quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A SEDUÇÃO - III

    
                                        

Na antiga Grécia, as cortesãs eram representantes de uma forma de sedução que atuava pela via consciente. Elas foram a expressão mais elevada daquilo que o grego antigo designava por khaire (rejubile-se). A palavra é (era), na vida diária, um cumprimento que os gregos trocavam entre si quando se encontravam na rua: um dizia para o outro khaire!, isto é, “obtenha prazer !”, “aproveite-o !”, o prazer do dia, da vida. Se os tempos eram incertos, se a vida era curta ou bruta, sempre se devia procurar khaire, isto é, aproveitá-la decentemente, torná-la digna, se não amando-a, pelo menos vivendo-a dignamente. O grego que assim fazia era uma pessoa cosmética, palavra derivada de kosmios, que quer dizer em boa ordem, prudente, sábio, conveniente, decente, que cumpre os seus deveres para que a sociedade funcionasse da melhor maneira possível. 

ASPÁSIA
Aspásia é o grande exemplo da cortesã grega. Milésia, de uma cidade famosa por seus prazeres, mulher da Ásia Menor, oriental para os gregos, possuía o gosto requintado no matiz, na elegância, e não no excesso. Sabia fazer a escolha do perfume certo (aquele que embalsama o rastro da personalidade). Voz melodiosa, não ruidosa, timbre e altura perfeitos, graça no andar, postura adequada, atitudes calmas e refletidas. Praticava todas as nuances da língua grega. No rosto e no corpo a maquiagem na medida certa. Abriu uma escola de filosofia em Atenas, a primeira. Procurou formar jovens, elevar um pouco o nível da sociedade aristocrática ateniense. Seus ensinamentos eram acompanhados por homens e filósofos, intrigados e curiosos: o que uma mulher poderia falar sobre a existência?, perguntavam-se. A elite grega usava muito a expressão ir a Aspásia como um sinônimo do máximo que se poderia obter da vida.


PÉRICLES
A mesa de Aspásia era farta, mas ela desprezava excessos. Acima de tudo, priorizava-se em Aspásia a convivência humana. Acolheu Anaxágoras, Protágoras, Sócrates, Fídias. Péricles, rei de Atenas por trinta anos, se curvou aos seus encantos. Sua política será grandemente influenciada por ela. Será combatida – ele não poderia ter se unido a ela, uma estrangeira, diziam os representantes da elite xenófoba, racista. Aristófanes, gênio da comédia, ferino e machista como sempre, a atacou. O que a história nos deixou dessa mulher, como grande sedutora, foi a de alguém que usou a sedução para tornar a vida mais digna, mais rica. Sua forma de convívio era a partilha, nunca a exibição. Seu luxo era o da interioridade. Nada mais distante dos tempos de hoje que Aspásia...  Péricles, como se sabe, por questões legais (era proibido que uma estrangeira se casasse com um aristocrata), não teve condições de se unir a ela legalmente. Tornou-a, entretanto, sua confidente e conselheira e teve com ela um filho, de nome Péricles. 



BETSABÁ   ( REMBRANDT  -  1654 )

Ainda dentro dessas formas de sedução feminina, conscientes algumas, inconscientes outras (Betsabá), destacamos aquele que talvez seja o modelo básico da sedução inconsciente, de caráter arquetipal, que se manifesta através do complexo de Kore. Filha de
RAPTO  DE  KORE  ( BERNINI )
Deméter, raptada quando colhia narcisos, é levada por Plutão para as profundezas do Hades. Ali, será obrigada a comer sementes de romã. Ou seja, perderá o hímen (película que envolve a semente). Se transformará em Perséfone, rainha do mundo infernal. Kore personifica as belas jovens tuteladas pela figura materna, ninfetas como foram chamadas, manipuladas pela mãe. Inconscientes de sua personalidade, das sugestões físicas que passam, que exalam, expondo-se aos olhares e à cobiça sexual. É o modelo da sedutora inconsciente. 

