, do desejo inconsciente de ser um menino, do desejo que toda mulher tem de ter um pênis.

Mais: segundo algumas doutrinas psicanalíticas, todas as meninas desenvolvem com relação à mãe uma identificação tão completa (inveja) que desejam inconscientemente tomar o seu lugar, eliminá-la, para possuir o pai. A esta atitude emocional, deu-se o nome de complexo de Electra, para Freud o complexo de Édipo às avessas. 


JUNG

Jung, como se sabe, optou pela primeira designação, complexo de Electra. Electra, no mito grego, era filha de Agamemnon, rei de Micenas. Ela instigou seu irmão, Orestes, a vingar a morte do pai, assassinado por sua mulher, Clitemnestra e seu amante. Clitemnestra era mãe de ambos, dela e de Orestes.


MELANIE  KLEIN
Na década de 1920, Melanie Klein, famosa psicanalista inglesa, estudiosa do psiquismo infantil, deslocou o tema da inveja do contexto da sexualidade feminina, ampliando-o. Para ela, o conceito de inveja designaria um sentimento primário e inconsciente de avidez em relação a um objeto que se quer destruir ou danificar. A inveja apareceria então desde o nascimento, sendo inicialmente dirigida contra o seio materno. Na posição esquizo-paranoide ou depressiva, a inveja ataca o objeto “bom” para dele fazer um objeto “mau”, gerando assim um estado de confusão psicótica. 

O IMPÉRIO DOS SENTIDOS

Para uma melhor ilustração do que aqui se coloca com relação às teorias psicanalíticas, inclusive as defendidas por Jacques-Marie Lacan, recomendo para os mais interessados os filmes japoneses O Império dos Sentidos e O Império da Paixão, de Nagisa Oshima.




quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

ESCORPIÃO (4)


HADES  ( GIOVANNI  DA  MODENA , 1379 - 1455 )

As três divindades sobre as quais discorremos  em Escorpião (3), conforme as culturas em que aparecem, “convivem”, cada uma a seu modo, com o Hades grego no signo de Escorpião. Sugerem todas, com as suas histórias, o inexorável e constante fluir das formas quando chegamos ao equinócio de outono, período em que, através da destruição, se prepara, no mundo natural, um futuro renascimento. É destas aproximações que decorrem  naturalmente as associações que podemos fazer entre o inferno (Hades) e o oitavo signo astrológico. Ligado à obscuridade, às trevas, à invisibilidade, o inferno, em todas as cosmogonias, sempre apareceu “em baixo”, ctônico, subterrâneo, lembrando o frio, as trevas, as sombras, a solidão.

As ligações do número oito com o renascimento estão presentes em várias tradições. Na astrologia, depois do sete, o número do repouso provisório, o oito indica uma possibilidade de ressurreição sob uma nova forma. Uma das mais conhecidas ilustrações do que aqui se diz, sob o ponto de vista astrológico, é a referência que podemos fazer aos signos de Libra (7), Escorpião (8) e Sagitário
CASULO
(9), aparecendo Escorpião como o casulo, invólucro no qual a crisálida (em grego, krysallis, dos), a larva do inseto, adormecida e entorpecida, se transforma, ocultamente, em borboleta. É por esta razão que a borboleta sempre foi considerada como um símbolo do renascimento. Na antiguidade grega, borboletas esculpidas em túmulos eram indicações de crenças reencarnacionistas.

Quanto ao número oito, é preciso lembrar também que ele aparece em muitas doutrinas orientais, como a budista, por exemplo, através da chamada via óctupla, como um símbolo de
PIA  BATISMAL
SÉ VELHA DE COIMBRA
renascimento. Na tradição ocidental, grega, não é por outra razão que o número oito sempre apareceu associado a Dioniso, o deus das metamorfoses. Não podemos esquecer ainda que as antigas pias batismais, por essa mesma razão, tinham a forma octogonal, na qual o oito se compunha do quatro (símbolo do corpo material), do três (símbolo da alma) e do um (símbolo do divino). Assim, era o número oito, para os primitivos cristãos, aquele que reunia as condições necessárias ao aparecimento de um novo ser pelas águas do batismo


