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sábado, 27 de março de 2021

MONSTROS - IV

O que fica de mais consequente da história do Golem é que ele, como proposta última, é uma criatura do mundo religioso, representando a pretensão que o homem tem de imitar a Deus. Sua criação, segundo essa mesma visão religiosa, não passa de algo incompleto; o ser criado é destituído de liberdade, inclina-se para o mal, tornando-se escravo de suas paixões. Numa outra intepretação, mais adequada talvez, o Golem seria a imagem da criação tecnológica que se rebela contra o seu próprio criador e que pode esmagá-lo. 

HEFESTO
Essas ideias sempre circularam ao longo da história do homem em todo o mundo medieval, sendo oriundas, para a cultura ocidental, principalmente da Grécia antiga. O deus Hefesto, grande divindade metalúrgica, mestre do fogo e das artes da transformação, sintetiza certamente no seu mito todas estas pretensões humanas. É por essa razão visto como o deus da tecnologia, capaz de criar maravilhas sob o ponto de vista técnico, mas é totalmente amoral, aético na sua ação. Basta-lhe, apenas, a perfeição técnica do que cria, não entrando ele jamais em outras cogitações e questionamentos sobre o que produz. É, como tal, como se disse, símbolo do demiurgo amoral e, como tal, uma das grandes imagens da tecnologia moderna.  

Os rabinos, segundo a tradição cabalística medieval, entenderam que Deus não fabricara Adão de uma só vez. O caminho parece ter sido longo, combinações repetidas e corrigidas várias vezes. As disposições alfabéticas indicavam que era preciso, partindo do tetragrama IHVH, combinar as letras 231 vezes para dar vida à criatura. Tal foi feito, transformando-se aquele monte de terra acumulado, ao embalo monótono das recitações, num ser encorpado, terroso. A obra se completou quando, como se disse, lhe foi inscrita na testa a palavra Emet (Verdade). Também como já se viu, deram-lhe a missão de proteger os habitantes de Josefov dos ataques antissemitas.

Mas o monstro ficava cada dia maior, a ponto de sua cabeça romper o telhado da casa. A população da cidade começou a acorrer ao bairro para ver o prodígio. Vagando à noite, o Golem começou a matar indiscriminadamente as pessoas. A violência tomou conta da cidade. Os habitantes do bairro, antes protegidos, começaram a se sentir ameaçados pelo monstro, pedindo a sua morte. Não restou outra alternativa ao rabino senão a de destruí-lo. Uma noite, numa sala da casa, só o criador e a criatura, o rabino acercou-se dela e conseguiu apagar a primeira letra do nome que ela trazia gravado na testa. Imediatamente, o Golem se desmanchou, se desfez. Uma massa informe ocupou toda a sala, sufocando o rabino. Como um teraphim, nome que lhe deram os hebreus, o Golem, nesse sentido, não só se aproximou do simbolismo do urso (ser humano incompleto), como daquele que cercava os Penates e os Lares romanos (deuses protetores da casa e da família). 

LÂMIA
(JOHN WATERHOUSE, 1849-1917
Pela aproximação acima e lançando agora o nosso olhar ao antigo mundo grego, um dos monstros que mais chama a nossa atenção é a Lâmia, cujo nome provém de um radical grego lem, que tem o sentido de devorar, sugar. A mitologia, na versão mais canônica, nos informa que ela é filha de Poseidon e de Líbia, aparecendo nas histórias como um monstro raptor e devorador de jovens ou crianças. Poseidon é o deus do elemento líquido, dos oceanos, dos mares, dos rios e dos lagos. Um de seus apelidos é Hippios, o gerador de cavalos, ligando-se, como tal, a esses animais como símbolos da vida ctônica, do psiquismo inconsciente. Um de seus filhos é, por exemplo, Pégaso, cavalo alado da mitologia grega, que tem a ver com a inspiração, com a imaginação poética, desde que montado por heróis (artista competente). Aqueles que o montam sem uma preparação adequada, sem uma técnica trabalhada, longamente adquirida, comparada, avaliada, produzem monstruosidades artísticas, sendo por ele apeados, humilhados ou mortos.

