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domingo, 19 de julho de 2020

O NOUVEAU ROMAN, AINDA - 2





Em geral, os escritores do nouveau roman procuraram "desprezar" o leitor, "desprezo" que, em última instância, era uma homenagem a ele prestada. Isto porque eles o pressupunham apto a compreender que essa coisa de exigir do romancista (como do poeta, do pintor, do músico, do cineasta) a "significação" precisa e minuciosa de sua obra é, ao contrário do que pensam os adeptos de todos os "realismos", um fenômeno essencialmente burguês: pago por este livro, pago por este quadro, pago por este filme, e exijo que eles me tragam um resultado compensador, de ordem contábil-financeira e, sobretudo, que, afinal, não me encham de dúvidas e de problemas.

Finalmente, o aspecto moral quanto ao que aqui se expõe, uma vez que se mencionou o homem e seus valores: o nouveau roman é revolucionário pois procura desembaraçar os romances de tabus,  de regras, de proibições, numa subversão axiológica para colocar o gênero diante de novas responsabilidades e possibilidades. É ficção que nos faz renunciar a qualquer espécie de visão distante ou tentativa de recuo. Ele não pretende, por isso, ser outra coisa senão o romance do nosso tempo; nem melhor, nem pior, dos que existiram e existirão. E nesse estranho lugar de encontro do vazio e da plenitude que é a literatura abriu-se uma porta, a do nouveau roman, para nos indicar, ainda que obscuramente, os novos caminhos.

TROPISMES
Se quisermos datas, podemos considerar que o nouveau noman tem como ponto de partida as experiências pioneiras de Nathalie Sarraute que desde 1932 vinha compondo Les Tropismes, só publicado em 1939. De três escritores que a saudaram, com entusiasmo, pela nova proposta, Jean-Paul Sartre, Max Jacob e Charles Mauron, o que mais a incentivou foi o primeiro. Não foi por acaso, aliás, que Sartre lhe abriu as páginas de sua revista, escreveu um prefácio para ela e sempre viu o nouveau roman como um sinal de grande vitalidade do  gênero romanesco. O “parentesco” entre Sartre e Sarraute é de primeiro grau: ambos fazem, com seus textos, uma crítica contundente da sociedade burguesa, apontando os seus conformismos, o cerimonial das aparências, fala da má-fé dos salauds e das suas declarações pomposas e hipócritas. O nouveau roman conseguiu em pouco tempo, senão conduzir o romance contemporâneo a novos caminhos, propor pelo menos, tanto temática como formalmente, a retomada de alguns problemas esquecidos ou deliberadamente omitidos pelas gerações presentes e anteriores. Aliás, sobre este aspecto, não é por acaso que R.M. Albèrés, Pierre de Boisdeffre, Bernard Dort, Gaetan Picon e outros, além de Moravia, Sartre ou Vittorini, o abordaram, dedicando-lhe importantes estudos, mesmo que favoráveis uns ou contrários outros, mas sempre estudando-o.


LES TEMPS MODERNES
Teoricamente, o nouveau roman baseou-se a princípio nos textos de Nathalie Sarraute e de Alain Robbe-Grillet. Da primeira, nos artigos escritos a partir de 1950, publicados em Les Temps Modernes, revista de Sartre, e reunidos posteriormente em volume sob o título de L'Ère de Soupçon (1956); do segundo, nos ensaios Une voie pour le roman futur (1956) e Nature, Humanisme, Tragédie (1958). Não propunham eles nenhuma fórmula pré-estabelecida, não impunham regras, a não ser a necessidade de se eliminar certas convenções romanescas que a tradição insistia (e insiste) em preservar, consagrando-as como definitivas e indispensáveis, os caracteres, as personagens "vivas", o psicologismo fácil, a cronologia clássica, o utilitarismo, a introspecção com a intenção de transformá-la  em divertissement.


