sábado, 29 de agosto de 2020

ALGO COMO A FELICIDADE



Nestes tempos de corona vírus, em que estamos impedidos de sair, da boçalidade política que temos dentro e fora do nosso país, do lixo que os meios de comunicação despejam em cima do grande público (com a honrosa exceção de dois canais de TV, o Arte1 e o Curta, e da Rádio Cultura FM, 103.3), socorremo-nos muitas vezes, Thereza e eu, de nossa cinemateca pessoal, revendo grandes filmes. Um deles que buscamos, foi uma co-produção tcheco-alemã, de 2005, com roteiro e direção de Bohdan Slama.

BOHDAN  SLAMA
Nascido na Tchecoslováquia, em 1967, Slama, com dezoito anos deixou a sua cidade natal (Opava) e foi para Praga, a capital do país, onde se ligou aos meios cinematográficos através da Universidade local, na qual se graduou em cinema e TV. Slama começou por essa época (1990) a fazer curtas-metragens e a atuar na TV, passando depois para os longas-metragens, já como diretor. Wilde Bees, de 2001, foi o seu primeiro filme, vindo a seguir o filme acima mencionado e depois Country Teacher (2008), Four Suns (2012), e outros mais.


O filme que apresentamos (Stesti, no original, chamado de Felicidade ou Boa Sorte, em português, e Something Like Happiness, em inglês, exibido no Brasil, em São Paulo, em 2007) narra a história de alguns personagens que, segundo conceitos de enquadramento social no Ocidente, de inspiração modernosa, podem ser considerados como perdedores. Na cultura norte-americana são os chamados losers, termo entre nós traduzido pela palavra fracassados. Ou seja, aqueles que não conseguem prosperar num pretenso mundo de oportunidades.


No caso deste filme, são pessoas comuns que, no mundo pós-comunista, vivem num decadente condomínio, numa pequena e cinzenta cidade, ao norte do país, na qual as cicatrizes de uma cruel industrialização se fazem sentir na paisagem por imagens (a usina fornecedora de energia, sempre soturnamente envolvida por uma intensa fumaça) e por palavras do povo, no geral referências feitas a uma fábrica cujo expansionismo destruía bairros e a qualidade de vida das famílias que tinham suas casas situadas na sua vizinhança.


TATIANA  VILHEMOVA
O filme tem nos seus principais papéis grandes atores do moderno cinema checo gente como Tatiana Vilhemova (Monika) , Ana Geislerova (Dasha) e Pavel Liska (Tonik). Tatiana, ao comentar o filme, declarou que muito seria certamente exigido dos atores que dele participassem, mas que sempre acreditara num resultado superior porque, quanto a ela, sua identificação com a linguagem poética de Bohdan Slama era muito grande. Além do mais, concluiu afirmando que num filme era
ANA GEISLEROVA
 a personalidade do diretor que contava para ela, mais do que o enredo do próprio filme. Já Pavel se referiu à locação do filme (em Most, na Boêmia) como um local que lhe era familiar porque nele passara algumas férias. No entanto, a cidade tornara-se muito depressiva e parte dela havia sido demolida pelo regime comunista, que nela edificara vários prédios no chamado estilo “socialista”, realizando-se o filme num deles. Grande parte da população da cidade, continuou Pavel, vivia nesses prédios, locais nada alegres de neles se viver. 


Bohdan Slama, por sua vez, afirmou que, se considerado o local das filmagens e a gente que nele vivia, o filme estava realmente longe de ser uma love story banal, mas que não chegava a ser deprimente. Algo como a felicidade era antes, para ele, um filme que tratava dos milagres que trazem os amores comuns. Para Bohdan Slama o filme foi também, quando de seu lançamento, em vários festivais como Czech Lion, San Sebastian, Toronto, New York e outros, uma espécie de retorno do filme checo a um circuito mundial, já que a última presença checa acontecera em 1978, com o Jeu de La Pomme, da grande diretora Vera Chytilova. 


A história não era nova, mas o que importava, e continua importando para nós, é a magnífica radiografia que o diretor nos apresenta da periferia de uma cidade que se industrializava desordenadamente, como tantas outras, onde um grupo de vizinhos sobrevivia como podia num mundo cujos efeitos mais deletérios e imediatos se faziam sentir no mundo físico e nas relações familiares e sociais.

