quinta-feira, 4 de abril de 2019

DEUSES E DOENÇAS (2)

                                                    
SERVINDO   AMBROSIA  ( CERÂMICA  GREGA )


AQUILES  E  PÁTROCLO
( ANTIKENSAMMLUNG , BERLIM A)
Ambrosia e Néctar – O primeiro alimento, na mitologia grega, como o próprio nome indica, é o alimento da imortalidade, ambrosia  (etimologicamente, não morto). Néctar (néktar) é outro alimento, o suco adocicado de certas plantas de que se nutrem insetos, borboletas etc. Depois, néctar passou a designar também uma bebida usada pelos deuses. Lembram ambos, o néctar e a ambrosia, o soma ou o amrita dos antigos brâmanes dos tempos védicos da Índia. Ambrosia e néctar são quase sempre citados juntamente. Seus usos, conforme os textos antigos, variam muito, entretanto. Na Ilíada, por exemplo, além do alimento dos deuses, a ambrosia tem poderes para purificar os corpos e para conservar cadáveres (Cantos XIV e XVI). O corpo de Pátroclo, diz o texto, receberá umas gotas de ambrosia e do vermelho néctar pelas narinas para se manter incorruptível. 

IXION  ( CERÂMICA GREGA )
É conhecido na mitologia o uso que Zeus fez da ambrosia para tornar Ixion, o ingrato rei dos lápitas, imortal, antes de enviá-lo ao Hades, com a finalidade de eternizar a sua punição no Tártaro. Deméter também tentou imortalizar o mortal Demofonte, o recém-nascido filho dos reis de Elêusis, flambando o seu corpo, untando-o e esfregando-o com ambrosia. Ao que parece, a finalidade maior da ambrosia era a de preservar os corpos do apodrecimento. Neste particular, lembre-se que do sangue dos deuses gregos fazia parte um fluido misterioso, o ichor, que não só lhes dava uma coloração dourada como tornava os corpos divinos imputrescíveis, garantindo também a imediata recomposição dos tecidos, no caso de qualquer ferimento. 


HÉLIO  E  SEUS  CAVALOS
A ambrosia e o néctar servirão também para curar feridas e para imortalizar. Teócrito, poeta grego do período alexandrino, nos fala que Afrodite deu a imortalidade a Berenice derramando ambrosia em seu seio. Afrodite imortalizou também seu filho Eneias com uma mistura dos dois produtos. Até os cavalos dos imortais se alimentavam de ambrosia. Os cavalos do carro do grande deus solar Hélio, Pirois, Eóo, Éton e Flégon, que percorriam o Zodíaco com espantosa velocidade, recebiam, por exemplo, grandes quantidades de ambrosia para dar conta da sua exaustiva tarefa.  Qual a composição da ambrosia? 

Alguns pesquisadores já na Antiguidade admitiam que tanto ela como o néctar provinham do mel. Alguns falavam que, mais exatamente,  ela provinha do hidromel, que tanto podia ser um líquido açucarado que se extraía de algumas plantas do gênero Agave ou bebida feita de água e mel, usada como agente laxativo. O hidromel era muito consumido antes do conhecimento do vinho. Muitas das agaváceas, mais de cem espécies, estão na base de algumas bebidas depurativas e estomacais; algumas sendo mais cultivadas como plantas ornamentais.

HISTÓRIA NATURAL
Segundo Plínio, O Velho, naturalista romano, 23-79 dC, autor de uma fantástica História Natural, vasta enciclopédia de conhecimentos de seu tempo, havia dois tipos de hidromel, um que se preparava para ser consumido no ato e outro para ser guardado. O primeiro, água pura e mel, era uma bebida muito saudável para os enfermos que se alimentavam pouco, sendo também útil como laxante se tomado frio; bom para a tosse se consumido quente, além de antitóxico. Nos tempos modernos, diz Plínio, desaprova-se o uso do hidromel conservado por ser menos inocente que a água e menos substancial que o vinho. Contudo, quando envelhece,  ele se transforma num vinho que, de acordo com todas as observações, é muito ruim para o estômago e para os nervos.

Eis a receita do hidromel a ser conservado, segundo Plínio: recomenda-se, para fazê-lo, conservar a água da chuva por cinco anos. Os mais experientes, contudo, sugerem que, tão logo recolhida, ela seja fervida até que reduzida a um terço do total captado.  Depois, juntar um terço de vinho velho, levar a mistura ao Sol por quarenta dias a partir do começo da canícula. Outros admitem apenas dez dias, os recipientes fechados. Com o tempo, a mistura toma o gosto do vinho. O melhor hidromel era o da Frígia.

