sábado, 31 de maio de 2014

MITOLOGIAS DO CÉU - VÊNUS (5)



JULGAMENTO DE PARIS

A mitologia grega sempre nos deixou claro que as outras deusas do panteão helênico nunca aceitaram amigavelmente no Olimpo a presença de Afrodite, sempre considerada uma poderosa rival; muitas inclusive querendo disputar com ela títulos de beleza. Quando das núpcias de Peleu e Tétis, para as quais todo o Olimpo foi convidado, Eris, a deusa da discórdia, furiosa por não ter sido lembrada, lançou na sala onde estavam reunidos os convivas um pomo de ouro com esta inscrição: “À mais bela”. Hera, Palas Athena e Afrodite se apresentaram, reivindicando a joia maravilhosa. Para solucionar a pendência, Zeus designou um mortal. O escolhido foi o príncipe Páris, troiano, que no monte Ida guardava os rebanhos do pai. Conduzidas por Hermes, as três deusas se apresentaram ao jovem príncipe, que tentou se esquivar da incumbência. Diante das palavras de Hermes, contudo, não teve como não aceitá-la.


PARIS  E  HELENA

Uma de cada vez, as três se apresentaram a Páris, tentando obter dele uma decisão favorável, sempre reforçando o poder de seu encanto com grandes promessas. Hera lhe prometeu o reino de toda a Ásia. Palas Athena prometeu ao príncipe que o tornaria  vencedor em qualquer combate no qual tomasse parte. Afrodite não lhe ofereceu cetros ou vitórias; limitou-se a desatar os nós de sua túnica e lhe prometeu o amor da mais bela das mortais. A decisão veio logo a favor de Afrodite. Páris ganhou assim o amor de Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, considerada a mais bela mulher dentre todas as mortais. Este acontecimento, como se sabe, seria usado pouco depois para justificar a famosa guerra que causaria a destruição de Troia. As outras deusas sentiram-se ofendidas e optaram, quando desse episódio bélico, por ajudar os gregos, vingando-se cruelmente, levando a devastação ao país de Príamo, destruindo a sua família e seu povo.  

Desde esse episódio, a soberania de Afrodite em questões de beleza e sedução se tornou inconteste, reconhecida inclusive por Hera, a senhora do Olimpo, que, ao tentar reconquistar seu marido, recorreu à antiga rival, devido ao seu poder de encadear os corações de imortais e mortais. A fama de Afrodite se espalhou por todo o Olimpo como deusa dos encontros amorosos, do riso gracioso, das encantadoras mentiras, do charme e das doçuras do
PALAS  ATHENA
amor. 
Como acontecia com as outras deusas, Afrodite gostava de se envolver nas questões dos mortais. Um dia, por exemplo, em que Afrodite socorria seu filho Eneias, Diomedes, herói grego, a viu no campo de batalha e, sabendo que ela era uma divindade não afeita às coisas da guerra, com um golpe de lança, feriu-a ligeiramente. Às pressas, sob os olhares debochados de Palas Athena, a deusa se mandou para o Olimpo a fim de se queixar a Zeus. Este lhe respondeu: “minha criança, as coisas da guerra não são de tua alçada, ocupa-te das artes do amor, nas quais és mestra.”


EOS 

São muito célebres as explosões e as maldições de Afrodite, quer se tratasse de satisfazer aos seus caprichos ou vingar-se de uma ofensa. Quando, por exemplo, a deusa Eos, a Aurora, ousou se aproximar de Ares, a deusa a “empurrou” para um personagem complicado, o gigante Orion, fazendo com que ela caísse de amores por ele. Afrodite castigou o jovem e casto Hipólito, que lhe desprezava o culto para preferir o de Ártemis; inspirou a Fedra, mulher de Teseu, pai do rapaz, uma incontrolável paixão por ele. Rejeitada, Fedra vingou-se de Hipólito, acusando-o de tê-la tentado violentar. Este acontecimento, como se sabe, foi a causa da morte de Hipólito. 


JASÃO  E  O  VELOCINO  DE  OURO

No caso de Jasão, querendo protegê-lo quando da conquista do Velocino de Ouro, fez com que Medeia o amasse com fúria. O desfecho desta história, por todos conhecido, foi trágico, pois Medeia, num ataque de fúria, tomada por Lyssa, matou os dois filhos que tivera com Jasão e mais Creonte e Glauce, futuros sogro e esposa do maldito herói. Castigou Afrodite também, como se disse, as mulheres de Lemnos que não lhe prestaram as honras devidas. Fê-las transpirar insuportavelmente, exalando um odor pestilento, fato que causou o abandono delas pelos maridos, vendidas então como escravas na Trácia. Mais tarde, este suor fétido exalado pelos seres humanos recebeu o nome de bromidrose, palavra que tem na sua composição o nome bromo (fétido) mais hidra (água) e mais ose, odor extremamente desagradável que alguns seres humanos apresentam, cuja origem está sempre em pecados cometidos contra a deusa. A palavra foi para o latim, depois para o francês, passando a ser usada somente a partir do séc. XIX, quando se descobriu esse elemento químico.