VIRGINIA   WOOLF
É certo que muitos dos problemas levantados pelo nouveau roman já haviam merecido a atenção de escritores como Proust, Virginia Woolf, Joyce, Kafka, Camus, Sartre e Faulkner. Parece-nos, todavia, que a mais importante contribuição do nouveau roman sob um prisma ainda não cogitado pelos antecessores (a não ser por Sartre),  embora entrevista talvez por alguns, reside no tratamento dado à problemática do olhar, melhor diríamos do visualismo, e às possíveis implicações técnicas que dele advêm. E é para nós essa problemática que vai, apesar do risco limitador, traduzir e mesmo situar num denominador comum as intenções dos escritores que se ligam mais ou menos diretamente com o movimento (vá lá o termo!), como Jean Reverzy, Nathalie Sarraute, Robert Pinget, Solers, Robbe-Grillet, Michel Butor, Claude Simon e outros, mesmo que consideradas as possíveis divergências que possam apresentar com relação aos seus pontos de vista ou ao tratamento técnico-estilístico dado às suas obras.

LA NAUSÉE
A problemática do olhar não é nova na literatura. Até Sartre, porém, como decorrência dos próprios postulados da filosofia existencial, o tema ainda não fora considerado com tanta amplitude. Se em Sartre os indícios desta problemática já estavam esboçados em L' Imaginaire, é em L'Être et le Néant, num extenso capítulo de quase cinquenta páginas, que vamos encontrar a sua formulação teórica mais perfeita e em La Nausée a sua aplicação prática mais adequada e consequente, como Roquentin a representa. 

Difícil por esse motivo se tornaria qualquer investigação sobre o novo romance sem uma referência ao experimento sartreano, principalmente em La Nausée, que nos permitiu entrar no conhecimento da espessura qualitativa do mundo e de urna provável relação de valores e vivências, com o seu respectivo ordenamento. Entretanto, se em La Nausée a procura do relacionamento é colocada no plano da contingência, já que Sartre pretendeu fazer tábula rasa da experiência de Roquentin, no nouveau roman  as relações da consciência com o mundo hão de ser vistas no terreno das infinitas probabilidades, sem narradores internos nem testemunhas que tudo sabem, retirando-se do texto qualquer sentido utilitarista, o campo do romanesco tradicional se reduz e passa apenas a existir a "objectité", a modalidade, segundo Sartre, pela qual as coisas e nós aparecemos, criando-se, ao mesmo tempo e deliberadamente, uma distância que o homem (leitor) é obrigado a percorrer. Inicialmente solidão, esta distância abre, contudo um vastíssimo horizonte de possibilidades, forçando aquele que a percorre a uma indagação sistemática dos comportamentos, pois são eliminadas também quaisquer referências ou alusões condicionantes ou alienatórias.

Eis porque o quadro do nouveau roman é rigoroso, implacável, não admitindo retrocessos ou concessões. O problema tem que ser resolvido por e através do próprio romance, na medida em o leitor é afastado dos modelos rígidos e imutáveis para que lhe seja entregue um "objeto" perturbador e inquietante, como nos diz Robbe-Grillet: à nossa volta, desafiando a mente dos nossos adjetivos animistas ou caseiros, as coisas estão lá. A sua superfície é nítida e lisa, intacta, mas sem fulgor fusco nem transparência.

JEAN  REVERZY
Isto foi o que fez, por exemplo, Jean Reverzy em Le Corridor. Um homem qualquer é colocado num quarto de uma pensão diante dos objetos e de seres que são apenas caracterizados por seus movimentos exteriores; o exame do comportamento desse homem mostra que, a princípio, a identificação do mundo só se torna possível pelos sentidos, pelos dedos que percorrem as superfícies; um pouco mais e o conhecimento já se vai precisando, o homem e os objetos influenciam-se reciprocamente; as formas difusas começam a ganhar contornos e os objetos a revelar a sua verdadeira estrutura.