POSEIDON -  HIPPIOS  ( CERÂMICA )

Os filhos de Poseidon são todos disformes, violentos, descontrolados, entregando-se à hybris com relativa facilidade. Tal propensão, como é fácil ver, decorre de sua origem, o elemento líquido, a água, que, no seu aspecto negativo, indica ausência de limites, falta de contenção, sempre. Negativamente, o elemento líquido, como se sabe, quando prepondera na personalidade de alguém produz uma sensibilidade extremada, favorecendo a permeação. Surgem então os estados de abandono, de inflação emotiva, inconscientes, que levam este alguém a se confundir com esses estados que sempre o ultrapassam. Ou seja, o que a pessoa sente escapa sempre da possibilidade de qualquer controle.

Inicialmente, Lâmia é descrita como uma mulher de grande beleza, tendo sido por essa razão notada pelo Senhor do Olimpo. Sentindo-se incompleta sem filhos, e desejando-os maravilhosos, não relutou em ceder às investidas de Zeus. Teve os filhos, mas as crianças assim que nascidas eram sistematicamente eliminadas a mando de Hera. Não sabendo o que fazer, desesperada, refugiou-se Lâmia numa caverna, passando a odiar toda a humanidade, sobretudo as mulheres que tinham filhos normalmente. 

HIPNOS
Aos poucos, tomada por um ódio crescente, começou a sair da sua caverna à noite para raptar crianças e devorá-las. Hera continuou a persegui-la, tirando-lhe o sono, não deixando que Hipnos, deus do sono, como fazia com todos, tocasse as suas pálpebras com o seu tridente.

Compadecido, para aliviar o seu sofrimento, Zeus concedeu-lhe o privilégio de poder arrancar e recolocar os seus olhos quando bem entendesse. Mas isso não resolveu o seu problema, a sua grande frustração. Desesperada, Lâmia, mesmo arrancando os seus olhos, e conseguindo às vezes dormir, vivia em grande irritação e, ao mesmo tempo, em profunda depressão. Começou então, cada vez mais cheia de ódio, a se embriagar e a sair às noites para se prostituir ou para raptar e matar crianças. Aos poucos, foi Lâmia se tornando uma criatura completamente descontrolada psíquica e fisicamente. Enorme, gorda, relaxada, imunda, sexualmente insaciável, transformou-se num monstro, a rondar as casas onde morassem crianças e jovens.

ILÍTIA
(TERRACOTA DE CHIPRE)

A história de Lâmia sempre foi considerada como uma ilustração da inveja, do ódio, do ciúme da mulher que não pode ter filhos e/ou da mulher que os tem fora da união legal; como tal, é um mito ligado aos valores da deusa Hera: casamento e prole oficiais. Hera, lembremos, era a deusa das justas núpcias, protetora das esposas legítimas e da descendência legal. Uma de suas filhas, aliás, a deusa Ilítia (a que faz vir à luz), é a deusa dos partos. Fiel seguidora da mãe, Ilítia sempre perseguiu implacavelmente as amantes de Zeus.

Muito próxima da Lâmia, encontramos na mitologia grega a Empusa (esvoaçar, voltear) uma espécie de íncubo feminino, ligado a pesadelos (cauchemar, nightmare). Ela faz parte do séquito de Hécate, a grande deusa lunar triforme infernal. Empusa vagueia pelas noite de Lua Nova, aparecendo sobretudo às mulheres e às crianças. Alimenta-se de carne humana. Quando queria atrair homens, tomava a forma de uma belíssima mulher que aparecia nas encruzilhadas.

AQUERONTE  ( GUSTAVE  DORÉ, 1832 - 1883 )

Com versões da Lâmia, os gregos tinham ainda os monstros femininos Mormo, Mormólice e Gelo. A primeira, cujo nome lembra espantalho, era um bicho-papão que ameaçava as crianças; tinha o hábito de mordê-las nas pernas, tornando-as coxas, aleijadas. Já a segunda era um demônio feminino em forma de loba, gênio infernal que assustava as crianças. Era ama de Aqueronte, um filho de Geia, condenado a viver no Hades como um rio porque dera de beber aos Gigantes quando da luta que travaram contra os olímpicos. No Inferno, ele se uniu a Orfne, ninfa das trevas, nascendo dessa união Ascálafo, transformado em coruja por Deméter.  A última acima mencionada, Gelo (devorar, etimologicamente) era um monstro feminino que vivia em Lesbos. Na origem, era a alma penada de uma jovem que morrera sem ter filhos. Voltava constantemente ao mundo dos vivos para devorar as crianças e/ou para se utilizar delas sexualmente.