DESCIDA  AOS  INFERNOS ( JEAN  LE  TAVERNIER , ? - 1462 )

A chamada “descida aos infernos” de que nos falam os mitos corresponde na vida cósmica aos primeiros dias outonais, prelúdio do inverno por oposição à ascensão, que ocorre em março no equinócio da primavera. Em todas as religiões de mistério, a descida aos infernos é imagem da morte alegórica, o abandono pelo iniciado (mystes) de sua natureza profana na obscura cela da reflexão, a passagem do negro (nigredo) ao branco (albedo) dos alquimistas. 


CORÃO
O Corão faz do inferno uma entidade devoradora, atribuindo-lhe características de fornalha, de incêndio, de tortura e de abismo sem fundo. As suas sete portas são reservadas aos que não adoraram o verdadeiro Deus e, que, portanto, viveram em pecado. Isto é, os cristãos, os judeus, os magos, os idólatras, os hipócritas e os sabeístas (seguidores do sabeísmo, seita judaico-crista, baseada na magia e na adoração dos astros, do antigo reino de Sabá, sudoeste da Arábia).

O fogo devorador do inferno, em todas as tradições, o fogo que consome e destrói simboliza, dentre outros sentimentos de natureza passional, o remorso, a culpa, o medo do sofrimento moral e a inveja. O inferno católico, como o Tártaro grego, tem um caráter definitivo ao representar o desespero e o endurecimento no pecado e no erro pela total e irremediável incapacidade de mudança. 


HADES  ( PIETER  BRUEGEL , O VELHO , 1525 - 1569 )

As modernas psicologias, fazendo coro a tudo isto, representam o inferno do inconsciente como um mar noturno que é preciso atravessar, isto é, partir de uma situação consciente, no geral muito limitada, mas dolorosa invariavelmente, para que uma outra margem, uma outra forma de vida seja atingida. Este processo se confunde com o próprio processo de individuação que tem início pela descida de uma pessoa à sua interioridade, ao mesmo tempo uma regressão e a busca de uma renovada forma. 

Algumas correntes da moderna psicologia ocidental, numa “leitura” evidentemente retirada da mitologia grega, consideram o inferno um símbolo do recalque, um mecanismo de defesa que teoricamente tem por função fazer com que as exigências pulsionais, condutas e atitudes, além dos conteúdos psíquicos a elas ligados, passem do campo da consciência para o do inconsciente, ao entrarem em choque com exigências contrárias. Se num primeiro momento Hades é a divindade  que tem a ver com essa operação, ele pode, num segundo momento, significar como Plutão a reconstituição radical da personalidade vitimada pelo recalque sobre novas bases, pela rejeição dos elementos deletérios ou supérfluos que nas suas profundezas se encontram. 

Esta reconstituição costuma muitas vezes ocorrer subitamente, de modo imprevisível, uraniano. Qualquer que seja este processo, porém, instantâneo ou demorado, Plutão, astrologicamente, ao comandá-lo, é comumente representado com a cornucópia nas mãos, a nos mostrar que é nesse mundo subterrâneo (inconsciente) que estão todos os valores de que necessitamos, porém mal repartidos ou mal distribuídos. Por isso, a cercá-lo imagens de germinação, de passagens da morte à vida, de metamorfoses. A maieutikê (maia, em grego, parteira) socrática, a arte de fazer com que os espíritos trouxessem à luz, ao consciente, verdades que guardavam desconhecidas ou esquecidas dentro de si, é astrologicamente um método escorpiano para se chegar à “verdade”. Por determinadas perguntas feitas ao seu interlocutor, Sócrates o fazia “descobrir” verdades que estavam dentro dele. O filósofo levava-o a essa descoberta pela reminiscência, anamnese, partindo de dados matemáticos elementares ou de verdades morais universais. A Psicanálise freudiana é, neste sentido, um método maiêutico.