RAPTO  DE  HELENA

No caso de Helena, a esposa de Menelau, para que ela se entregasse a Páris loucamente, Afrodite fez com que a deusa Até, a cegueira da razão, a possuísse, o que levou a irmã dos Dióscuros a abandonar o marido e a renegar a sua pátria. Outras versões, porém, nos relatam que nada disto aconteceu; afirmam que Helena se entregou conscientemente ao belo Páris, cansada da vida de rainha que levava com Menelau em Esparta. 


SAPHO  -  ÓPERA  DE  JULES   MASSENET

Foi Safo quem nos ensinou que os mistérios de Afrodite dizem respeito ao corpo todo e não apenas à vista. A mulher que honra Afrodite sabe movimentar-se, respirar e vibrar. Muitas mulheres bonitas parecem “habitadas” por Afrodite, prometendo, sob uma aparência sedutora muito prazer, onde os prazeres do corpo serão tão importantes como os demais, que mencionamos. O culto da deusa, não se pode esquecer, sempre procurou valorizar a iniciação da mulher como uma proposta de totalidade, tanto sob um ponto de vista físico como mental, psicológico e espiritual. 


SAFO

Os poemas de Safo foram escritos na primeira pessoa, neles se descrevendo muito mais a realidade da poetisa subjetivamente do que objetivamente. Neste sentido, a obra de Safo é um momento especial na história da consciência porque ela descreve esferas da subjetividade feminina nunca dantes descritas. Safo foi uma das primeiras mulheres a nos revelar, sob forma poética, os seus sentimentos. Isto a tornou uma precursora, ao anteceder em quase dois séculos o aparecimento do “eu” dos filósofos. 

Safo, ao se alinhar com Afrodite, tocou numa questão fundamental do mundo feminino. Ela nos deixou claro que a grande perversão  mulher,  ou  melhor,  da  energia  feminina  ocorre  quando  a
HERMES
sexualidade feminina é substituída ou suprimida pelo conceito de feminilidade por motivos políticos, sociais ou morais. Salvo em alguns períodos históricos excepcionais, essa prática vem sendo usada como um processo de anulação psicológica da mulher. Afrodite, aliás, quanto a este aspecto, tem muito a ver com Hermes, na medida em que ambos cultuam, cada um na sua esfera de atuação, o gosto dos relacionamentos, as aberturas afetivas, quanto à primeira, e mentais, quanto ao segundo. 


ASPÁSIA,  A  CORTESÃ

Na Grécia antiga, em que pesem todas as diferenças sociais, Afrodite era a deusa que reinava sobre a mulher casada, sobre a cortesã, sobre a concubina, sobre as hierodulas, sobre as prostitutas, sobre a mulher espartana, sobre a camponesa da Beócia, sobre a sofisticada mulher de Corinto. Todas conheciam a deusa e, cada uma no seu nível, procuravam honrá-la.



Quando Afrodite chegou ao mundo grego, logo passou a ser conhecida como “aquela que era a dona de si mesma”. Podemos compreender seu casamento com Hefesto como uma perda de liberdade, se aceitarmos que a sua mudança de status, com o casamento, correspondia a uma imposição patriarcal da religião olímpica. Afrodite logo, porém, arranjou um amante. Um acontecimento como este, na história da deusa, torna claro o seu espírito de resistência com relação ao casamento, especialmente da maneira como ele lhe fora imposto e com um personagem tão soturno quanto Hefesto.

O que se sabe também é que na Grécia antiga tanto jovens recém-casadas como matronas ainda desejosas de sexo costumavam frequentar os templos da deusa, para lhe “pedir” um bom desempenho quando chegada a hora. O casamento para os cidadãos gregos era basicamente um dever cívico, entendimento que não se distinguia tanto de como o viam (vêem) as religiões patriarcais (judaísmo, cristianismo e islamismo), como um dever conjugal (gerar filhos), e mesmo o que dele pensam hoje os mais “modernos”, uma necessidade por questões higiênicas ou um modo de afirmação de uma normalidade psicológica.