Ao se proceder, em Le Corridor, o inventário dos movimentos e dos objetos, na focalização do que os sentidos propõem, processa-se a desmistificação de ambos, deles retirando-se a "interioridade", tão ao gosto de Proust. E isto porque os objetos não são para o nouveau roman "históricos" em si mesmos, mas são, sim, no mundo humano onde ocupam um espaço. Esta a razão pela qual o nouveau roman desfaz qualquer envoltório idealista em que se pretenda encerrar os objetos e seres do mundo, numa luta contra a acumulação, impedindo que o homem se "agarre" às coisas com o intuito de transubstanciá-las em pura interioridade deixando de reconhecer o verdadeiro e real significado que têm objetos e movimentos, dentro de todo um complexo social.


Assim, este descondicionamento que o nouveau roman procura não é, como à primeira vista poderia parecer, uma forma de reduzir as coisas e os movimentos a superfícies ou aparências, que seja apenas o romance do "estar lá". A visualização radical do nouveau roman busca ligações mais diretas e efetivas entre a consciência e o mundo. E esta observação poderá ser entendida segundo as palavras de Joseph-Emile Muller (L'Art Moderne): A arte é a expressão de uma concepção do mundo, e se em certas épocas nos propõe imagens naturalistas é porque nessa altura o homem se esforça para examinar 'objetivamente' a realidade visível para a dominar, e o olhar é para ele não só o meio de conhecimento mais satisfatório, mas também um dos meios que mais eficazmente lhe permitem agir sobre as coisas.

Nesse sentido, o nouveau roman é uma luta contra a tradição que não sabe ligar-se às forças naturais senão através de intermediários; que não sabe ver a realidade senão através de produtos manufaturados; que não sabe descobrir no mundo senão o reflexo da sua própria imagem; que não sabe reconhecer na superfície das coisas senão o significado que sobre elas outros homens já deixaram. Em suma, é luta contra a tradição cujo objetivo consiste essencialmente em manejar símbolos abstratos, palavras, algarismos, esquemas e diagramas para reduzir tudo a ideias, esforços, dores, necessidades, opressão, guerras.

As causas desta atitude nós vamos encontrá-las na história que se escreve depois de terminada a primeira guerra mundial. Com efeito, o que parecia ter sido A Catástrofe, O Desastre, uma guerra que a todos envolvera, fora esquecida rapidamente e tudo corria então no melhor dos mundos. Estávamos nos boom years: a ciência, muito mais que a industrialização, garantiria a tranquilidade e a paz; nada perturbaria o horizonte calmo da nova era que se inaugurava sob a égide da vitória e do progresso, nem o fascismo, uma ameaça remota, nem o nazismo, um epifenômeno. Entretanto, veio a segunda guerra mundial e, com ela, em seu bojo, a ameaça permanente de uma terceira. E chegou-se à conclusão de que o paraíso prometido por Comte e seus discípulos nada mais era do que um deserto de ideias, de cinzas e de escombros. Eis no que deram a ciência e a tecnologia, seu subproduto: consumismo, bombas, anestésicos, celulares, ansiolíticos, pestes e uma angústia infinita.


THE LOST GENERATION
Literariamente, tudo isto tem um significado. Da literatura da lost generation passamos a uma literatura de crise; descobre-se nos subterrâneos um profeta, Kafka, que foi trazido à luz pelos oficiantes do novo culto, Gide, Sartre, Camus, Jean-Louis Barrault e outros. Segue-se ao ciclo do romance psicológico, que se abrira com La Princesse de Clèves, 1678, de Madame de La Fayette e que fora levado às últimas consequências, quase à metafísica, por Dostoievski, Proust e Joyce, o ciclo do absurdo, da asfixia. Cria-se um novo personagem, o homo absurdus, sem nome, sem pátria, o pária da modernidade do nosso novo milênio. 