Ainda que muitas tradições antigas tenham do inferno concepções muito variadas, a maior parte delas o imagina como um subterrâneo misterioso e terrível onde as almas dos defuntos suportam sofrimentos indescritíveis como punição por crimes e pecados cometidos sobre a terra. As penas e sofrimentos infernais são estabelecidos por um tribunal, imagem simbólica da consciência, de um eu superior, como o encontramos nas psicologias freudiana e jungiana. 

Além disso, o reino dos mortos sempre foi organizado em vários andares, etapas que deveriam ser superadas conforme o nível de evolução das almas. Os romanos chegaram a um refinamento tal da ideia infernal  que o organizaram em vários degraus, etapas diferentes, onde eram acolhidos os natimortos, os suicidas, os amantes infiéis, os matricidas etc.


DIS PATER
Antes das infiltrações gregas, antigos povos da península itálica, com base em mitos etruscos, davam o nome de Orco (esconder, ocultar) não só ao reino subterrâneo dos mortos, mas à divindade que o governava. Posteriormente, devido ao sincretismo greco-latino, tendo por modelo o Plutão grego, os romanos passaram a dar o nome de Dis ou Ditis à divindade regente desse reino (dis, em latim, rico, opulento, abundante).



Os povos nórdicos, que possuem talvez o mais “escorpiano” reino dos mortos, davam, como os gregos também o faziam, o nome de Hel ao seu mundo infernal, sendo esse também o nome da divindade que o governava (vide a propósito o nome do computador que “trabalha” no filme de Stanley Kubrick, 2.001 – Uma Odisseia no Espaço). Hel se ligava por uma ponte ao mundo dos vivos e era dividido em nove regiões.

MIDGARD
Ao que parece também por influência cristã, o antigo deus Loki, uma espécie de demônio superior, sempre trabalhando no sentido contrário ao das demais divindades, foi assumindo a tutela do mundo do mal, passando Hel, mudando de gênero, a ser visto como sua filha. Hel conviveu desde que “nasceu” com os gigantes, com monstros, como o lobo Fenrir, e com a grande serpente Midgard. Ela dava abrigo, no seu reino, ao monstro Nidhog, que roía dia e noite a árvore Ygdrasil, que fazia a ligação terra-céu nos dois sentidos. 

Foi Odin quem determinou que ela ocupasse esse mundo, também chamado de Niflheim. Sua aparência era terrível, e seu palácio, na região mais profunda do seu reino, era uma réplica infernal do palácio celeste de Odin, o Valhala. Desconsideradas as influências cristãs, a deusa Hel tinha por função, como uma espécie de gerente de um grande hotel, distribuir as almas que chegavam ao seu reino nas dependências que lhes cabiam, conforme a sentença decorrente do seu julgamento. Hel evoca, como se disse, o Valhala dos germânicos, paraíso dos guerreiros mortos nos campos de batalha, recolhidos e levados para lá pelas Valquírias, tão celebradas por Richard Wagner. O Valhala tinha mais de quinhentas portas, tão grandes que oitocentos guerreiros podiam sair por uma delas ao mesmo tempo, quando tivessem que combater os lobos.
CAVALGADA  DAS  VALQUÍRIAS ( PETER NICOLAI ARBO, 1831 - 1892 )

O herói germânico amava a vida, os seus bens e prazeres, não temia a morte porque ela não tinha  para ele o significado de aniquilação inesperada e fatal. A morte era para ele tão só a consumação final de um destino. Mesmo com a chegada do cristianismo, essa ideia não desapareceu. O destino, entidade criadora e transformadora por excelência, é cósmico e nele as individualidades se dissolvem no devir constante e inexorável do universo. Nem os deuses escapam dele, sempre em luta contra a morte e a decadência que constantemente os ameaçam. 