A palavra lâmia passou com o tempo a designar na antiguidade grega monstros femininos com cauda de serpente que devoravam crianças e sugavam o seu sangue, como os vampiros. Na Idade Média, elas aparecem associadas às feiticeiras, declarando alguns demonólogos que eram demônios ferozes, que às vezes apareciam sob a forma de belas mulheres.

Aos poucos, as características acima mencionadas, embora sempre presentes, latentes, foram dando lugar a outras, passando a Lâmia, nas suas diversas versões folclóricas, populares, a tomar a forma de um monstro que devorava as crianças travessas, malcriadas ou desobedientes. 


BICHO-PAPÃO
Por exemplo: da península ibérica veio para o Brasil, no período colonial, o Bicho-Papão, um descendente da Lâmia, um ser monstruoso, que às vezes podia tomar a forma de bichos, naturalmente sempre com uma boca enorme, muitas vezes com olhos de fogo, tendo no lugar do estômago um forno ardente para fazer jus ao “papão” de seu nome, como devorador de crianças. 


Na literatura oral portuguesa, a Coca é um bicho-papão que rouba as criancinhas. É às vezes chamada de Maria-da-Manta, soltando esta fogo pelos olhos. É uma entidade maligna que está sempre à espreita (estar sempre à coca) para impedir que o sono chegue. Vai-te Coca, vai-te Coca/ Para cima do telhado/ Deixa dormir o menino/ Um soninho descansado.

GIL VICENTE

Gil Vicente, 1465-1536, o genial criador do teatro português, identificava o Diabo como o marido da Coca, chamando-o de Coco, por isso. A Coca era normalmente figurada como um dragão. Nas festas de Corpus Christi, São Jorge vinha lutar contra a Coca. Como variantes do Bicho-Papão temos no nosso folclore o Homem do Saco e a Cuca, representações associadas, sempre tendo a função de assustar ou mesmo devorar as crianças desobedientes, monstros que encheram de terror muitas noites infantis. Educação, respeito e obediência aos pais e aos adultos eram, em antigos tempos, o melhor remédio para evitar a visita desses monstros.

A Cuca é uma versão feminina do Bicho-Papão. Durma, meu benzinho, que a Cuca logo vem era um dos versos das velhas cantigas de ninar. É interessante observar que o medo infundido pela Cuca às crianças também podia vitimar os adultos. Em Portugal e no Brasil colonial circulava, nos meios populares adultos, a frase: Eu cá não tenho medo de Cucas! e tomava-se uma talagada de boa cachaça: matava-se o bicho.

COCA
A origem dessa expressão se prende a motivos medicinais. Isto é, tomar uma bebida alcoólica forte para matar qualquer bicho (agente patológico) que estivesse alojado no corpo. Dizia-se, segundo uma história do séc. XVI vinda da França, que uma mulher morrera e se constatara, aberto o seu peito, que havia um verme grudado ao seu coração. A única maneira de matá-lo foi a de se colocar sobre ele um pedaço de pão embebido em vinho. A partir de então, dizem,  os médicos recomendaram que todo o jejum, pelas manhãs, fosse quebrado, além do pão, também com  vinho. 

Os beberrões logo adotaram a ideia, matando o  bicho a qualquer hora do dia, substituindo-se o vinho pela cachaça. E como bicho poderia ser também o Bicho-Papão, a prática pegou. No mundo da cachaça, são equivalentes a matar o bicho expressões como morder a batata, acender a lamparina, alertar as ideias, mudar de camisa, salgar o galo.

É em antigas cantigas de ninar e acalantos, entoados para para fazer as crianças dormirem, que encontramos as melhores referências a esses monstros. Chamadas berceuses na França e ninnananna na Itália, essas cantigas têm como personagens importantes o Bicho-Papão e a Cuca, além de referências religiosas a anjos (entidades protetoras), a pais ausentes e a entidades míticas do sono como João Pestana.  