O hidromel incorporava as virtudes de cada um de seus elementos, da água e do mel. A primeira é o líquido vital que fertiliza e liga, permitindo a comunhão; o outro, o mel, é símbolo do conhecimento, do saber, tendo propriedades purificadoras e
SÍTIO ARQUEOLÓGICO DE ELÊUSIS
conservadoras. Além disso, nas tradições mediterrâneas, o mel é lembrado como fonte de inspiração e, por isso, usado, em vários ritos, como nos de Elêusis. Pelas sucessivas mutações que estão no seu processo de obtenção, o mel sempre esteve relacionado com a transformação iniciática voltada para a conquista de um eu superior ao integrar a multiplicidade de elementos dispersos e contraditórios da personalidade humana numa unidade equilibrada. As propriedades conservadoras do mel têm, no caso de Alexandre Magno, um dos mais notáveis exemplos que a História registra. Seu corpo foi depositado num sarcófago (etimologicamente, a palavra significa devorador de carnes) cheio de mel e depois encerrado num caixão de ouro maciço. O Museu Arqueológico de Istambul exibe um sarcófago descoberto perto de Sidon (Líbano) que alguns arqueólogos afirmaram ser o de Alexandre apesar de muito contestada tal afirmação.   

Afrodite (Vênus, entre os latinos) - A deusa do amor e da beleza tem relação com muitas enfermidades, distúrbios de comportamento e aberrações sexuais. Afrodite, como sabemos, nasceu da genitália de Urano lançada ao mar, quando Cronos, seu filho caçula, o castrou. Em meio a espumas e secreções, no mar, a deusa apareceu. Sua missão divina é a de controlar, universalmente, a vida afetiva de modo a enquadrar o desejo (Eros) numa perspectiva de reciprocidade. Eros, contudo, sempre inquieto, escapa inúmeras vezes do controle da deusa. 


NASCIMENTO  DE  AFRODITE , 1863  ( ALEXANDRE  CABANEL )

O castigo de Afrodite logo se faz sentir, causando, conforme o caso, ninfomania, satiríase, amores contrariados ou enfermidades venéreas. A satiríase é uma patologia sexual que consiste numa ereção constante, uma super-excitação mórbida. Nesse estado, o homem realiza o prazer sexual por si mesmo, mas com ejaculações tão fortes e constantes, que pode ser levado ao esgotamento e à morte. Já o priapismo, também patologia sexual, se caracteriza pela ereção desmesurada, persistente e dolorosa, mas não funcional, sem
PRÍAMO
desejo sexual, causando impotência e esterilidade. Príapo, como se sabe, é filho de Afrodite e de Dioniso e fazia parte, com muito destaque, do ruidoso séquito de seu pai. Era uma divindade protetora da fecundidade e sua imagem nos vinhedos, nas plantações, nos pomares e nos jardins era muito usada para proteger colheitas, a beleza e a saúde da vegetação, afastando o mau olhado e sortilégios que procurassem destruí-la (função apotropaica). 


HELENA 
( GUSTAVE  MOREAU , 1826 - 1898
A incontinência sexual de qualquer sexo era imputada a Afrodite Morpho, deusa de um templo de Esparta, levantado por Tíndaro, rei da cidade. A estátua da deusa estava coberta por um véu e tinha os pés amarrados. Tíndaro assim mandando representar a deusa tentou enquadrá-la, fazendo-a simbolizar, no seu entender, a inviolável fidelidade que as mulheres casadas deviam manter. A punição da deusa foi imediata: puniu o rei através de suas duas filhas, Helena e Clitemnestra, tornando-as vítimas de amores funestos e desgraçados, pela incontinência de sua conduta.
    
As mulheres da ilha de Lemnos foram severamente punidas pela deusa porque se esqueceram de lhe prestar culto. Fez a deusa com que elas passassem a exalar um odor tão insuportável que os maridos as abandonaram por mulheres trácias. Indignadas, pois os maridos não mais as satisfaziam, mataram-nos a todos. Na ilha, há registros de uma verdadeira epidemia de sífilis ou de blenorragia, ambas doenças venéreas. A primeira, desde as formas mais simples até as mais graves, como aquelas que atacam o sistema nervoso central, a neurossífilis tabética  (Tabes dorsalis se associa a uma paralisia progressiva (sífilis neural). Tal doença traz uma explosão de sentimentos, reações fortes em caso de contestação, perda de memória, confusão de palavras etc. A blenorragia é a inflamação da uretra e do prepúcio no homem e da uretra, da vulva e da vagina na mulher. Blenna, muco, e rhégnymi, rompo. Gonorreia é corrimento mucoso pelo canal da uretra. Gonos, esperma, rheo, escorrer. 
   