DESCIDA AOS INFERNOS
G. DA  MODENA , 1379 - 1455 )
Aos seres desvalorizados não era consentido sobreviver à morte para gozar as delícias do Valhala. Os que haviam morrido ignominiosamente iam sempre para o Niflheim, o País dos Mortos, do Gelo e das Trevas, cuja entrada era guardada pelo cão Garm. Ali viviam seres monstruosos, os anões, os gigantes e todos aqueles que haviam morrido de velhice ou de doença. Esta região era o domínio de Hel, que encarnava o princípio da doença, da decadência, da morte ignóbil, cujo poder o próprio Odin/Wotan era obrigado a aceitar. Neste reino, ausente qualquer esperança de ressurreição, tudo era sombrio, gelado, trevoso. 

Na mitologia germano-escandinava, os fantasmas e os duplos dos mortos se envolviam frequentemente com os vivos, assombrando-os, aparecendo em sonhos. Essas formas, chamadas de fylgjur, podiam também se manifestar como animais perigosos. Há espíritos dos mortos que se manifestavam, sempre sedentos de sangue e cruéis, chamados druckgeister (espíritos de opressão). Tradição semelhante é encontrada na Escócia, onde temos criaturas hermafroditas com asas de morcego, rosto de mulher, olhos e cabelos de fogo, habitantes dos pântanos, sempre uma séria ameaça a quem, à noite, se aventure por esses lugares.

Foram os escandinavos que criaram um dos melhores cenários relacionados com mitos que universalmente descrevem as catástrofes naturais que ameaçam a humanidade não só em razão dos seus pecados e faltas como também em virtude de ciclos de tempo que se fecham, destruindo tudo o que existe, inclusive
O ANEL DOS NIBELUNGOS
deuses, para que um novo mundo apareça. Este cenário, chamado de Ragnarok (em velho escandinavo, destino fatal dos deuses) ou  de Crepúsculo dos Deuses, descreve um combate final em que os deuses serão mortos por gigantes (Odin engolido pelo lobo Fenris; Freyr morta por Surt; Thor envenenado depois de sua luta contra a serpente Midgard). Depois da catástrofe geral, o mundo renascerá, uma nova idade do ouro, sob a tutela do deus Balder ressuscitado (vide a ópera de Richard Wagner O Anel dos Nibelungos).

Uma das mais “escorpianas” histórias da mitologia grega é aquela que tem Alceste (a defensora, a que afasta o perigo) como personagem principal. Alceste era uma das filhas de Pélias, rei de Iolco. Era a mais bela de todas, muito requestada, cercada de pretendentes. Para evitar complicações diplomáticas, o pai estabeleceu condições praticamente impossíveis de serem cumpridas por qualquer candidato à mão da jovem: ele daria sua filha àquele que conseguisse atrelar, ao mesmo jugo, um javali selvagem e um leão. Além do mais, as bestas assim atreladas deveriam dar uma volta completa numa pista de corridas. 

Um dos candidatos, Admeto (o indomável), graças à cumplicidade do deus Apolo, conseguiu fazer com que Hércules domasse os dois animais, cumprindo assim os requisitos impostos por Pélias. Consta que essa interferência de Apolo se deve ao fato de o deus solar, quando do seu exílio terrestre, ter sido tratado com extrema deferência pelo pai de Admeto, o rei Feres. Outros, mais “venenosos”, afirmam que Apolo, enquanto permaneceu na corte de Feres, havia se apaixonado pelo jovem príncipe. De qualquer maneira, vitorioso, Admeto conquistou a mão de Alceste. Esqueceu-se ele, porém, como era obrigatório em casos de favorecimentos desta natureza, de fazer o devido sacrifício a Ártemis, a deusa da vida selvagem. 

Muito ressentida, a deusa, no dia das bodas de Admeto e Alceste, encheu a câmara nupcial de serpentes. Intervindo mais uma vez, Apolo conseguiu resolver o problema e os noivos puderam ter a sua lua-de-mel. Tudo parecia correr  bem, quando Admeto foi sorteado pelas Moiras e decretada a sua morte (algumas versões nos dizem que por interferência de Ártemis).  Apolo, mais uma vez,  que tinha por Admeto toda a solicitude que se possa ter por alguém, embriagou Átropos, retardando assim a morte de seu protegido, para que se procurasse uma outra pessoa para morrer em seu lugar. Consultados, os pais do soberano, embora muito velhos, mal enxergando a luz do dia, não quiseram fazer o sacrifício pelo filho.