As relações psicológicas pouco ou nada dizem num mundo em que se joga a descoberto, mais do que nunca, com armas e poderio econômico. O homem da segunda metade do século XX permaneceu indiferente e estranho a essa face não revelada; a introspecção clássica não conduzia a lugar nenhum, pois o homem não era mais que uma relação cujos suportes estavam na sua própria vida, na sua situação, como disse Sartre, e não dentro dele.

Havia, pois, para o nouveau roman ter que se partir do ponto onde o romance de "situação" chegara e dali forçar novas posições para retirar o homem de planos puramente psicológicos ou patológicos, nos quais, com o intuito de se preservar uma cultura agonizante, como se disse, e onde a tradição quis colocá-lo. É evidente que são fatores extra-pessoais de natureza social que constituem a base do nouveau roman como expressão de uma crise e de uma tentativa de superação.

Num ensaio, De Dostoievski a Kafka, Nathalie Sarraute esclarece bem este ponto: Podíamos reagrupar nossas forças e, esquecendo os dissabores passados, partir sobre novas bases. Caminhos mais acessíveis e mais promissores pareciam abrir-se por todas as partes. O cinema, arte cheia de promessas, emprestaria suas mais novas técnicas ao romance, que tantos esforços infrutíferos haviam feito reencontrar uma juvenil e tocante modéstia. A sadia simplicidade do jovem romance americano e seu vigor um tanto rude deram, por meio de um contágio benéfico, um pouco de vitalidade e de seiva ao nosso romance, debilitado pelo abuso da análise e ameaçado de esclerosamento senil. O objeto literário poderia reencontrar os plenos contornos, o aspecto acabado, liso e duro, das belas obras clássicas. O elemento 'poético' e puramente descritivo, que o romancista não via senão como um inútil ornamento, que só deixava passar com parcimônia, após minuciosa filtragem, perderia seu papel humilhante de auxiliar, exclusivamente submetido às exigências do psicológico, e desabrocharia um pouco por todas as partes, sem constrangimento.

Esta citação nos remete naturalmente a Proust, onde encontramos, como construção mais perfeita, a tentativa de recriação do passado em forma linear, valorizada pela razão. A experiência proustiana é, contudo um antagonismo aos processos utilizados pela memória e os escritores do nouveau roman o sabem perfeitamente. Sendo a memória afinal a fonte de todo o romanesco, ela deve ser enquadrada no campo do finito, isto é, do que existe, pois só o que existe já aconteceu. Daí porque a lembrança de um fato não é realizada propriamente pelo acontecimento em si, mas por circunstâncias e pormenores, por relações mais ou menos precisas que o cercam. A recuperação do passado há que se dar, portanto, através de uma mistura de planos, ausentes quaisquer critérios cronológicos ou valorativos.

O VENTO
Sobre este aspecto não podemos deixar de mencionar a profunda influência de Faulkner sobre o nouveau roman. Bastará apenas citar a estrutura de The Sound and the Fury e, num sentido mais amplo, a rejeição de personagens individuais, a procura faulkneriana de caracterizar um espaço social onde os homens se apresentam com os seus problemas, as suas verdades, os seus erros, as suas aparências, ainda que referenciados no tempo e no espaço. É a lição, a grande lição de Faulkner, que Claude Simon, por exemplo, captou com grande agudeza em O Vento, que tem por subtítulo Tentativa de Reconstituição de um Retábulo Barroco.

Esta intercalação de planos, de imagens, com passagens e inversões, contraria frontalmente a técnica do romance tradicional, em que o autor aparece demiurgicamente, ordenando a seu critério os acontecimentos como um pequeno deus-todo-poderoso. O escritor deve, por outro lado, funcionar como uma câmara fotográfica, servindo-se, em maior ou menor grau, do seu senso plástico (formas e cores) para transmitir o que pretende. Há, por isso, no nouveau roman uma verdadeira obsessão visual, justificável sob todos os aspectos, se levarmos em conta que o homem moderno vive sob um impressionante impacto de imagens, que os mais variados meios de comunicação lhe põem ao seu alcance ou mesmo que o atingem subliminarmente.