PAVEL  LISKA (TONIK)
Algo Como a Felicidade
aborda de forma simples e direta o tema da (in)felicidade em ambientes familiares. Três são os personagens centrais, tendo eles as suas histórias entrelaçadas: Monika, Tonik e Dasha. Eles cresceram juntos no mesmo conjunto habitacional, num subúrbio igual a tantos outros. O filme nos mostra os três, já adultos, lutando, cada um a seu modo, para sobreviver. Eles não admitem, mas parece que todos, muito carentes, desejam o que o outro tem, família, amor, filhos, estabilidade. Tais desejos, mal reconhecidos, ocultos, inconscientes, despertam em cada um deles sentimentos muito complexos, atitudes passionais, sempre muito difíceis de administrar.

Os três buscam meios de equilibrar as suas vidas no ambiente em que vivem. Monika, que trabalha num supermercado, espera um dia ir ao encontro do noivo que partira para os USA em “busca da felicidade”, uma posição de
BOLEK POLIVKA
(SOUCEK, PAI DE MONIKA)
sucesso no mundo e dinheiro. A família de Monika, ainda que em crises permanentes, era um pouco melhor estruturada; seu ambiente doméstico se mostrava até que relativamente organizado, embora seus pais não vivessem bem. O pai, desempregado, descarregava suas frustrações na bebida, demonstrando grande simpatia por Tonik, talvez um perdedor como ele. A mãe, Jirina, por seu turno, além de considerar o pai um perdedor, projetava-se na filha e não perdia uma oportunidade de incentivar Monika a se mandar daquele mundo, recomendando que estivesse pronta para quando noivo desse o sinal verde (uma passagem que lhe seria enviada) para ela partir para os USA, já com emprego garantido (ser babá dos filhos do chefe do seu noivo).

MAREK  DANIEL
(AMANTE DE DASHA)
Quanto a Dasha, que tivera dois filhos com um homem casado, e agora grávida de um terceiro, estava sempre à beira de colapsos emocionais. Um dia, quando é internada em uma clínica psiquiátrica, cabe a Monika cuidar das crianças, com o auxílio e a total compreensão de Tonik, que se descobre por ela muito atraído, algo além da amizade que sempre os unira. Ele oferece sua casa para abrigar a nova família, para que todos possam encontrar nela algo mais que a felicidade. Aos poucos, todos percebem que cada um tem um pouco do que o outro mais deseja.

Tonik, que não vivia com os pais, era um deslocado, na aparência, no trabalho, na vida. Não queria, como todos os jovens da pequena cidade, “render-se” à fábrica, nela trabalhar. Preferia viver de bicos, morando com a excêntrica tia, uma resistente, que se negava a vender a antiga e decadente propriedade da família, um pequeno sítio, onde criava cabras e galinhas. Dasha, por seu lado, era a mais problemática dos três. Sem marido, com dois filhos, era amante de um homem casado (acima, à direita), que vendia banheiras, e que sempre lhe prometia casamento quando conseguisse se separar da mulher. Mas o tempo passava e Dasha se desesperava cada vez mais. O apartamento em que vivia era, literalmente, um lixo. Abandonava as crianças, descontrolava-se, bebia, criando casos com todos à sua volta, inclusive com os amigos que a protegiam.


MONIKA , TONIK, PAT  E  DENIS


Quando Dasha é internada num hospital psiquiátrico, Monika e Tonik se aproximam ainda mais, passando a cuidar das duas crianças. Esta aproximação, ocasionada por um acontecimento bastante desagradável, que poderia mesmo despertar sentimentos negativos em todos, faz com que Tonik e Monika descubram um novo modo de sentir, algo como a felicidade, sentimento no qual parecem se mesclar alegria, sacrifício, possibilidade de ajudar, de conviver melhor com os outros e, talvez, muito mais, o de se encontrarem afetivamente...