Quando esse arquétipo se apossa de uma jovem, de uma mulher adulta ou, mesmo, de uma mulher, ela poderá ficar à mercê de uma violência, de um raptor. Dentro de casa, incesto; fora de casa, na rua, estupro. Atraem a violência, sofrem traumas, abusos sexuais, experiências infelizes. São mulheres que passam inúmeras sugestões eróticas a pessoas com grandes problemas, sendo por isso muitas vezes brutalmente violentadas, assaltadas, espancadas. Aparecendo para o mundo como doce, meiga, ingênua, a mulher-Kore impotente e passiva, é geralmente tida como vítima inocente, embora não o seja em muitos casos. Comuns, por isso, como se disse, as descidas ao mundo infernal. 

A sedução, do ponto de vista tradicional, tem como um de seus grandes modelos Don Juan, o Don Giovanni, como Mozart o apresentou, com suas mais de mil conquistas, só na Itália, como dizia Leporello. Quem o seduz é o odor di femmina. Sexo e odores. O poder do olfato é uma obsessão, sempre que respiramos, cheiramos. O tempo todo cheiramos. O olfato é o

mais direto e excitante dos nossos sentidos. Entre os animais predadores o odor corporal excita. Faz salivar, enrijece cada fibra do seu ser, põe em alerta todos os sentidos. A atração física é determinada, em grande parte, pelos feromônios, responsáveis pelas pulsões animais do desejo (pherein, carregar + hormara, excitar). Os feromônios são substâncias biologicamente ativas, secretadas por insetos ou mamíferos, para atrair sexualmente parceiros, demarcar trilhas ou para comunicação. Os humanos, como não sabem lidar com os seus odores, compram perfumes feitos na base desse produto animal, muito falsificado, aliás. 






Sentindo o odor das mulheres, D. Giovanni sofre e vai à caça. Por isso ele ama  todas as mulheres por quem se sente atraído e será fiel apenas no instante. Mente sem constrangimento. Trai, é violento, mata. Ele retira dessa dimensão amorosa a força necessária para viver totalmente a sua sombra. A liberdade de fazer o mal que quiser sem experimentar qualquer culpa. Mas não nos espantemos: esse desejo está presente em todo ser humano, como Freud ensinou. Em Don Giovanni, ele é o produto extremo da carga destrutiva que há na condição amorosa, onde tudo se torna possível, o engano, a mentira, o crime etc. Quem não estiver preparado para isso, nunca saberá o que é verdadeiramente o amor, nos dizem aqueles que vão fundo no psiquismo humano.


MME.  DE  MEURTEUIL  ( GLENN  CLOSE )

Valmont, personagem de As Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, está nessa linha, sendo, porém, cerebral, enquanto o D. Giovanni é puramente sensual. O que encanta Valmont é o jogo. Ele é um técnico. Ele prova a si mesmo e à sua cúmplice, Mme. de Merteuil,  que não foi seduzido pela mulher que vai seduzir, que ele joga, mas que não se deixa enredar pelo seu próprio jogo. É o maior teórico da libertinagem (libertino quer dizer livre quanto aos costumes, em fins do século XVIII). Conforme nos esclarece Roger Vailland na sua obra sobre Laclos, o método de Valmont é o
CHODERLOS  DE  LACLOS
seguinte: 1) a escolha da mulher a perseguir deve ser meritória; as mulheres têm que ser “difíceis”, provar sua virtuosidade; 2) a sedução propriamente dita (regras como as da caça) não implica a posse da mulher; seduzi-la de modo que ela se entregue, fazê-la gostar do jogo; 3) este jogo se joga em sociedade, entre homens e mulheres de mesmo nível social; 4) a queda: que o prazer seja tão grande, que ela se sinta compensada pelo inferno em que viverá depois de seduzida e abandonada; um sofrimento a vir; 5) ruptura – romper com a seduzida com éclat; nada de enternecimentos, de piedade; não se preocupar com o destino dela, pois o sedutor joga com “grandes” mulheres, protegidas pelo seu alto status, têm privilégios de classe. É preciso desenvolver o gosto pelo “teatro” da sedução. A glória do sedutor o exige. A indiscrição é a sua moralidade. O libertino enfrenta totalmente o perigo. Por isso é homme d’honneur. Seu jogo é elevado, meritório. 