O estilo tornar-se-á então preciso e claro, uma orgia vocabular talvez (o que não deixa de ser uma indagação sobre a linguagem), ainda que desponte o ceticismo, pois a linguagem trai, "esta linguagem que, com a inflexível perfídia das coisas criadas ou submetidas pelo homem, se voltam contra ele e se vingam com muito mais traição e eficácia do que a aparência que têm, de preencher docilmente a sua função".


terça-feira, 27 de setembro de 2011

ULYSSES





Dublin, 16 de junho de 1904. Bloomsday. Dizer que Leopold Bloom é o Ulysses do título; que Stephen Dedalus é Telêmaco; que Marion, a mulher de Bloom, é Penélope; que Gertie MacDowell é Nausicaa, e assim por diante, é simplificar demais. Se assim fosse, bastaria tomar a Odisseia e comparar os episódios. É certo que Joyce (e nisto podemos ver a sua virtuosidade) seguiu a epopeia de Homero para fazer o arcabouço da sua novela. Mas os episódios da Odisseia são apenas as coordenadas pelas quais Joyce pode construir a sua própria visão da vida: a ação cobrindo um determinado dia, numa determinada cidade. E temos a grande crítica da vida do século XX, uma representação que, fechando a porta do heroico, abre-nos a da idade do muflisme (Gustave Flaubert).

Ainda que a base seja homérica, Joyce com o Ulysses vai mais adiante, pois expressa o universal no particular; Bloom, Dedalus e Marion Bloom tornam-se as modernas versões de arquétipos-figuras que nós vemos por trás deles. Por outro lado, Ulysses nada esclarece ou acrescenta à epopeia de Homero, como tampouco esta, exceto naturalmente a parte estrutural, nenhuma luz joga sobre a novela de James Joyce. Temos então no paralelo, talvez, a melhor forma para o entendimento do Ulysses. E parece que é isso mesmo que Joyce pretendia. Dedalus, o jovem poeta, que é também o personagem central de uma novela autobiográfica, A Portrait of the Artist as Young Man, não é apenas Telêmaco, mas Hamlet ou um dos aspectos de Hamlet. Dedalus, tendo repudiado a mãe e renunciado ao pai anda à procura de alguém que o substitua, um pai espiritual; Bloom, cujo filho morrera na infância, precisa também de alguém que ocupe esse vazio, e, de um modo simbólico, ambos, Dedalus e Bloom, encontram o que desejam em cada um quando se conhecem.

JAMES JOYCE

Acima de tudo, porém, acima de qualquer interpretação, entendemos que Joyce pretendeu mostrar na sua novela toda a vida e toda a História, encerrando-as num certo dia de 1904, em Dublin. Seria absurdo ver a novela como um simples panorama do horror da vida moderna, "a suja Daily Mail era", como Ezra Pound queria. Joyce escreveu, isso sim, numa escala gigantesca, o Between the Acts, de Virginia Woolf, muito embora Ulysses preceda aquela novela de cerca de vinte anos. Estamos diante da vida, nos dois extremos: nascimento e morte. Quando, por exemplo, Bloom está com os estudantes de medicina na maternidade do hospital o episódio é relatado por meio de uma série de paródias da língua inglesa, desde as suas mais arcaicas formas até as mais modernas manifestações do jornalismo. Virtuosidade gratuita? Não. Os estudantes estão à espera do nascimento de uma criança e as paródias dos sucessivos estágios do desenvolvimento da linguagem são o meio de Joyce espelhar o desenvolvimento do embrião no útero. A intenção formal é clara. Joyce procura transmitir ao leitor a sensação de simultaneidade. Nosso cérebro opera em duas dimensões: tempo e espaço. A máquina fotográfica, que não "pensa" as imagens, atua só no espaço, fazendo um registro simultâneo, sem necessidade de recorrer ao tempo. A mente humana, pelo contrário, precisa do tempo para efetuar as mudanças. Agora a pergunta: será indispensável o tempo à mente humana? Sabemos que alguns cérebros conseguem com uma velocidade notável, dependendo, é claro, do grau de cultura e da agilidade mental, passar de uma ideia a outra ou de uma imagem a outra. O problema é de aceleração. Em certas páginas do Ulysses, Joyce emprega-a de tal maneira que um só acontecimento da novela encerra todos os demais da sua espécie e a história toda é recapitulada num só dia. É a ubiquidade.