Deusa de poderes imensos, Afrodite, quando contrariada, pode se tornar uma divindade temível ao impor àqueles que quer destruir paixões incontroláveis, que nada detém. Mesmo no caso de uniões legítimas, ela pode empurrar os parceiros para o adultério,
ADÔNIS  ( LOUVRE )
favorecendo a fecundidade dos amores ilegítimos e levando muitos mortais a uma descontrolada voluptuosidade ou à prática de vícios dos quais jamais escaparão. É neste sentido que ela se torna uma deusa fatal, justificando-se um dos nomes pelo qual é muito conhecida e temida, Afrodite Andrófona, a destruidora de homens. Que o digam Hipólito, Medeia, Fedra, Helena, Ariadne, Ares, Mirra e outros personagens, mortais e imortais que de algum modo sofreram com a sua fúria. Como amante, a deusa, por outro lado, deixou-nos exemplos arquetípicos de dedicação e entrega amorosa, destacando-se, dentre todos, o  caso do belíssimo Adônis, divindade oriental da vegetação.   


CHAKRA
Afrodite tinha para os antigos gregos o controle absoluto daquilo que no corpo humano era chamado por eles de thymos, o centro da vida afetiva, dos sentimentos, onde se localiza o desejo  (epithymia), que impele à ação. A Astrologia atribui ao planeta Vênus, nome deusa do amor entre os romanos, também o domínio dessa região, onde os hindus situam o chamado chakra  anahata, para eles relacionado também com a vida afetiva. A influência positiva de Vênus, como planeta, é feminina, sensual, harmonizante, ao conceder aos que beneficia o sentido interno de equilíbrio que se manifesta como charme, calor, intimidade, capacidade de compreensão, finesse e sensibilidade.

Como regente dos princípios universais da harmonia (nome de um de seus filhos, a deusa Harmonia) e do equilíbrio, na medida em que nos fala de reciprocidade, de ajustes e de atenuações, de refinamento das sensações, a deusa exerce poderosa influência sobre a estética corporal e todas as formas artísticas e ambientais. Aquilo a que os neurocientistas deram o nome de homeostase é indiscutivelmente de Afrodite, ou seja, numa tradução livre, a capacidade que tem o ser humano, em função das respostas que obtém do meio em que vive, de se reajustar. Como arquétipo, a deusa adquire particular importância quando pensamos no processo de regulação pelo qual um organismo mantém constante o seu equilíbrio. É da noção que temos do que essa deusa significa arquetipicamente e de como a “vivemos” que depende em grande parte o equilíbrio do nosso corpo e de suas diversas funções e composições químicas (temperatura, pulso, pressão arterial, taxa de açúcar do sangue etc.). Ou seja, fazer o corpo funcionar adequadamente, equilibrado, quaisquer que sejam as circunstâncias externas. 


No corpo humano, a deusa tem a ver com a glândula timo, o sentido do tato, a circulação venosa, o conduto dos ouvidos. Quanto às mulheres, tem a ver com o sistema genital feminino, os seios, o ventre, a nuca, o colo, a cútis, o brilho dos cabelos, a harmonia das formas. É a noção que temos de Afrodite como arquétipo, padrão de conduta e/ou de comportamento, que nos permitirá entender melhor, por exemplo, porque alguns problemas de pele, algumas dermatopatias, podem ter uma estreita relação com ela, isto é, com a nossa vida afetiva, com Afrodite.

A beleza da pele, mais exatamente da película que a recobre, a epiderme, também chamada de cútis (do grego, skytos, encoberto, escondido, recoberto), conforme a mitologia e a astrologia nos ensinam, tem também muito a ver com Afrodite (Vênus) porque intimamente ligada à nossa vida afetiva. Nesta perspectiva, as injúrias causadas à pele têm muito mais a ver com complicações da nossa vida afetiva do que agressões externas. Isto fica claro quando examinamos os nomes que os antigos gregos deram a muitas doenças que “enfeiam” a nossa pele: eczema, erisipela, psoríase, vitiligo e outras.    Ao processo inflamatório (vermelhidão, exsudação, coceira) que se manifesta na pele, de modo agudo ou crônico, os gregos deram o nome eczema (eczein, em grego, quer dizer ferver, entrar em ebulição).  