ALCESTE   MORRENDO ( J. F. P. PEYRON , 1744 - 1814 )

Tudo estava nesse pé, quando Alceste, corajosamente, se ofereceu para dar a vida pelo marido, não só por amor a ele mas por considerar que a presença do pai seria bem mais importante que a da mãe para a educação dos filhos do casal. Versões: a) Alceste teria se matado logo, sacrificando-se, ingerindo veneno; ao descer ao Hades, Perséfone, achando absurdo e injusto tal sacrifício, a incitara a voltar e tomar de novo o seu lugar entre os vivos. b) Admeto, diante de Thanatos, que viera buscá-lo, oferecera, covardemente,  ao deus da morte a sua própria esposa como substituta. Quando Thanatos estava para agarrar Alceste, eis que surge Hércules, que recebera hospitalidade de Admeto, depois de ter cumprido o seu primeiro trabalho (As Éguas de Diomedes). Ciente do que ocorria, Hércules travou um violento combate com o deus da morte, conseguindo arrancar de suas garras a jovem e bela esposa de Admeto. 


HÉRCULES   LEVA  ALCESTE  A  ADMETO
( ANTOINE  COYPEL , 1661 - 1722 )
Modelo de uma esposa amantíssima e exemplar e de uma inexcedível piedade filial, a esposa de Admeto e filha de Pélias, com justa razão, deu seu nome ao que chamo de complexo de Alceste, isto é, aquele comportamento, parcial ou totalmente inconsciente, vinculado ao terreno da afetividade, que leva algumas mulheres a agir como a esposa de Admeto o fez com relação à sua vida familiar, como filha, como esposa e como mãe, a mais perfeita encarnação do ideal feminino segundo o mundo patriarcal.   

A inclusão da piedade filial como elemento deste complexo se deve a uma história que envolve Medeia, sobrinha de Circe, feiticeira como a tia. Tudo começou quando Jasão retornou a Iolco, depois da conquista do Velocino de Ouro. Passou a arquitetar com a grande feiticeira, sua esposa, um estratagema para eliminar Pélias, seu tio, que havia usurpado o trono do país, que por direito caberia a seu pai, condenado à morte pelo irmão.  

MEDEIA  E  FILHAS  DE  PÉLIAS
Por amor ao marido, muito humilhado pelo tio desde que voltara da Cólquida, Medeia se aproximou enganosamente das filhas de Pélias, que não sabiam da sua união com Jasão, e as convenceu de que poderia, com a sua arte mágica, rejuvenescê-lo, já muito avançado em anos que estava. Bastaria que as filhas o fizessem em pedaços e que os lançassem num caldeirão de bronze com muita água. Medeia, então, adicionaria a essa mistura um preparado que só ela conhecia, um segredo de sua família, trazendo Pélias de volta à vida numa forma muito rejuvenescida. Para demonstrar do que era capaz, a sobrinha de Circe, usando o processo acima descrito, transformou um velho e trôpego carneiro num jovem e saltitante cordeirinho. 

As pelíades, como a história registra, se entusiasmaram e diante do que lhes fora demonstrado não hesitaram em matar o pai e destroçá-lo. Procurada para que fosse aplicada a sua receita, Medeia não foi encontrada. Jasão e sua família estavam vingados. Dentre as pelíades, Alceste foi a única a não aderir à proposta de Medeia, combateu-a mesmo, afirmando que as leis de Cronos deveriam ser respeitadas por todos, que nem mesmo os deuses poderiam revogá-las, e que amava o pai mesmo velhinho. Assim, além de exemplo de piedade e de respeito familiar, de grande amor ao marido e aos filhos, da aceitação do papel que lhe cabia nesse
ESTER   NUM   PURIM
( E. LONG , 1829 - 1891 )
contexto de superiores valores masculinos, Alceste ofereceu também inegáveis provas de inexcedíveis sentimentos religiosos, merecendo, por isso, dar nome ao complexo que descrevi, tornando-se assim um insuperável exemplo para todas as mulheres atreladas ao mundo patriarcal. Como ela, talvez, ainda que não de todo satisfatória a comparação, pela excepcionalidade de seu exemplo, algumas matriarcas judias como Ester e Léa.