Se Don Giovanni e Valmont são personagens literários, Casanova, Giovanni Giacomo (1725-1798) é histórico. É o lado “humano” da
CASANOVA  ( A. LONGHI  1774 )
sedução. Não fez milhares de vítimas como D.Giovanni (2.065, segundo a lenda) nem foi tão friamente destrutivo com Valmont. Casanova se contentou com apenas 122 conquistas. Sua contabilidade é bem modesta diante dos outros dois. Sua sedução estava a serviço da vida: arte, amor, beleza, as delícias do mundo aristocrático. Levou ao extremo a arte do parasitismo social, dando aos nobres entediados a intensidade das suas aventuras. Fellini e Ettore Scolla no cinema nos deixaram duas grandes leituras desse
CASANOVA E A REVOLUÇÃO
grande sedutor. A visão mais “histórica” e correta foi a de Ettore Scolla, com o seu espetacular
La Nuit de Varennes (Casanova e a Revolução no Brasil), onde aparece a genial figura de Restif de la Bretonne, agitador e debochado, interpretado pelo grande ator do teatro de do cinema, além de mímico, Jean-Louis Barrault. Quem nos deu um filme também interessante, mas difícil, sobre este nosso personagem foi o diretor catalão Albert Serra. O filme, premiado no Festival de Locarno, tem em português o nome de História da Minha Morte.  

Choderlos de Laclos foi militar e viveu entre 1741 e 1803. Deixou obras de estratégia militar, geometria, memórias científicas, poesias e um tratado, A Educação das Mulheres. Sua glória veio com Les
AS  LIGAÇÕES  PERIGOSAS
Liaisons Dangereuses
(As Ligações Perigosas). Consta que, como pesquisador, foi o descobridor da seringueira (caucho). As Ligações Perigosas foi uma arma que Laclos ofereceu à burguesia do seu tempo, classe que chegava ao poder, contra a aristocracia privilegiada. Liberdade, libertinagem, um jogo social dramático, na segunda metade do século XVIII. A libertinagem é o contrário do amor-paixão. A sedução, paixão, conduz, subjuga, escraviza. O amante apaixonado é abatido. O libertino escolhe livremente o objeto da chama. O libertino é sempre sujeito, nunca objeto. Pratica a sedução ativa, segundo os cultores da arte. Seu autodomínio é completo. O libertino procede ao inverso do delírio erótico, metafísico – ele jamais emprega a palavra “sexo”. Só a vulgaridade norte-americana inventaria a palavra sexy. As mulheres que o libertino de Laclos-Valmont escolhe têm muita classe, são de nível social elevado, sendo muitas, até, protegidas pela religião. A libertinagem exige contínuo exercício, longa formação. Formação moral e aquisição de numerosas técnicas. O libertino é um ser extremamente lúcido. Nada de vaidade ou gabolice com as vitórias, nenhuma ilusão quanto ao jogo da sedução. Eficiência e silêncio, prazeres que não se dividem com ninguém, a não ser, é claro, com algum parceiro, com um cúmplice,  como é o caso de Mme. de Merteuil com relação a Laclos. 


Dentre as principais figuras da sedução, destaque especial para Scheherazad, a contadora de histórias de As Mil e Uma Noites, obra
ANTOINE  GALLAND
anônima, popular, que incorpora contos de fundo indo-persa, de Bagdá (historicamente, os seus personagens são Harum Al-Rashid, Vizires, etc.) contos de fundo egípcio, influências helenísticas, sátira social, o pitoresco oriental tudo revelado ao ocidente pela tradução francesa de Antoine Galland (1646-1715) e por outros tradutores ingleses, alemães etc.

O rei persa Shariam, convencido da infidelidade de sua mulher decide matá-la e desposa a cada noite uma jovem que deverá morrer na manhã seguinte. Scheherazad se oferece para o sacrifício. No meio da noite, começa a contar histórias que cativam o rei. Ele decide não entregá-la ao carrasco no dia seguinte, a fim de ouvir o resto da história. A mesma cena se repete por várias e várias noites, até que na milésima primeira noite, encantado com ela, ele renuncia ao seu projeto. 