AS  NINFAS  ( W.A. BOUGUEREAU , 1825 - 1905 ) 

A satiríase, como super-excitação, pode ser provocada também pelas ninfas, divindades menores da natureza, ligadas à terra e à água. As ninfas, no mito, são expressões de Geia, a Mãe-Terra, e sob este nome genérico se agrupam todas as divindades femininas da natureza. Elas estão no alto-mar (oceânidas), nos rios (potâmidas), nos mares internos (nereidas), nas fontes (creneias), nas montanhas (oréadas), nos riachos (náiades), nas nascentes (pegeias), nos lagos (limneidas), nos bosques e vales (napeias), nas árvores (dríades), no carvalho, a árvore de Zeus (hamadríadas). De rara beleza, nuas ou seminuas, exerciam uma ação benéfica sobre a natureza, podendo oferecer também aos mortais, em alguns casos, sua terna solicitude. Dentre os seus vários atributos destacavam-se o dom da profecia e a capacidade de inspirar bons pensamentos àqueles que, reverenciando-as, sabiam se aproximar do seu mundo. Podiam elas, contudo, inexplicavelmente, se tornar muito perigosas, como raptoras de belos jovens ou de crianças.  Nesse sentido, há inúmeras histórias sobre as relações de ninfas com imortais e mortais. Unindo-se a estes últimos, deram nascimento a muitos heróis, semideuses e ancestrais da raça humana.

No órgão genital feminino, da glande do clitóris descem duas pregas de pele até a abertura da vagina às quais os gregos deram o nome de nymphe (ninfas). São os pequenos lábios (labia minora, dos latinos) ou lábios internos. Os externos são os lábios maiores (labia majora), que têm na sua parte superior o chamado monte de Vênus (nome de Afrodite entre os latinos), ambos revestidos de pelos. Clitóris é palavra grega, kleitoris, formada a partir da raiz indoeuropeia klei, inclinar, encontrada em palavras como clímax, declive, inclinação, clivoso etc. Em latim, climax passou a significar gradação, nome de montanha e ponto mais elevado de alguma coisa, equivalendo, neste último caso, ao orgasmo, ponto culminante da cópula. Acima do clitóris fica, ligado aos labia majora, o que latinos chamam de Monte de Vênus, também chamado de monte púbico, uma formação de tecido adiposo, protetora do osso pubiano quando do sobe-desce da relação sexual.


HILAS  E  AS  NINFAS  ( J.W. WATERHOUSE , 1849 - 1917 )

Ninfolepsia é o delírio erótico que se apossava do homem desavisado ao ver uma ninfa, um furor eroticus, fascinação que levava à loucura, à abolição da personalidade. Já ninfomania será o desejo sexual anormalmente forte nas mulheres. Um dos caos citados de ninfolepsia foi o de Hilas, jovem companheiro de Hércules, raptado por ninfas na Mísia, quando do episódio da busca do Velocino de Ouro. O lindíssimo Hilas desceu da nau Argos para procurar água doce para o preparo de refeições e não mais retornou. Junto de uma fonte, foi visto por ninfas creneias que, extasiadas por sua beleza, o levaram para o fundo das águas. Hércules, desesperado, como se sabe, abandonou o grupo, não seguindo para a Ásia Menor.


CIRCE
Angícia – A maga Circe, filha de Hélio, o deus solar, e de Perseis, filha do deus Oceano, protetora de todos os magos, vivia numa região que seria mais tarde a Itália, perto do lago Fucino. Seus descendentes, os Marsos, antigo povo do Lácio, tinham uma divindade, a deusa Angícia (a que liberta da opressão da doença). Era a deusa quem indicava as ervas a serem utilizadas para as curas. 

HOMERO
Na Grécia, segundo Pitágoras, o conhecimento das plantas medicinais era atributo de Apolo e de seu filho Asclépio. Para Homero, os maiores conhecedores das ervas medicinais eram os egípcios. No canto quarto da Odisseia, temos: Helena, filha de Zeus, lhes preparou outro obséquio: verteu num vaso onde havia vinho um mágico suco, próprio para acalmar a dor e a cólera e para fazer esquecer todos os males. Aquele que o bebe, depois de feita a mistura na cratera, não derrama nenhuma lágrima durante todo o dia, mesmo que morram seus pais ou que lhe degolem o irmão ou o filho querido, na sua presença. Tal era a eficácia e a virtude da bebida que possuía a filha de Zeus. Quem lha dera fora a egípcia Polidamna, esposa de Thon; naquele país a terra fértil produz uma multidão de plantas, muitas são salutíferas, outras muito nocivas. Lá, todos os homens são bons médicos, pois descendem de Paeon”.