"Local" como nenhum outro, o livro quase que poderia ser tomado inteiramente como um guide-book de Dublin. A ficção ainda não nos deu nada de igual. Ao recriar com tanto cuidado e nos mínimos detalhes a sua cidade, Joyce transmite-lhe uma intensidade de vida que jamais poderemos pensar nos personagens sem ver Dublin como que os integrando.

As três grandes figuras do livro, nós as conhecemos pela introspecção, variando o meio que Joyce utiliza para nos pôr a par da vida interior de cada uma delas. Nas novelas de Virgínia Woolf, os personagens tendem a pensar e experimentar o momento como a própria autora o faz; eles dividem a sua sensibilidade e o seu modo de apreensão. Por Ulysses, é impossível dizer o que é a sensibilidade de Joyce ou qual é o seu modo de apreensão. Stephen Dedalus, em A Portrait of the Artist as Young Man, refere-se ao fato, explicando que "O artista como o Deus da criação permanece dentro ou atrás ou além ou acima do seu trabalho manual, invisível, fora da existência, indiferente, cortando as suas unhas". É essa a situação de Joyce, que está fora, ou quase, da existência do Uliyses. Bloom, Marion e Stephen Dedalus pensam, sentem e falam de diferentes modos e num estilo tão diverso como o são realmente.

Sem dúvida uma das mais surpreendentes qualidades de Ulysses é a variedade com que Joyce apresenta os seus personagens e as cenas. Talvez resida aqui a dificuldade de se ver o livro como um todo. Todavia, foi justamente esta extrema diversidade que permitiu a Joyce dar à sua novela a qualidade sonhada por Flaubert, que era de transmitir à prosa o ritmo do verso e descrever a vida comum como são escritas as histórias e as epopeias. E Joyce o conseguiu, além de criar uma linguagem nova. Se no verso é poeta menor, na prosa Joyce chega à genialidade quando nos transmite o sentido e a contextura de certas cenas e atmosferas, como acontece, por exemplo, logo no início da novela. Na cena da evocação da manhã, as frases parecem que imitam a coisa descrita; dão-nos a impressão de estarmos dentro da mente de Joyce.

ULISSES E AS SEREIAS

Para o pensamento escolástico de Joyce, filosofia significa Aristóteles, enquanto vida imaginativa quer dizer Odisseia. Este contraste entre Homero e Aristóteles é que mantém a peculiar tensão entre prosa e poesia, teoria e mito, "unidades" e universalidade, tempo e eternidade, existentes no Ulysses. Não se trata de um livro cômico, mas de uma grande comédia, no sentido que tem a visão de Dante: um reflexo total da existência onde se entrelaçam todas as tensões humanas. Neste particular é bastante significativo o fato de Joyce ter anotado: Tragedy is the imperfect manner and comedy the perfect manner in art. Não que em Ulysses falte a tragédia. Ela lá está, como o homem moderno mais a sente: a solidão e a inelutável, irônica e exuberante comunhão da carne. Marion Bloom, deitada na cama, é o ponto silencioso ao redor do qual toda a máquina gira, o lugar onde as paralelas se encontram e os contrários coincidem. Ela é o Primum Mobile do cosmos joyceano. A vida é um emaranhado de aspirações masculinas e de interesses que se chocam, porém o monólogo de Marion Bloom continuará para sempre.