SCHEHEREZAD  ( FERDINAND  KELLER  -  1880)


A estrutura de encaixe dos contos, que ficam imbricados um no outro, a figura da Scheherazad, que vence a morte pela literatura, tudo é excepcional nessa obra. É até hoje a maior apologia que temos sobre o poder da Palavra. Uma análise fantástica: a mulher e a literatura, a mulher como símbolo e a mulher em seu corpo físico e oralidade acima de tudo. Scheherazad é a tecelã de narrativas, uma trama infinita, uma história nascendo da outra. Tecelã das noites, narrativas intermináveis, a astúcia do feminino que enreda o sultão: a arma dos fracos contra os fortes, como Penélope fez como os seus pretendentes. Ela administra a curiosidade do sultão, sabe lidar com o desejo. É de Scheherazad a palavra que seduz, que invade.

MME. D'AULNOY
Sabe-se hoje, por achados literários (cartas, documentos etc.), que o poder de sedução de Scheherazad, como o conhecemos, também se deve (quanto?) a  certos acréscimos que Galland fez aos textos originais, já inflados de contribuições anteriores (colorações helenísticas e egípcias). Os acréscimos a que nos referimos (grande parte da magia verbal de Scheherazad) foram retirados da vida de duas mulheres de seu tempo, de Mme. d`Aulnoy e da Marquise d´O (esta nada tendo a ver com a da obra de Kleist, personagem literário), dame do palácio da duquesa de Bourgogne  

Nós somos seduzidos por ideias, por credos religiosos, por doutrinas políticas, por automóveis, por grifes da moda, países, perfumes, modelos de sutiãs, cuecas, gurus renome, dinheiro.
GRIFES
Quando uma mensagem da propaganda e da publicidade nos atinge, podemos falar de sedução. Estávamos de um jeito, nossas escolhas estavam definidas e agora, atingidos, nos movimentamos noutra direção. Ficamos inquietos, uma crise se estabelece, nossa vida muda de algum modo. Seduzidos, desviamo-nos. Falamos de propaganda quando se trata de política, de religião, de ideias. Quando deixamos uma marca por outra, compramos outra marca de leite, de sabão em pó, ou trocamos o automóvel, temos a ação da sedução publicitária. Publicidade é produto. Já propaganda tem caráter institucional, pontos de vista, crenças, doutrinas, ideias. Que poder sedutor é esse que determinadas mensagens têm de modificar nossas opiniões, nossos comportamentos, nossas atitudes, sem o recurso obrigatório da força física, do constrangimento corporal? Porque passamos acreditar em alguma outra coisa? Numa outra religião, num outro regime político ou num outro partido? Por que achamos que este xampu é melhor do que aquele, ou por que este creme será o ideal para acabar com os nossos plis d’expression? Por que aquele vestido tem a nossa cara? Há algo de racional por trás dessas decisões?

Gostamos de nos considerar racionais. A propaganda e a publicidade, no estágio em que as temos hoje, parecem dizer o contrário. A pressão direta e subliminar, as várias técnicas de propaganda e de publicidade para a formação de atitudes de mudança de padrões e de comportamento fazem-nos temer que nossos pensamentos e nossos sentimentos estejam sujeitos à manipulação oculta. A chamada opinião pública e o best-seller são exemplos. Os inúmeros apelos que as mensagens sedutoras têm, venham da publicidade ou da propaganda, concentram-se em quatro pontos: juventude, beleza, saúde e felicidade. Daí à mão no bolso, isto é, ao cartão de crédito é um pulinho. Ao lado de raciocínios primários como: o que é que eu levo nisso? Isto é, se me deixo seduzir, o que levo, qual a vantagem? Há outros aspectos a considerar: nossos valores, os valores da sociedade em que vivemos, nosso nível cultural etc. Em outros termos: quais as consequências da nossa resposta?