JOÃO PESTANA
O João Pestana merece referência especial. É uma entidade mítica que personifica o sono que está para chegar. É muito tímido e assustadiço, só se aproximando quando tudo está quieto e silencioso. Ao menor barulho, ele se afasta, foge. Quando ele chega, as pálpebras (pestanas) se fecham; por isso, nunca ninguém o viu. No folclore português, de onde o herdamos, ele é parente do Pedro Chosco, que põe pequeninos grãos de areia nos olhos das crianças para que elas durmam. Este personagem, no mundo anglo-saxão, chama-se  Sandman.

Todos são temas de cantigas de embalar em muitas línguas. João Pestana costuma trazer muita ansiedade já que ele compete com entidades poderosas como a Cuca e o Bicho-Papão. Monteiro Lobato, em seu livro O Saci, diz que a Cuca tem cara de jacaré e só dorme uma noite a cada sete anos. Quando enraivecida, solta urros que podem ser ouvidos a léguas de distância. 

Dentre todas estas entidades a que talvez se aproxime mais da Lâmia no nosso folclore seja a Cabra-Cabriola, que não é propriamente uma cabra, mas um monstro gigantesco com dentes agudíssimos, que solta fogo pelos olhos e pelas narinas. Ela costuma andar perdida pelas noites, invadindo as casas e devorando indiscriminadamente todas as crianças que encontra.

sexta-feira, 26 de março de 2021

OS MONSTROS - III

 

MONSTROS SUMÉRIOS

Os monstros míticos, como símbolos criados pelo ser humano, nunca morrem. Sempre existiram e existirão ao longo da história do homem. Cada sociedade fabrica os seus, modelando-os como arquétipos, e os atualiza como símbolos, conforme o momento histórico e a  sua geografia. A “realidade” destes monstros está presente nas artes, em esculturas, pinturas e desenhos, está na literatura de todos os séculos. Hoje, os monstros parecem ter encontrado um terreno muito fértil para agir e proliferar na comunicação de massas,  no cinema, na TV, nas histórias em quadrinhos, nos jogos eletrônicos. 

É de se lembrar que os monstros míticos, a partir de fins do século XVIII, invadiram também aquelas áreas que a ciência moderna começou a descrever como anormalidade, comprometimento da ordem psicológica ou mental. Os que só se aproximaram deles com o chamado “espírito científico”, se atreveram a lhes dar outros nomes e a classificá-los, mas, no fundo, eles são os mesmos, desde sempre.

EL  SUEÑO DE LA RAZÓN PRODUCE MONSTRUOS
FRANCISCO JOSÉ DE GOYA Y LUCIENTES, 1746 - 1828

Sem conhecer o deus Pan, as suas origens, os territórios em que vive, os seus vários mitologemas, não há como entender a chamada síndrome do pânico, hoje uma verdadeira “epidemia”. Mais ainda: sem conhecer como a grande arte representou os monstros ao longo da sua história ficaremos apenas nos aspectos periféricos desse mundo. O conhecimento da obra de Goya, por exemplo,  de El sueño de la razón produce monstruos, dos seus Caprichos e das suas obscuras e enigmáticas Pinturas Negras, as últimas que produziu, permitir-nos-á, sem dúvida, entrar melhor nos subterrâneos da mente humana.

MOROS
No mais, os antigos gregos já nos diziam que tudo estava submetido ao poder de Moros, o Destino, divindade cega, nunca representada, a divindade do inexorável e do irrevogável. Inexorável, saliente-se, é o que não se abala nem com rogações ou súplicas e irrevogável é decisão que não pode ser mudada. Seus desígnios, inscritos no Livro do Destino, confundem-se com o próprio acontecer do mundo. Quando muito, as leis de Moros podiam ser consultadas pelos deuses, jamais alteradas porém. Às vezes os humanos podiam conhecê-las através de alguns videntes, profetas ou oráculos. As leis de Moros têm como fundamento o seguinte: tudo o que acontece pressupõe a existência de uma ligação entre a causa e o efeito. Disso resulta que sempre que na vida do ser humano aparecer um excesso, para mais ou para menos, na curiosidade, na bondade, na maldade, na beleza, na riqueza, no sofrimento ou no amor, há um “crime” a ser punido, um “pecado” a ser reparado. 