Por isso, nós nunca nos identificaremos com os personagens de Joyce. Eles são independentes, têm vida pró¬pria, sofrem pela sua condição humana e não pelos seus pecados; vivem no seu próprio mundo, mundo denso e sólido, macrocosmo no microcosmo, aquele de um dia de junho do ano de 1904, em Dublin, Bloomsday. É este mundo que dá a Ulysses a sua real e profunda unidade. Desenterrando as mais antigas tradições do seu país, Joyce é, no século XX, o escritor que a Irlanda não teve nos seus primeiros anos. Um moderno Chaucer, Dante, Camões. Os mitos existiam, a epopeia criou-a ele ao construir, fora do tempo, num dreaming back, esse singular e prodigioso mundo que é Ulysses. Se ainda hoje muitos vacilam entre a alternativa de ver a novela como um todo ou como uma magnífica ruína, é mais importante o fato de que quanto mais nos esforçamos para chegar a uma decisão, maior se torna o mundo criado por James Joyce.

Joyce usa o método do stream-of-consciousness. Cada imagem definitiva da mente está embebida e tem a cor da água livre que corre à sua volta. A significação, o valor da imagem está todo neste halo ou penumbra que a envolve e acompanha. A percepção não aparece cortada aos pedaços. Nada está ligado, tudo flui. Demos a isto ou não, não importa, o nome de fluxo do pensamento, de percepção ou de vida subjetiva. Marion entra na novela de forma mais independente na parte final: à noite, na cama, relaxada, sonolenta, isolada de qualquer contato com o mundo exterior, os seus pensamentos, as suas memórias de amor, as suas especulações sobre Dedalus e Bloom vão de um lugar para outro sem que haja a menor obstrução; dezenas de páginas sem pontuação. Do monólogo interior de Marion Bloom parece escapar o bater ritmado de um imenso coração que, entre a vigília e o sonho, verte um fluido vital para inundar as grandes ampliações da vida, para cobrir os interstícios, as cicatrizes dos dias e os soluços inevitáveis que flutuam nas águas da memória como irreparáveis recordações.

Com Bloom já é diferente. Ao andar pelas ruas de Dublin, ele é assaltado pelos pensamentos, pelas coisas que os seus olhos captam, pelos aromas. Algumas vezes, chegam-lhe à consciência, através das impressões sensíveis, por associação, as preocupações mais permanentes: o vazio da vida pela morte do filho, o suicídio do pai, a humilhação porque a mulher o trai, o sentimento de ser um outsider devido à sua situação de judeu. Assim, Bloom abre-se todo para nós, mais do que qualquer outro personagem da ficção moderna. Ele é l’homme moyen sensuel e também o little man, vulgar, curioso, às voltas com o seu pequeno e sujo segredo sexual, anti-heróico, essencialmente o anti-herói. Mas Bloom é bom, na sua ingenuidade há algo de inocente. Ao mesmo tempo cômico e figura de um grande pathos.

Stephen Hero, Stephen Dedalus é um caso especial. Projeção do próprio autor quando jovem, arrogante, torturado por uma grande ambição ainda não realizada, atacado pelo remorso, aquele que renegou a família, a religião e a pátria. Ao apresentar Dedalus, Joyce usa uma exposição que não pode ser confundida com a técnica do stream-of-consciousness. O modo de pensar de Stephen é absolutamente diferente do de Bloom ou Marion; quando estamos confiados a ele, temos diante de nós, os graus mais elevados de conhecimento, controle e propósito. Stephen pensa em termos intelectuais, é culto, vale-se da linguagem dos schoolmen. Mas "pensar" talvez não seja a palavra adequada: a linguagem que Joyce põe na mente de Stephen Dedalus é antes uma notação do modo pelo qual ele pensa do que uma tentativa de transcrição literária dos seus pensamentos.

Artigo publicado em A Tribuna, página "Literatura, Arte e Cultura", em 11/06/1961, a pedido de Geraldo Ferraz. Republico-o hoje em homenagem ao meu joyceano amigo Florivaldo Menezes.