A seleção da mensagem dentre as tantas que nos atingem e a decisão depende da recompensa esperada e da energia necessária para atendê-la. Se aumenta a recompensa e diminui a energia (tempo, trabalho, esforço) para se obter o que passo a desejar, certamente a atendo, isto é, sou seduzido. Controle remoto,
EROS  ( CARAVAGGIO )
compras pela Internet, delivery,  são elementos que minimizam nosso esforço. Um componente fundamental para a nossa “decisão” é hoje a carga erótica que pomos naqueles quatro pontos. Ao utilizar esta carga, a mensagem se torna mais sedutora, mais desejável. Eros, como gozo, é a recompensa imediata, a gratificação instantânea. Uma lata de cerveja entregue por uma apetitosa jovem de belos seios à mostra e de bundinha saliente, sempre se torna mais desejável do que uma recebida das mãos de um garçom mal humorado. O fato é que se a recompensa não vier como pensamos, há muitos outros produtos, podemos variar, desde parceiros a sabonetes e desodorantes. 

Aos poucos, as imagens da propaganda e a da publicidade assumiram um caráter sinistro. Algo mentiroso, enganador, inescrupuloso. Bem manipuladas, equivalem a armas poderosíssimas. Estamos bem longe das ideias do Papa Urbano VIII que instituiu a Congregação da Propagação da Fé, em 1633, com a finalidade de trazer os pagãos para a luz. Principalmente quanto à propaganda, devido a seu caráter institucional e seu alcance enorme, fixa-se o conceito de que se trata de uma tentativa sistemática, por um indivíduo ou grupo, de controlar atitudes e ações de indivíduos, coletividades, nações, mediante o uso de sugestões adequadas, de mensagens sedutoras.  

Para seduzir o grande público, duas formas de propaganda são muito utilizadas: a) controle seletivo de informações a fim de favorecer certo ponto de vista (censura); b) deturpação de informação com objetivo de criar impressões diferentes, o chamado viés. Ambas são formas de censura. No primeiro caso, temos a

apresentação de um ponto de vista como sendo mau, injusto, feio, com relação aos pontos de vista do grupo ao qual se destina a mensagem. Os mais famosos: o Index Librorum Prohibitorum da Congregação do Santo Ofício (Copérnico foi uma de suas vítimas), a censura nazista, a censura soviética, o Código Hayes, a censura do DIP no Brasil getulista, a censura da ditadura militar, a censura das editorias dos nossos jornais e dos noticiosos de TV  etc. No segundo caso, não proibimos ou dizemos que tal ponto de vista seja feio, injusto ou perigoso. Simplesmente não dizemos tudo, apresentamos parcialmente o ponto de vista do inimigo, mas o editoramos, fazendo montagens, interpolações. Os principais jornais brasileiros, a TV e os seus jornais nacionais, todos, sem exceção, usam demais esta técnica. Informações incompletas, truncadas, fotografias que desmerecem, poses ridículas, flagrantes vexaminosos. Acima de tudo, não apresentar outros pontos de vista, conflitantes ou não etc. 

Como todas as nossas motivações básicas se alicerçam no emocional (água), recorremos sobretudo ao amor, à raiva, ao medo, à esperança, à culpa, para dinamizar o processo da sedução. Por

exemplo, o comércio criou o Dia das Mães. Compramos um presente nessa data para não nos sentirmos culpados. Esquecer esse dia é vergonhoso! Essa era a técnica do famoso ame-o ou deixe-o durante a ditadura militar. As emoções humanas ficam mais intensas quando frustradas e é sempre nesse ponto que ficamos mais tocados, quando nos sentimos frustrados, contrariados, e, portanto, mais receptivos às sugestões, principalmente se jogamos com os instintos básicos: alimento, abrigo, segurança, prestígio, Neste particular, é muito grande a sugestionabilidade, a sedução fácil. Criar em nós a ideia de que estamos sendo espoliados, tapeados; a conclusão vem lógica. Por que não ter esse automóvel ou fazer essa viagem? Afinal, você bem que pode!, diz a mensagem publicitária. Essa piscina, você também tem direito a uma. Deixe de sofrer, ouse! As pessoas são sempre mais sugestionáveis através de grupos: é o efeito do mínimo denominador comum. O grupo sempre faz pressão pela aceitação, nivela. Em termos de publicidade, os jovens são sempre os mais facilmente vulneráveis. Fácil entender porque o Brasil se tornou um dos maiores consumidores mundiais de cerveja.