ANANKE
Ananke (A Necessidade, A Coação), dependendo da falta ou do crime cometidos, isto é, do excesso, libera os seus agentes, muitos deles monstruosos, para  forçar, cedo ou tarde, o que se excedeu a voltar aos limites dos quais nunca deveria ter saído. Como corolário temos as duas máximas: nada em excesso e conhece-te a ti mesmo. Quando não as observamos, Ananke entra em ação. É por esta razão, por exemplo, que a culpa e o remorso humanos, consequência da inobservâncias das duas máximas, continuarão a ser tratados na esfera de atuação das Erínias e que Até, como o delírio da razão, continuará a  induzir os orgulhosos e pretensiosos ao erro sem que eles o percebam. As palavras que porventura proferirem sob “inspiração” de Até serão a causa da sua própria perdição. À intervenção de Até,  demos o nome de Síndrome de Ricupero, em homenagem a um ex-ministro brasileiro, por ela vitimado vexaminosamente.

Abaixo, estabelecemos uma “biografia” sumária de alguns monstros, de várias tradições, procurando destacar de algum modo como eles podem intervir na expressão e no comportamento humanos. Começaremos pelo Golem, monstro que nos vem do mundo hebraico. A palavra golem quer dizer informe, incriado, lembrando gelem, que significa matéria-prima. Trata-se de uma figura mítica e simbólica; sua aparência é semelhante à de um autômato, criado artificialmente por meio da mágica cabalística, podendo ela se constituir num perigo mortal para o seu próprio criador. Na língua ídiche, no hebraico moderno, a palavra golem tem conotação insultuosa, significando imbecil, estúpido, tolo.

PROTEU
É de se ressaltar que a literatura filosófica da Idade Média empregava a palavra golem para se referir a hyle, termo grego que tinha o significado de matéria sem forma, aquilo que era anterior à forma (eidos). Hyle era a “coisa”, o substrato primário da mudança que receberia uma forma, melhor dizendo uma massa proteica. Proteico é o que pode adquirir várias formas, potencialmente multifacetado, polimorfo. O nome nos vem do deus grego Proteu, uma antiga divindade marinha que podia tomar a forma que quisesse. Adão, nesta perspectiva, antes de receber o sopro divino, era considerado por uma certa tradição cabalística como um golem. Há no Talmud (literalmente, estudo), a obra mais importante da tradição oral, editada posteriormente, um trecho que nos fala das primeiras doze horas de Adão, onde nos são fornecidos detalhes sobre o Adão-Golem. 

Alguns tentaram aproximar (erradamente) as palavras golem e zumbi. Esta última vem de nzumbi, que na língua quimbundo quer dizer espírito atormentado, uma espécie de morto-vivo, alma que vagueia a horas mortas. Popularmente, a palavra zumbi se integrou ao nosso léxico e é usada para designar aquele que só está vivo ou só sai à noite.

O Golem, segundo a tradição judaica, foi criado por meios mágicos artificiais, para concorrer com a criação de Adão por Deus. Esta criação é uma imitação do ato criador divino e com ele conflita. O Golem é mudo, seus criadores nunca conseguiram lhe dar o dom da palavra. Ao longo dos séculos, a criação de Adão por Deus sempre esteve associada à ideia do Golem, ambos criados a partir da argila, da lama. 

MARY  SHELLEY

Uma certa semelhança pode ser estabelecida entre o Golem e o conde Frankenstein, idealizado por Mary Shelley. Esta romancista britânica, nascida Godwin (1797-1851) era a segunda mulher do poeta Percy B.Shelley, amigo de Keats e de Byron. Mary não tinha vinte anos quando escreveu “Frankenstein” ou “O Prometeu Moderno”, em 1817, novela pseudocientífica que evoca a criação artificial de um ser humano e o drama de seu demiurgo.

Muitos dos temas desenvolvidos por Mary Shelley na sua obra estão presentes na história do Golem. O principal é o de que a criação é divina. Ao tentar criar a vida artificialmente, o homem sempre fracassa. O mesmo se diga da pretensão da ciência e da tecnologia de criarem paraísos terrestres  e do poder (destruidor) que o homem vem exercendo sobre a natureza. A Inglaterra de Mary Shelley, não esqueçamos, era ao tempo em que ela escrevia o seu Frankenstein, o país mais industrializado do mundo.   Estas ideias, aliás, já estavam implícitas na mitologia grega, em histórias como a das asas que Dédalo, o inventor mítico, fabricou para que seu filho, Ícaro, fugisse do Labirinto. 