Os habitantes da antiga Acádia, na Mesopotâmia, davam o nome de Girtab ao escorpião, isto é, “àquele que pica”. Era o símbolo das trevas, pois trazia consigo a diminuição da potência solar, depois do equinócio de outono. Há uma passagem da mitologia grega que traduz, com outras palavras, este poder que o escorpião tem de afetar o Sol. O deus Hélio, o Sol considerado fisicamente, depois de muita insistência por parte de seu filho Faetonte, emprestou a ele seu carro.

FAETONTE  ( JAN EYCK , 1390 - 1441 )

Muitas foram as recomendações e advertências, de modo especial quanto à fogosidade dos cavalos e quanto às zonas que, ao transitar pelo Zodíaco, ele iria atravessar. Em cada uma delas um perigo, animais bravios, traiçoeiros, carneiros, touros, caranguejos, leões etc. Bem ou mal, saindo às vezes da eclíptica, encostando na terra, provocando incêndios, Faetonte conseguiu chegar até a sétima constelação, Libra, que não teve problemas para atravessar. Contudo, ao ingressar na constelação seguinte, qual não foi o seu espanto e o seu desespero. Os quatro cavalos, sentindo-se certamente não conduzidos por mãos hábeis, desarvoraram-se, assustados, enlouquecidos, diante do monstruoso escorpião que lá vivia. Faetonte, como a história registrou, perdeu totalmente o controle do carro. Os desastres se sucederam de tal modo que Zeus, a pedido da Mãe Geia, não teve outra alternativa senão a de fulminar o tresloucado jovem, que pagou a sua vida, mergulhando com o carro nas águas do rio Erídano.

Um dos grandes mitos da antiguidade que devemos associar ao eixo Escorpião-Touro é o do deus Mithra, que tem relação com o deus de mesmo nome da religião védica. O nome mithra, na origem mihr, queria dizer Sol. Depois, passou a significar contrato, na época aquemênida, também nome de uma divindade conciliadora para representar a alternância entre a luz e as trevas, assumindo inclusive as funções de um deus de natureza escatológica. Seu culto se espalhou pelo mundo helenístico e depois romano sob a forma de uma religião de mistério (sete graus de iniciação).


MITHRA

A estatuária helenística popularizou a cena da imolação de um touro por Mithra numa gruta. Era o taurobolium, o batismo pelo sangue do touro. De grande penetração no mundo greco-romano, o culto foi muito difundido nos meios militares. Como ideias essenciais do mitraísmo destacamos um zelo ardente pela pureza moral, obtida e conservada graças a uma atitude belicosa, a do “soldado da fé”. Daí, o prestígio do culto entre as legiões romanas, traduzido pela veneração da luz, sendo o único princípio “invencível” o Sol (Sol Invictus). A grande festa do mitraísmo era celebrada no dia 25 de dezembro, uma das datas aproveitadas pelos primitivos cristãos para nela fixar a sua festa de Natal. 

Mithra era, entre os antigos persas, o deus da luz criada, da veracidade, da boa fé e da justiça, sempre invocado como garantia da palavra dada e dos contratos em geral; uma espécie de juiz clarividente das ações humanas. Neste sentido era um mediador entre dois mundos opostos, o mundo luminoso superior (nona casa astrológica) e o mundo da luz criada pelos homens (sétima casa astrológica). Seu culto também estava baseado na doutrina da ressurreição por uma regeneração física e psíquica. As cerimônias eram celebradas numa gruta, em torno de uma lanterna, com ritos especiais, chamados sacramentos: um batismo pelo sangue, pela água pura, por aspersões de água lustral (purificação), por unções de mel, pela distribuição comunitária do vinho e do pão). Os iniciados tratavam-se entre si pelo título de irmãos, sendo os superiores, instrutores, chamados de pais.