PLÍNIO, O VELHO
Os Marsos dominavam as serpentes com seus cantos e gestos. Segundo Plínio em sua História Natural, sabiam curar todas as suas picadas. Segundo eles, todo o corpo da serpente poderia ser usado para fins medicinais. Os Psilos, do norte da África (Líbia atual), sabiam também domesticar serpentes e conheciam poderosos antídotos contra suas picadas. Ainda conforme Plínio, os Psilos conheciam uma forma muito segura de constatar a fidelidade de suas mulheres. Expunham seus filhos, logo que nascidos, às mais temíveis serpentes. Se a criança era legítima, nada lhe aconteceria. 

APOPHIS
O Mal da Serpente – Tanto os egípcios como os gregos têm em suas mitologias a ameaça do caos simbolizada por serpentes. No Egito, é Apophis, deus-serpente representado sob uma forma gigantesca, imagem do caos sempre vencido mas sempre ameaçando o Sol, a cada noite, de interromper a sua marcha. Habita o fundo do Nilo celeste, tornando-se perigoso especialmente nos eclipses, quando chega a engolir a barca solar. É Apophis quem, durante as doze horas noturnas, sempre angustiantes, faz o deus solar correr grande perigo.


YYPHON ( CERÂMICA GREGA )
Na mitologia grega, temos o monstro Typhon, filho de Geia e do Tártaro, implacável dragão-serpente que representa as forças naturais de caráter infernal que sempre ameaçam levar a desordem ao cosmos. Sua descendência é perigosa, a Hidra de Lerna; o Leão de Nemeia, o dragão de Delfos, o cão tricéfalo Cérbero, Ortro, o cão do gigante Gerião, Fix, a Esfinge, a Quimera. Se esses monstros têm por um lado um caráter maléfico, ameaçador, destrutivo, por outro eles podem nos ajudar quando pensamos em transformações e regenerações.

Os mitógrafos gregos e egípcios, como sabemos, só atacam a serpente, Apophis ou Typhon, na medida em que eles se voltavam para a destruição da ordem cósmica, agindo como força a serviço do caos, um retorno à indiferenciação. Sabiam, entretanto, os egípcios e gregos, que a serpente era indispensável como o “outro lado” do espírito; era ela a contrapartida do luminoso, representado pelo negro, instalado no mundo subterrâneo, onde se operava a regeneração do mundo diurno, de cima. É por isso que muitas deusas (Cibele, Deméter, a Deusa das Serpentes cretense ou a própria Palas Athena) se ligam a serpentes. 


LAOCOONTE


No caso de Palas Athena, por exemplo, temos a história de Laocoonte, sacerdote troiano, punido, juntamente com seus dois filhos, sufocados por duas serpentes que, depois de matá-los, foram se aninhar no pedestal da estátua da deusa. A deusa, ainda que toda ligada aos céus (nasceu da cabeça de Zeus), conserva a serpente como atributo, símbolo da sabedoria intuitiva e da vigilância protetora. A deusa, por essa relação entre as acrópoles, as alturas, e o mundo de baixo, aponta para a solidariedade entre esses dois mundos, como a seiva que vem das raízes profundas para alimentar a beleza da copa das árvores.

O  ADVINHO  MELAMPO
E  O  REI   FÍLACO
Outro mito que nos fala do poder da serpente é o de Melampo. Tendo cremado uma serpente fêmea que encontrara morta, os filhotes dela purificaram-lhe a língua e os ouvidos, lambendo-os. Tornou-se ele um mantis, um adivinho extraordinário, capaz de traduzir os sons emitidos pelas aves e pelos animais, além de se tornar profundo conhecedor das ervas medicinais; como médico, purificava os doentes e lhes restituía a saúde. Melampo é o de pés negros, mântico ligado ao culto de Dioniso, cuja inspiração lhe vinha das “trevas da noite”. 


Peon – Para Homero, era um deus-médico, profundo conhecedor de plantas mágicas. Quando Palas Athena, dirigindo a arma de Diomedes que feriu Ares, foi o deus Peon quem o curou. Zeus, depois de repreender Ares, chamando-o de o mais odioso dos deuses olímpicos, sempre metido em lutas, de espírito soberbo como o da mãe, consente na sua cura: não permitirei que as dores te atormentem, pois és de minha linhagem e para mim foste parido por tua mãe. Se tivesses nascido de um outro deus, há muito estarias num abismo mais profundo que os filhos de Urano.  Peon o curou, dando-lhe drogas calmantes, já que em seu corpo nada de mortal havia. Depois, Hebe, a Eterna Juventude, o lavou, vestindo-o com magníficas roupas.


HOMERO ,  BAIXO  RELEVO , LOUVRE
Na Odisseia, Homero diz que os egípcios eram os melhores médicos porque descendiam de Peon. Na época clássica, Peon desapareceu, tornando-se o nome, já como Peã, um epíteto ritual de Apolo, além de designar um hino de agradecimento ao deus pela cura obtida. Depois, passou Peã a significar um canto por vitórias obtidas em combates. 