BORIS KARLOFF
É de se registrar que, devido a essa possibilidade de muitas leituras através de vários ângulos, a obra de Mary Shelley logo foi adaptada para o teatro e para o cinema, sendo clássica a produção cinematográfica de 1931, dirigida por James Whale, tendo Boris Karloff (1887-1969) no papel do monstro.   A Alquimia, lembremos, desde a Idade Média, tinha fixado como um de seus objetivos a criação artificial da vida humana (os dois outros objetivos eram: a transmutação do chumbo em ouro e a fabricação do elixir da longa vida ou pedra filosofal). 

PARACELSO
Quem pela primeira vez mencionou a ideia da criação do Homunculus foi Paracelso (Philippus Aureolus Theophrastus Paracelsus), alquimista suíço, 1493-1541. Essa criatura seria formada a partir do sêmen humano, colocado numa retorta hermeticamente fechada, e aquecida, com fezes de animais (cavalo), durante quarenta dias; a operação seria o primeiro passo para a formação de um embrião da futura criatura, que atingiria 12 polegadas de altura.

HOMUNCULUS

O tema do Homunculus invadiu a biologia (História Natural) no séc. XVII (depois abandonado) e simbolicamente está presente em certas correntes da psicologia que o usam para representar a área neural mais importante do corpo humano.Como é no rosto (face) onde se concentra a maior quantidade de nervos e de corpos neuronais, o desenho do Homunculus mais divulgado é o de figura humanoide com um rosto muito grande com relação ao restante do corpo. O tronco é pequeno, os braços são grandes, as mãos enormes, pernas pequenas e pés médios. Neste sentido, o Homunculus seria uma representação distorcida de alguma parte do corpo físico (geralmente da cabeça) causada por alguma perturbação ou deformação da mente. 

O Homunculus, há muito, encontrou nas histórias em quadrinhos (Os Cavaleiros do Zodíaco, de Masami Kurumada (1953 - ), por exemplo) o seu melhor habitat, passando ali a viver como um dos grandes símbolos dos tempos modernos.

Interpretações cabalísticas (mística judaica), aproximam o Golem de Adão, ambos, como se disse, criados a partir da argila. Seria o Golem, pois, uma espécie de Adão antes de Deus lhe ter insuflado a alma. Uma palavra é às vezes usada para caracterizar o Golem. Referimo-nos a teraphim,  encontrada no texto bíblico para designar “o que não tem forma agradável”, “desarmonioso” e também ídolos, divindades familiares, como os penates dos romanos e dos etruscos.

J. L. BEN  BEZALEL
Quando se falava nos meios judaicos do poder criador da palavra, um nome costumava ser citado, Jehuda Löwe ben Bezalel, que viveu em Praga ao tempo do kaiser Rofolfo II (1552-1612). A Praga deste imperador se tornou, sob o seu patrocínio, um dos maiores centros artísticos e de pesquisas em ciências ocultas da Europa. Tolerante sob o ponto de vista religioso, inclusive com relação ao judaísmo, transferiu a capital do seu império, de Viena, para Praga. Colecionador apaixonado de objetos mecânicos artísticos, relógios de água, astrolábios, telescópios,  esculturas, joias raras, quadros e retratos, adquiriu muitas obras de Dürer e de Brueguel, e patrocinou sobretudo artistas da corrente Maneirista como Spranger, Giambologna, Arcimboldo e Adrien de Vries. Protegeu botânicos e astronômos (Tycho Brahe, Kepler, poetas e escritores). Possuía um “Gabinete de Curiosidades", nele exibindo excentricidades dos três reinos da natureza. Muito ligado à Astrologia e às ciências ocultas, patrocinou experiências alquímicas e abriu espaço para que alguns rabinos encontrassem no seu reino condições de “criar” um Golem.

Essas histórias sobre Golens circulavam em Praga desde a Idade Média; vários contos e lendas falavam de que esse ser criado artificialmente tinha gravadas em sua testa palavras mágicas que lhe davam animação. Diziam uns que isso se devia ao fato de o nome de Deus estar colado na sua fronte; outros afirmavam que sua animação se devia a uma placa de argila, com o nome de Deus, que ele carregava sob a sua língua. 