É neste sentido que o filme, aparentemente pessimista e amargo, triste e conformista, nos mostra que, apesar de tudo, em meio às misérias, desencantos e decepções da vida, há também lugar para sentimentos de boa vontade, empatia, compaixão, que podem melhorar as coisas um pouco mais. O filme nos mostra, acredito, que, se tivermos “olhos para ver” e sensibilidade para registrar o que vemos, descobriremos no nosso complicado e muitas vezes desagradável quotidiano muitas oportunidades de alcançar algo como a felicidade. O filme nos ajuda também a entender que a felicidade não é algo que se conquiste, mas tão só um modo de viver, que ela é algo sentido interiormente, antes de tudo um modo de ser. É o caso de Tonik e de Monika que não haviam conquistado nada, muito pelo contrário. Descobriram uma nova maneira de vivenciar tudo o que lhes acontecia. Agarraram a oportunidade que a desesperada Dasha lhes oferecia. 

O filme de Bohdan nos mostra que passamos às vezes uma vida inteira em busca de uma FELICIDADE maiúscula, de conquistas materiais e de êxito mundano, mas na maior parte das vezes sempre nos decepcionando, sem perceber que a vida, no seu eterno fluir, nos oferece inúmeras oportunidades de sermos realmente felizes de outro modo. Tendo sempre Tonik e Monik diante dos olhos, podemos perceber que nem sempre em nossa vida as coisas dão certo, mas é nessas ocasiões que podemos descobrir que só as pequeninas coisas do nosso dia-a-dia é que realmente podem nos tornar felizes. Coisas que talvez sempre tenham estado ali, diante de nós, sem que as percebêssemos. Um amor, um acontecimento, um sorriso, um abraço, um olhar dividido, um encontro, a nossa mão que oferecemos a alguém, o ato de compartilhar alguma coisa...

Os nossos problemas, as nossas “marés de má sorte” são muito comuns, ocupam grande parte de nossa vida, mas, de algum modo, como o filme nos revela, vêm sempre com algum propósito, para nos mostrar alguma verdade ignorada ou fazer com que nos aproximemos de alguém. Os personagens de Algo Como a Felicidade são o nosso retrato, símbolos, com as suas dúvidas, anseios e problemas. Boa parte do tempo que nos cabe viver, todos sabem, sentem, é vivido como decepção, dificuldades, contrariedades, aborrecimentos, sempre alguém nos obrigando, sem lógica alguma para nós, a fazer isto ou aquilo. O filme, entretanto, nos deixa uma pergunta: será que tudo o que nos acontece não se deverá ao nosso egoísmo, a uma maneira de ser demasiadamente auto-centrada, um modo de ser que nos impede de perceber o outro e como ele é. Mas se descobrirmos o valor das “pequenas coisas”, quando passamos a levar em consideração as sensações que elas produzem, e aprendermos a fazer alguma coisa com elas, poderemos, quem sabe, ser felizes como Tonik e Monika o foram na festa de aniversário de uma das crianças.




Algo Como a Felicidade nos diz que o amor e a boa-vontade estão presentes nas pequenas ações, em atos do nosso quotidiano, sejam eles explícitos ou não. Neste sentido, é notável a competência do elenco e do diretor ao conduzi-lo para obter todas as nuances exigidas de cada ator no desempenho de seus papéis. Quem talvez chame mais a nossa atenção neste particular sejam as duas crianças, Denis e Pat, tão à vontade nos seus papéis. Ambos, como se sabe, eram, na vida real, irmãos e órfãos. Bohdan Slama, vivendo o que punha na tela, ficou tão encantado com elas que, terminado o filme, acabou adotando-as.


Não foi por acaso que Algo Como a Felicidade conquistou dezessete prêmios nos vários festivais internacionais de cinema em que foi apresentado! Tudo o que estamos falando Bohdan o confirmou e parece tê-lo superado com Ice Mother , Bàba z Ledo 
(2017), que tem como tema principal a vida de aposentados, de uma viúva e suas questões familiares, um filme classificado como drama cômico desse fantástico diretor tcheco, que a crítica americana chamou de bitter and sweet ao mesmo tempo. Um filme que trata do “renascimento”, em vida, ainda que tardiamente, de uma mulher. 

A ligação, a afeição mesmo, demonstrada por Bohdan Slama, tanto roteirista como diretor do filme, por seus personagens infantis, por Monika, Tonik, Dasha e pelos mais velhos não poderia ser mais clara, explícita, principalmente com relação a Monika, que no final volta dos USA para a sua cidade e ali viver algo como a felicidade com Tonik, a resistente tia, e as crianças, se possível... Um extraordinário filme, um luminoso filme, para nos colocar na vida de uma outra maneira...