Na Ilíada, vemos que os gregos, para aplacar Apolo, que lhes enviara uma peste, ofereciam-lhe sacrifícios e cantavam peãs. Em Sófocles, na sua tragédia Édipo-Rei, vemos que em Tebas, assolada pela peste, os peãs são entoados. Plutarco, famoso historiador grego, conta que Taletas, célebre autor de peãs, foi levado à Lacedemônia para acabar com uma peste. Inúmeros exemplos são encontrados em vários textos sobre peãs cantados para pôr fim a pestes. Esse canto, conforme a tradição, era empregado tanto para curar como por razões profiláticas e depurativas. Pitágoras fazia seus discípulos se sentar em círculos para que cantassem peãs ao som da lira. Com isto, era provocada na alma uma saudável disposição, uma purgação moral.

HERA  (MÁRMORE , LOUVRE)
Hera – Filha de Cronos e de Reia, deusa dos amores legítimos, era irmã e esposa de Zeus, a única ligação oficial do senhor do Olimpo. Protegia as mulheres de todas as idades e condições de vida, sendo invocada por elas, por isso, sempre que necessário, especialmente quando grávidas (desenvolvimento do feto) e no parto. Suas funções, neste particular, se assemelhavam às de sua filha Ilícia (do verbo eleusesthai, a que faz vir à luz, a que acode). Às vezes o nome de Ilícia aparece no plural, Ilícias, fazendo-nos supor que havia mais de uma, sendo elas, no caso, gênios protetores dos partos. Em Creta, há uma gruta onde, diz-se, Hera teria dado a luz às Ilícias. Nos templos em que a deusa era invocada sob o nome de Hera-Ilícia o seu atributo mais característico era a tesoura. Pela ação deste instrumento, que separa, corta, distingue, temos a primeira operação do espírito, a divisão que leva à oposição e, desta, ao julgamento.

XENOFONTE
Conforme nos conta o historiador Xenofonte, aluno de Sócrates, o filósofo era filho de uma parteira e, por isso, gostava de fazer juramentos em nome de Hera. É de se lembrar que Sócrates é o criador da chamada maiêutica na Filosofia, a arte de fazer nascer conceitos, método socrático de perguntas e respostas. Maiêutica vem de maia, parteira, obstetra, e de tekhne, técnica.

JUNO ( MUSEU  DO  VATICANO )
Para os romanos havia uma relação entre luz e parto. Juno, a Hera dos latinos, quando nas funções obstétricas, recebia o nome de Lucina. Presidia aos partos e velava sobre os recém-nascidos, sendo também chamada de Conservatrix, a Defensora. Juno tinha direito a uma grande festa no dia 1º de março, as Matronálias, o dia das mães. 

A mulher romana, durante a gravidez, ia ao templo de Juno Sospita (Libertadora e Protetora – sospitare é proteger, conservar sadio) com a roupa solta, sem nenhum nó, cabelos soltos, com o objetivo de tornar o parto mais fácil, adotando-se este simbolismo. Tudo que fosse liame, atadura, nó, deveria ser desfeito. Desfazer um nó é libertar, pois ele é sempre um ponto de fixação, de condensação, de agregados.

MATRONÁLIAS
As mulheres nas procissões de Dioniso, especialmente as mênades, sacerdotisas do deus, viviam com os cabelos soltos. Quando nascia uma criança, acendiam-se no quarto do recém-nascido algumas tochas e a mesa de refeições permanecia sempre posta, em sinal de reconhecimento à deusa.    

Juno intervinha também regulando a menstruação das mulheres, tomando o nome de Fluonia, Fluvionia ou Mena. Como a menstruação desaparecia com a gravidez, voltando só depois da lactância, acreditava-se que Juno, com o sangue menstrual, nutria o feto e formava seu esqueleto. Era invocada então como Ossipagina. Juno tomava também o nome de Rumina, aquela que fazia o leite jorrar dos seios maternos, assegurando a alimentação da criança.

LUPERCALIA
Fecunditas e Lupercalias – As imperatrizes romanas tinham um culto que lhes era específico, próprio, Fecunditas, da fecundidade, como o nome indica. Tal culto teve origem quando do nascimento de uma filha de Popea e do imperador Nero. A criança, uma menina, recebeu o nome de Augusta. Foi durante a gravidez de Popea, a imperatriz, que se levantou um templo a Fecunditas. A criança morreu aos quatro meses, tendo recebido honras quase divinas. O culto, contudo, espalhou-se. 