Truques da sedução: usar generalizações, estereótipos, classificar pessoas por tipos, fixar chavões, isto é, procurar explicar as reações dos membros desses grupos através dos padrões, estereótipos, não
LOMBROSO
em função de cada um deles. Lombroso nos dizia que há um tipo de criminoso específico, com certos estigmas físicos inidentificáveis. Aplica-se aqui o mesmo raciocínio e processo. Com a substituição de nomes, feita a devida adaptação ao acontecimento que se quer “envenenar” para atrair pessoas (seduzir), aplica-se a técnica da dicotomia, favorável-desfavorável, carregando-se nas tintas. No mais, é só seguir o modelo: o melhor, como se sabe, é nunca discutir. Ao contrário, afirmar sempre, insistindo, apresentando só um lado da questão. Limitar o raciocínio. Apontar o inimigo e satanizá-lo, fortalecendo com isso a integração do grupo através da “caça às bruxas”, por exemplo (as editorias dos grandes  jornais, na imprensa mundial, usam muito, por exemplo, as chamadas Colunas do Leitor para isto). 


FREUD
Freud insiste na tendência inata do homem à maldade, à agressão, à destruição e à crueldade. Mais: que o nosso prazer sempre é obtido à custa dos outros. Socialmente, isto, para o homem, é desastroso, já que ele satisfaz sua aspiração ao gozo, a viver bem, segundo esse entendimento, sempre à custa do seu próximo. Afirmar o contrário, é ingenuidade ou má-fé. O fato é que para viver em sociedade, é necessário que o homem renuncie a toda essa agressividade, o que nem sempre se consegue. Procura-se então um derivativo que receba a carga destrutiva que acumulada. Este derivativo pode ser buscado fora da comunidade, do país, da classe social, exportado etc. “Criam-se” inimigos (o bode expiatório) para receber toda a agressividade recalcada. É aqui que entra a sedução, ou melhor, o discurso sedutor que nos levará a participar de esquemas dessa natureza, muito comuns na vida política. 

Lembramos que a tradição do bode expiatório é universal e funciona em ambientes familiares, em locais de trabalho, na vida escolar, nos meios de comunicação de massa, na política, onde quer que pessoas se agrupem para fazer alguma coisa. É muito usada essa tradição por pessoas, grupos sociais ou pela própria sociedade como um todo, que nada faz, para projetar a sua culpa (a sua inércia, o seu comodismo, o apego aos seus privilégios e preconceitos, a sua hipocrisia e a sua má-fé etc.) e aquietar a sua consciência que sempre tem necessidade, como se disse, de um culpado, de um castigo e de uma vítima.

Soren Kierkegaard (1813-1855), pai do existencialismo moderno
KIERKEGAARD
(Jarspers, Husserl, Heiddeger, Sartre, Merleau-Ponty são todos, mais ou menos, tributários dele). Deixou inúmeras obras filosóficas: O Tratado do Desespero, O Banquete, O Conceito da Angústia, Temor e Terror, Diário, Diário de um Sedutor. Ao examinar as esferas da existência, o caminho da vida, ele aponta três vias: a estética, a ética e a religiosa. É na sua obra Aut…Aut (Um Ou Outro, Isto Ou Aquilo), que ele analisa as ordens ética e estética. Cada via encarna uma forma concreta, um modo total de vida.

A via estética, a que nos interessa aqui, ele a examina através de personagens que a representam, dentro do universo romântico. Três
JUDEU  ERRANTE
personagens: Don Juan, Fausto e Aasverus, o Judeu Errante: Ou a sensualidade imediata, a dúvida e o desespero. São riquíssimas, como reflexão, suas análises desses três personagens. Don Juan, o Don Giovanni de Mozart, era para ele a expressão artística suprema do ideal estético, com toda sua força e debilidade. Muitas das características básicas da existência estética são intrinsicamente boas para Kierkegaard e podem integrar-se com princípios superiores. É o lado sensual da natureza humana. O lado que permite que entremos em contacto com o mundo notável existente. Contudo, Don Juan vai viver esse lado como um absoluto, desligado do ético e do religioso. Interesses estéticos na frente, antes; a exaltação do sensual que leva às paixões. Toda uma apreciação da postura romântica nasce aqui com Kierkegaard.