Corria nos meios praguenses a história que Bezalel havia criado um Golem e o escravizara. Gravara na sua testa a palavra emet, verdade, em hebraico, palavra que lhe conferia a vida. Dizia-se que o Golem fora criado para defender o gueto de Josefov de Praga (onde Franz Kafka morou) contra ataques anti-semitas. 

Durante o dia, o rabino escondia o Golem no sótão da Sinagoga, liberando-o à noite. Com o tempo, contudo, o Golem foi se tornando cada vez mais violento, matando pessoas e aterrorizando os habitantes do bairro. O rabino resolveu então destruir a sua criatura, apagando a primeira letra da palavra emet, formando-se então a palavra met, que quer dizer morto. O Golem entrou então em decomposição, formando-se uma massa indiferenciada, uma espécie de lama que inundou a sala onde o rabino se encontrava, sufocando-o. Essa história foi divulgada nos meios judaicos como uma advertência divina: não devemos usar impropriamente as forças mágicas, criadoras, pois elas sempre escapam do controle daquele que as usa dessa forma, tornando-se perigosas, destrutivas. 

Uma outra intepretação foi endereçada àqueles que absorvidos em práticas místicas de meditação exageradas e descontroladas podiam ser levados à morte pelo novo ser que criam. Esta história, como alguns registram, tem relação, como paráfrase judaica, de uma lenda cristã segundo a qual Alberto Magno, o doutor Universal teria fabricado artificialmente um servo, destruído depois por seu aluno, Santo Tomás de Aquino. 

I. B. SINGER
As primeiras histórias do Golem para o grande público foram publicadas nos séculos XIX e XX. Isaac Bashevis Singer, prêmio Nobel de literatura, publicou em 1969 a sua versão da história. Em 1920, calcado numa história do século XVI, Paul Wegener  a filmou. Recentemente, o grande cineasta israelense, Amos Gitai, lançou num festival de cinema de 1992, em Berlin, o seu Golem, o Espírito do Exílio, exibido no Brasil em 2010.

PAUL WEGENER
Paul Wegener já tinha levado para o cinema, por duas vezes, o tema do Golem. A última, produzida na Alemanha, é a mais bem acabada. Nessa versão, Wegener assumiu também o papel do personagem que dá título ao filme, tendo recebido, quanto à fotografia, a preciosa colaboração do fotógrafo do expressionismo alemão, Karl Freund, que influenciou profundamente o cinema americano na década de 1920, de modo especial Frankenstein.

O Romantismo do séc. XIX explorou bastante a história do Golem, conforme levantamento que G.G. Scholem apresenta em seu livro (A Cabala e seu Simbolismo). Gustav Meyrink, em 1915, escreveu um romance fantástico sobre a criatura. No filme de Wegener, o monstro, fabricado para fins pacíficos, se transforma num demônio sanguinário. O sorriso de uma menina, entretanto, encherá seu coração de ternura. Em 1936, Julien Duvivier, na França, fará um remake do filme, no qual o Golem assume o papel de mediador de povos oprimidos.


A ideia da criação artificial, mágica, de um ser sempre perseguiu o homem. No Talmud há registros de que no mundo judaico tal ideia já estava disseminada desde os séc. III e IV da nossa era. Essas ideias falavam de um “casamento” formal entre Deus e a Terra e que o primeiro exigiu que a “mãe” o cedesse para ele por mil anos, segundo termo assinado e testemunhado pelos arcanjos Miguel e Gabriel, tudo lavrado e constante dos arquivos do encarregado das escrituras divinas, Metatron.

SÃO MIGUEL
Miguel é o arcanjo da mais alta hierarquia, Príncipe da Água e anjo de prata. Foi ele quem anunciou a Sara que ela daria Isaac à luz e que ordenou a akedá (teste de obediência) a Abraão. É o advogado natural do povo judeu e está sentado à direita do Trono da Glória. Gabriel é o Príncipe do Fogo e está postado à esquerda de Deus, guardando por isso o lado esquerdo de quem dorme. Na idade do Messias travará uma grande luta contra o monstruoso Leviatã. Já Metatron não é outro senão Enoch que por causa de sua grande probidade foi levado vivo para o Paraíso e lá transformado num anjo, assumindo as funções de escriba divino.