O templo de Fecunditas tinha sacerdotes, os Lupercus, agrupados em confraria. Celebravam, no templo, o culto do deus Luperco Fauno, nas festas chamadas Lupercalias (15 de fevereiro). Os Lupercos, despidos, davam uma volta ao Palatino, flagelando com tiras de couro de uma cabra as mulheres que encontravam no caminho. O rito procurava torná-las férteis. Havia também o sacrifício de animais, cabras e cães. O santuário do deus Luperco Fauno ficava numa caverna do monte Palatino, lugar de fundação de Roma. Ali, a Loba Luperca amamentou os gêmeos Rômulo e Remo. Uma gigantesca figueira (Figueira Ruminal) cobria de sombras o local, onde havia também uma fonte.

O culto do deus Fauno, metade homem, metade bode, tinha como expressão máxima as Faunalias, alegre festa, no início de dezembro. Deus dos bosques e dos rebanhos, Fauno revelava o futuro pelo farfalhar dos ramos das árvores, pelo voo das aves ou através dos sonhos. À noite podia aterrorizar os humanos, com sonhos pavorosos ou aparições, fazendo o papel de um íncubo, demônio noturno que se deitava sobre as mulheres.

A Loucura – Embora os gregos antigos fizessem uma distinção entre a loucura divina e a loucura comum, acreditavam eles, no fundo, assim como os demais povos da antiguidade, que todos os tipos de loucura, de perturbação mental, eram causados por uma interferência divina, sobrenatural. Quatro são os tipos de loucura divina: 1) loucura profética (Apolo); 2) loucura ritual ou mistérica (Dioniso); 3) loucura poética (Musas); 4) loucura erótica (Eros e Afrodite). 

Já a loucura comum, causada por doenças, tinha como expressões mais comuns fenômenos de possessão devidos à intervenção de potências demoníacas que causariam, por exemplo, a epilepsia, a paranoia, o sonambulismo ou os delírios em geral. As pessoas que tinham seu comportamento alterado eram evitadas porque, admitia-se, sujeitas a uma maldição divina. Entrar em contacto com elas ou,
PLATÃO , TIMEU
pior, ser por elas tocado poderia ser muito perigoso. Muitas eram apedrejadas, xingadas, cuspidas. Isto não evitava, contudo, que esses doentes fossem considerados com um certo respeito pois haviam tido contacto com o “lado de lá” e, por isso, teriam poderes negados aos sadios. Platão, no Timeu, fala que a doença era uma das condições para o aparecimento de poderes sobrenaturais. 

Um dos exemplos do que aqui se coloca é o caso dos epilépticos (epi, de cima, lepsis, de lambano, agarro, ocupo; ou seja, os agarrados por cima), doença sagrada entre os antigos gregos e romanos. O ataque, a queda, as contorções musculares, o ranger de dentes, a boca espumando, a língua saliente e a sensação de ter sido o doente surrado por um bastão invisível. A energia do corpo era como que expelida em ondas espasmódicas. A possessão era anunciada por uma aura (vivência) que precedia a crise.

Mephitis - O nome aparece associado ao enxofre. Mefítico é o nocivo à saúde, tóxico, pestilento, fétido, desagradável. Diz-se do ar, gás ou vapor, da exalação pestilencial sulfurosa. É o aspecto satânico do enxofre; o castigo prometido aos maus como está em Job; a destruição de Sodoma por uma chuva de enxofre. Mefitismo é impregnação do ar por maus odores provenientes de gases dos charcos e dos pântanos, é tornar o ar empestado. Mephitis é nome pré-itálico surgido na região meridional, região vulcânica onde as emanações sulfurosas são muito frequentes.


TEMPLO  DE  MEPHITIS,  ESQUILINO ,  ROMA

Personificado e divinizado, o nome designa a deusa dessas emanações, a divindade que as preside e que, por isso, pode contê-las, pois sempre causam pestes e epidemias. Mephitis tornou-se, assim, a deusa da própria peste. Para invocá-la convenientemente, um templo em sua honra foi erguido no Esquilino.

ANGERONA
Angerona - Angerona é uma deusa dos latinos. Aparecia em Roma no dia em que se iniciava o solstício de inverno, a 21 de dezembro, quando Sol ingressava na constelação de Capricórnio. Celebrava-se a festa desta deusa, nesse período, fazendo os pontífices sacrifícios em sua honra no templo da deusa, numa festividade a que se dava o nome de Angenoralia.