TAUROBOLIUM
No séc.II da era cristã, o rito do taurobolium foi introduzido no mundo romano, onde já era grande também a influência do culto de Cibele, Grande-Mãe, oriundo da Ásia Menor. O taurobolium era o batismo pelo sangue do animal, uma aspersão sanguinolenta que transformava o mystes num renatus in aeterneum, nascido para uma nova vida, eternamente. A vigorosa energia do animal regenerava o corpo e a alma do iniciado, pondo-o em comunicação com formas superiores da vida espiritual. Os exércitos romanos difundiram o culto de Mithra por todo o império, com grandes celebrações no dia 25 de dezembro, logo depois do solstício de inverno, quando os dias começavam de novo a aumentar, festejando-se o renascimento do Sol, o Natalis Solis

O taurobolium significava também o controle da natureza primitiva e instintiva do homem, representada em muitas tradições por animais. Há cerimônias específicas para o estabelecimento dessa relação, principalmente em ritos de iniciação para jovens do sexo masculino. O jovem, através deste rito, entra na posse de sua alma racional e sacrifica o seu o lado instintivo, animal, por meio de um outro rito, sendo o mais comum o da circuncisão. Só então o jovem poderá ser considerado um ser humano. É por isso que, em muitas tradições, africanas especialmente, que os animais são considerados como seres não circuncidados. Assim, o sacrifício do touro pelo deus Mithra (sacrifício também encontrado nos cultos dionisíacos) pode ser considerado como um símbolo da vitória da natureza espiritual do homem sobre sua animalidade, da qual o touro é um símbolo comum. 

O que está acima pode, explicar, por exemplo, a popularidade das touradas e de temas míticos como o do Minotauro, símbolo das indomáveis forças instintivas do homem. O culto de Mithra, acredito, também pode ser compreendido, sob o ponto de vista astrológico, como a passagem da era cósmica de Touro para a de Áries, que começa em 1.662 aC., lembrando-se que o planeta Marte rege tanto o signo de Escorpião como o de Áries.

Outra aproximação muito significativa que podemos fazer com relação ao signo de Escorpião é o cotejá-lo com as crenças celtas relacionadas com a morte, com o outro mundo e com as ideias de renascimento. É importante dizer de início que os celtas continentais tinham uma atitude muito  positiva com respeito à morte como está demonstrado tanto por evidências arqueológicas como por testemunhos literários. Julio Cesar, o imperador romano, como se sabe, escreveu uma obra sobre as guerras que os romanos travaram na Gália, contra os celtas. Ele nos informa, pois os conhecia muito bem, que eles honravam deuses muito semelhantes aos dos romanos, inclusive o seu Dispater, a divindade que governava o mundo infernal; informou-nos mais Cesar que os druidas, os sacerdotes celtas, atribuíam muita importância à crença da transmigração das almas. Comentando, porém, esta última informação, ele acrescenta uma venenosa observação: a de que os druidas propalavam essa ideia para que os guerreiros celtas não tivessem medo de morrer. 


LUCANO
O poeta latino Lucano, no primeiro século da era cristã, observou que os celtas encaravam a morte simplesmente como um estágio entre uma vida e outra. Outras fontes literárias (Diodorus Siculus) afirmam a mesma coisa. As tradições mitológicas celtas projetam uma imagem muito ambígua sobre o seu inferno. Fala-se mesmo de uma vida melhor no Outro Lado. Não há dor, sofrimento, decadência; há festas, música, beleza, embora encontremos registros de combates entre heróis que nele se encontram. Outro aspecto, muito contrastante com o que está acima, é o de que inferno pode se tornar um lugar muito perigoso, sombrio, se visitado por humanos antes da morte. 