Separada da vontade, a sensualidade imediata se converte em jogo abstrato e egoísta. Fiel no instante é a máxima. O indivíduo se torna prisioneiro do momento do prazer, um momento que nunca lhe trará satisfação plena. Momentos para ele passam a equivaler à vida. Isto explica o tédio, a inquietação, a instabilidade e outros aspectos secundários da vida estética. A estética é a indiferença entre o bem e o mal; só o prazer conta para o esteta. A mulher para Don Juan não será mais que o instante. O nível estético é o do homem pelo qual ele é imediatamente só o que é. 

O tema da sedução sempre ganha ângulos de apreciação novos quando nos voltamos para o mundo grego, o da mitologia em especial. A vitória dos olímpicos sobre os titãs havia posto fim a uma idade em que tudo estava ordenado, fixado. Nessa idade, deuses e humanos viviam em paz, tranquilos. Convívio pacífico, vida paradisíaca. Os seres humanos não nasciam, brotavam da terra. Não havia sexo, não havia males, trabalho, doença ou velhice. Os deuses eram doadores, provedores. Imobilidade, paz. A vida era um eterno presente. A morte vinha pelo sono, essa a diferença entre humanos e deuses. A vitória de Zeus fez com que os olímpicos suspeitassem desses seres, sobras, resíduos do reino anterior. Ocorreu então a Zeus, a ideia de destruí-los. Reduzi-los à animalidade, privando-os do fogo, que tão mal controlavam. É neste momento que Prometeu resolve intervir. Vai aos céus e de lá trás o fogo para a terra, tirando os homens de novo do fundo das cavernas, onde se haviam refugiado. 


PROMETEU   ( CHRISTIAN  GRIEPENKERL )

A ousadia de Prometeu foi punida. Será acorrentado nas rochas do Cáucaso por Hefesto. Zeus, além disso, baixou normas para punir os homens que agora tinham o fogo. O bem nunca mais poderá existir sem o mal, assim decidiu Zeus. Tudo o que os humanos viessem a obter, teria que ser conseguido por algum sacrifício (tempo, dinheiro, sofrimento, esforço). Os deuses, desde então, tornaram-se apenas protetores, não mais provedores ou doadores. Darão na medida do sacrifício feito. Os humanos foram, então, expulsos do paraíso.

Mais: Zeus ordenou a Hefesto que desse forma a um novo ser, semelhante ao humano, mas diferente dele de tal modo que diante dele os humanos se perturbassem, jamais tendo um minuto de paz. Esse novo ser traria o duplo do humano, que o seduziria e o faria sofrer. O humano deixaria definitivamente a unidade, criando-se então, masculino e feminino.

Foi assim que Pandora desceu à Terra. Cada uma das divindades
PANDORA ( D. G. ROSSETTI )
olímpicas conferiu-lhe um atributo. Daí a etimologia de seu nome, a dotada por todos os deuses. Hermes lhe deu o “espírito do cão” (espírito da contrariedade); Peitho, a Persuasão, o poder de convencer pela palavra; Apate presenteou-a com a sedução enganosa; Afrodite entrou com a enkrateia; Goeteia ligou-a para sempre à feitiçaria; Palas Athena ensinou-lhe a arte de tecer e de enredar; as Horas a coroaram de flores; as Cárites a revestiram de todas as graças e benefícios possíveis.


A fecundidade continuaria a depender da terra, mas tudo o que viesse dela exigiria muita fadiga, se tornaria muito penoso. Os bens ligar-se-iam ao trabalho, indissoluvelmente. Mal tão belo! Trazida por Hermes, ela desceu à Terra. O primeiro que a viu foi Epimeteu,
EPIMETEU
a quem Prometeu, acorrentado no Cáucaso, havia recomendado para nada aceitar dos deuses. As consequências já as conhecemos: misérias, fome, dor, sofrimento, guerras, doenças, tudo escapou de uma jarra que Pandora trouxe, outro presente dos deuses aos humanos. Só Elpis, a esperança, Pandora e Epimeteu conseguiram reter na jarra. 