Os pontífices, lembremos, eram os sacerdotes romanos que na Roma antiga haviam substituído o pater famílias na condução dos cultos religiosos que passaram de cultos privados (sacra privata) para cultos de Estado (sacra publica pro popolo romano). Aos sacerdotes do Estado, reunidos num colégio sacerdotal, deu-se o nome de pontífices (etimologicamente, construtores de pontes).

Parêntesis: interessante lembrar que o cristianismo, então nascente, vai usar essa palavra, pontífice, para designar o título do seu principal sacerdote, chefe da Igreja Católica, o seu Sumo Pontífice, o Papa, que é também o bispo de Roma. A palavra bispo, prelado chefe de uma diocese, vem de um verbo, bispar, que quer dizer queimar, palavra que lembra visitas pastorais. Explica-se: quando um bispo estava para visitar uma cidade, um banquete era preparado. O risco de que muita comida se perdesse, se queimasse, impregnando-se a cidade do seu cheiro era grande. Em Portugal se fala ainda hoje do arroz bispado, do arroz queimado, aquele escuro, que fica grudado ao fundo da panela. O título de Pontífice se fixou mais quando um dos antigos Papas mandou construir uma ponte sobre o rio Tibre. A palavra Pontífice foi se ajustando também ao título do Papa, aquele que construía as pontes religiosas que ligavam a Terra ao Céu.  

O solstício de inverno, como se sabe, se caracteriza no hemisfério norte pelo desaparecimento do mundo vegetal e pelo recolhimento da vida animal, pela ausência da luz solar, lembrando sempre obscuridade, morte, noite, frio, solidão. Angerona era representada por uma deusa ereta, solene, digna, com a boca fechada, fazendo um pedido de silêncio com o dedo indicador sobre os lábios. Ela pedia aos que a ela recorriam que não ficassem falando dos seus sofrimentos, que tivessem dignidade, que guardassem silêncio, eram suas palavras o stai zitto, o tenere la boca chiusa, o è meglio tacere la boca.


TÁCITA OU MUTA
Angerona era conhecida também pelo nome de Tacita ou Muta, sempre invocada como divindade do sofrimento digno, calado, contido. Nas imagens da deusa, às vezes um lenço preso atrás da nuca era passado, envolvendo o pescoço, fechando a boca, a indicar que nenhuma palavra deveria ser pronunciada. Essa apresentação era interpretada como um apelo da deusa para que os seus devotos mantivessem silêncio, a melhor maneira de conjurar sofrimentos e malefícios. Angerona também indicava que aqueles que dissimulassem suas dores físicas e morais alcançariam um prêmio pela paciência. A deusa aparecia sempre também associada a ideias de libertação das angústias. 

Alguns atribuem a origem do nome Angerona ao verbo ango, angere, fechar, cerrar estrangular, às angústias e sofrimentos do inverno. Figuradamente, fechar o coração, fazer sofrer, atormentar, angustiar. Fisicamente, esse sofrimento controlado, contido, segundo muitos, era a causa de uma moléstia, a angina, caracterizada por dores espasmódicas, na região torácica, que se irradiam para o ombro esquerdo com a sensação de sufocação respiratória, podendo dificultar inclusive a deglutição. O sufixo ona que fecha o nome tanto funciona, no feminino, como um aumentativo (grandona, mulherona) ou como um indicativo de proteção quando acoplado ao nome de deusas. Exemplos: Belona, Pomona, Latona. A primeira fazia parte do séquito de Ares, deus da guerra, e ajudava nos campos de batalha, proporcionando incolumidade. A segunda, além ter função apotropaica (afastar o malefício, a inveja) fazia com que a produção dos campos (frutos) aumentasse sempre. Pomona era a divindade dos frutos. Latona ou Leto, mãe dos luminares, a que representava todos os  aspectos protetores da noite.  

Angerona era confundida também muitas vezes com Lara, Lala ou Tacita. A primeira, ao que parece de origem etrusca, como conta Ovídio, era uma importação grega, provindo o seu nome, Lala, do verbo grego lalein, tagarelar. Indiscreta, falastrona, Lara ou Lala teve a sua língua arrancada por Júpiter, que a entregou a Mercúrio para que ele a levasse para as profundezas infernais, com a finalidade de que, seguindo a sua língua, Lala se transformasse numa ninfa das águas profundas e silenciosas.

LARES



Na condição de deus psicopompo, com o nome de Dite, Mercúrio, entretanto, ao conduzir Lala, impressionado pela sua beleza, a violentou, tornando-a mãe de dois Lares, que assumiram, sob o nome de Tacita e Muta, a guarda das encruzilhadas de Roma. Tacita ou Tácita tornou-se também uma divindade protetora contra a inveja e a malícia