O aspecto tenebroso do mundo infernal é representado pelos celtas de modo especial nas festividades do Samain, realizada quando o Sol ingressa no sigo de Escorpião. Na Irlanda, era a maior festa, celebrada no início de novembro, marcando o fim de um ano e o início de outro. A festa era um ponto de transição cujos ritos procuravam garantir a renovação e a prosperidade terrena, os êxitos tribais, a germinação da boa sorte para a primavera e o verão seguintes.


SAMAIN  ( F. J. GOYA Y LUCIENTES , 1746 - 1828 )

LUPERCÁLIAS
O Samain corresponde ao Halloween anglo-saxão e equivale à festa de Todos-os-Santos e dos Mortos dos cristãos latinos. Marca, na segunda quinzena do mês de Samon (novembro), o começo da estação sombria, estabelecendo-se então uma comunicação temporária com os mortos. Em oposição a esta festa, no mês Imbolc (fevereiro), temos as celebrações associadas à deusa Brigit, equivalentes às Lupercálias romanas e ao Mardi Gras (terça-feira gorda, último dia do carnaval), festas que assinalavam o fim do período hibernal e o renascimento da vida e do mundo vegetal. A
SANTA  BRÍGIDA , 1280
deusa Brigit era, na origem, uma deusa ligada à terra, ao fogo e à poesia (esta última era considerada como uma expressão do fogo, tendo um caráter não material). Quando da chegada do cristianismo, muitas divindades celtas foram transformadas em santos, como foi o caso de Brigit, que virou Santa Brígida, chamada a Maria dos celtas, venerada tanto quanto São Patrício, o evangelizador dos irlandeses.



LUGNASAD  ( PIETER BRUEGEL, O VELHO , 1525 - 1529)

Em maio, tínhamos as festas chamadas Belteine, que marcavam o início da estação estival. Em agosto, realizavam-se as Lugnasad, em homenagem ao deus Lug, período das grandes assembleias. Estas festas, ao que parece, eram fixadas com base na observação de estrelas importantes. Samain e Belteine tinham início, respectivamente, quando da ascensão helíaca de Antares (Escorpião) e de Aldebarã (Touro). Assim, quando da ascensão helíaca de uma delas, o céu noturno era dominado pela outra. O ano era assim dividido em duas estações, uma sombria, de 179 dias, e outra luminosa, de 186 dias, em harmonia com o calendário climático e agrícola da Europa temperada. As datas das duas outras festas eram determinadas pela ascensão helíaca de Sirius (Lugnasad) e de Capella (Imbolc). 

CALDEIRÃO
O mais importante símbolo de regeneração do mundo celta era o caldeirão, nos seus três níveis: abundância, ressurreição e sacrifício. A maior parte dos caldeirões encontrados em várias tradições míticas deve a sua força mágica à capacidade que eles têm de transformar tudo o que neles é lançado numa massa confusa, equivalente à nigredo alquímica, para que a partir dela possa ser criada uma nova forma. O caldeirão celta lembra a cornucópia, tendo o alimento que nele se prepara um caráter inesgotável, símbolo de um conhecimento sem limites, no que se aproxima bastante de outro símbolo celta, cristianizado, o Santo Graal. O caldeirão celta podia restaurar a vida dos guerreiros, que renasciam mais fortes do que antes. A serpente era outro símbolo usado pelos celtas  para o renascimento, ao representar o conjunto dos ciclos da manifestação universal, o encadeamento do ser à cadeia indefinida dos renascimentos.

Ao falar do caldeirão, não podemos esquecer de Héstia, a deusa
HÉSTIA
grega da lareira. Um de seus atributos era justamente o caldeirão, identificando-o os gregos como uma representação do tesouro particular ou do tesouro público, ou seja, tanto das casas como da polis. Héstia “recebia” o que nelas entrasse. No primeiro caso, dinheiro e alimentos. No segundo, os tributos em geral. Em ambas as hipóteses, tudo era levado para o seu caldeirão, posto em comum, preparando-se uma grande “sopa”, distribuída para os da casa ou para os habitantes da polis, segundo as necessidades de cada um.