Aquilo que parecia um bem, a esperança, acabou se tornando para os humanos uma suprema perversão. Desde então os humanos perderam o presente e passaram a viver sempre se projetando em direção do futuro. Ou seja, passaram a viver eternamente prisioneiros dos desejos, que precisam sempre do futuro para acontecer. A humanidade perdeu o presente.  A vida humana ganhou uma dinâmica infernal. Fascinados e frustrados, ao mesmo tempo expectantes e ansiosos, os humanos foram lançados inexoravelmente numa alucinada carreira para buscar algo que estivesse sempre mais adiante. Uma promessa que nunca se cumpriria. 

BRUXAS  ( GOYA )
Até meados do século XIX, o tema da sedução, nos seus vários aspectos, ficou atrelado ao mundo religioso. O sedutor era um agente do Mal e o seduzido um pecador, alguém que, tentado, sucumbia. No fundo, a eterna luta entre Deus e o Diabo. A sedução aparecia sempre envolvida por ideias de pecado, uma violação de preceitos religiosos, principalmente os tipificados como pecados capitais (orgulho, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça), cujas consequências se refletiam no mundo ético-moral. A origem desses pecados estava na ação sedutora do próprio soberano do Mal, o Diabo, em pessoa, ou de um dos seus agentes, reunidos num imenso exército, espalhado pelo mundo, sempre pronto para causar a perdição do ser humano. A caça às bruxas, que se estendeu da Idade Média até o século XVII, patrocinada sobretudo pela Igreja Católica, é um exemplo. Mais de dois milhões de mulheres foram mortas, condenadas pelos tribunais da Inquisição, acusadas de bruxaria. 

Aos poucos, porém, nos séculos que se seguiram ao Renascimento, a ação demoníaca foi se interiorizando no homem, identificando-se com um lado escuro de sua própria personalidade. O mundo demoníaco, antes visualizado por inúmeros símbolos e imagens que a arte religiosa nos deixou, deslocou-se para o interior do homem. Tudo isto acontecia, ressalte-se, apesar de a Igreja Católica continuar defendendo o dogma da existência real do Diabo, como o fez, por exemplo, João Paulo II, em 1998. A existência real do Diabo nunca foi negada por papas ou concílios, já que é um dogma, isto é, matéria de fé. Qualquer católico que a negue se torna um herege. 


EL AQUELARRE ( A FESTA DAS BRUXAS )  F. GOYA  ( 1746 - 1828 )

A rejeição da demonologia ganhou força em meados do século XIX quando começaram a aparecer certos trabalhos sobre o psiquismo humano, sobre a interioridade do ser humano. Divulgados, alcançando o grande púbico, esses trabalhos, sob o nome de Psicanálise, provocaram, praticamente, o esvaziamento dos confessionários, pois uma das máximas das novas teorias do psiquismo afirmava que o mais importante não é o que V. sabe, mas o que V. não sabe e que atua em V. Definitivamente, o dr. Freud, com a doutrina do inconsciente,  acabou com o encantamento do confessionário. 


XILOGRAVURA  SÉCULO  XV   ( ANÔNIMO )  

Mais: o Inferno, onde o Diabo vivia, deixou de ser algo exterior ao homem, mas, ao contrário, segundo as novas doutrinas, era algo que estava dentro dele, um lugar escuro e sombrio, subterrâneo, situado abaixo do consciente, para onde eram encaminhados os seus recalques, um lugar para onde era afastado do consciente o que não lhe agradava ou o que ele não se dispunha a enfrentar, seja por comodismo, medo, ignorância ou má-fé. O diabólico virou sinônimo de forças obscuras, reprimidas, inconscientes. Esse mundo subterrâneo tinha um rei, chamado Hades ou Plutão, pelos antigos gregos. O mundo judaico-cristão chamou-o de Satã, Diabo ou Lúcifer, como vimos. O Inferno passou a simbolizar o fracasso irremediável da existência humana, na medida em que ali se fixam culpas, remorsos, mágoas e outros sentimentos, identifique-se ou não o ser humano com eles, mas, em qualquer hipótese, sempre, um lugar de cristalizações dolorosas.