Quem domina o casamento é Hera e não Afrodite, esclareçamos
HERA
logo. O patriarcado nunca permitiu que as duas deusas se entendessem. Um casamento sem Afrodite é estéril, é algo que pode oscilar, como diria depois Schopenhauer, entre a solidão e o tédio. A imagem de uma esposa fisicamente apaixonada é uma figura totalmente ausente nas propostas matrimoniais das religiões patriarcais até hoje, apesar de todo o alarido que cerca em nosso século XXI o tema da “libertação da mulher”.

Sabe-se que não é fácil manter, ao mesmo tempo, um relacionamento apaixonado e uma união estável. A tensão entre Afrodite e Hera é muito grande e está presente em todas as relações matrimoniais. Na prática, os homens gregos sempre expressaram em muitos textos o receio de associar o amor e o prazer que Afrodite representa no casamento. 


A mitologia grega sempre assustou as religiões patriarcais porque os seus deuses não eram perfeitos, porque a sua maneira de proceder não excluía os piores defeitos. Mentir, por exemplo, é coisa com a qual não se preocupam Hermes nem Afrodite. Para eles, a verdade que leva em consideração apenas fatos objetivos ou encadeamentos lógicos não é a verdade, pois deixa de lado a subjetividade e as emoções. Para esses dois deuses, essa “verdade” será sempre em maior ou menor parte falsa, uma “meia-verdade”, se quisermos. Qual a resposta realmente “verdadeira” quando perguntamos a alguém que nos é muito próximo se ele ou ela nos é fiel, se nos ama? Quantos matizes e níveis há nisso que chamamos de fidelidade? Um sim responderá a tudo?

Não esqueçamos que Hermes é tanto símbolo das melhores como das piores qualidades mentais do ser humano. Ele é patrono de gente que está acostumada a mentir em nome da pátria, os diplomatas, por exemplo, pessoas muito distintas, bem
consideradas, alguns, como a História nos conta, vistos até como heróis. Hermes é igualmente reverenciado por acusadores (promotores públicos) como por advogados de defesa. Num tribunal do júri, o que importa, como se sabe, é a capacidade que cada um deles terá para convencer os jurados quanto ao seu ponto de vista. O que dizer hoje, por exemplo, do  sistema econômico-financeiro implantado universalmente, tão mentiroso e falso, corrupto, hipócrita, criminoso, do qual dependemos e do qual uma elite retira tantos benefícios? 

Já se disse que Afrodite está para a fidelidade e para a traição como Hermes está para o comércio e para a diplomacia. Honestidade e respeito pela verdade só têm valor num contexto de equidade perfeita. Onde encontrá-los? “Dizer a verdade”, “falar tudo”, em sistemas políticos, sociais e econômicos sem equidade, como os que temos hoje no mundo todo, e considerando-se os seus reflexos nas relações humanas, é favorecer a dominação, o controle e a prepotência, com evidentes prejuízos para a justiça, para o que é íntegro.

É claro que defendemos a veracidade, a coerência, a autenticidade; fomos educados para respeitá-las, as religiões e os sistema educacionais estão aí para isso. O que acontece, porém, é que esses “valores” vêm sendo colocados há muito tempo (desde sempre) em “níveis muito elevados”, inatingíveis, em todos os campos da vida humana. No campo da moral, os estragos são imensos. Quando a fidelidade entre pessoas é resultado do medo, de conveniências econômicas, do poder do mais forte, essa fidelidade não tem qualquer mérito. 

A história de Afrodite nos revela o quão decepcionante são (foram) a sua sedução e promessas de voluptuosidade para aqueles que acreditaram em “amor eterno”. O fato é que Afrodite e Hermes não mostram simpatia por “cenas dolorosas”, pelo melodramático principalmente quando se trata do rompimento das relações amorosas. A rigor, para ambos, a imagem idealizada que os amantes têm um do outro é geralmente falsa.

A par destes problemas, não podemos esquecer que uma das grandes saídas do machismo moderno foi o da repressão, o da neutralização dos valores de Afrodite. É neste cenário que o shador dos islâmicos e a pornografia e o erotismo do ocidente são equivalentes.            Em ambos temos a mesma atitude repressiva, a
mesma proposta no sentido da anulação das artes de Afrodite. Os primeiros, os islâmicos, não querem que a mulher seja vista, ainda que por trás de um shador; para os que souberam ver, haja nessas mulheres olhares que lembram faíscas de fogo (ver, por exemplo, o filme Às Cinco da Tarde, de Samira Makhmalbaf). 

               Os outros, procurando também anular a deusa, organizados  em  multinacionais que exploram o sexo, por imagens  ( cinema,  TV,  Internet)  ou  ao  vivo ,  mostrando  “tudo”
explicitamente, não precisam muito para nos convencer o quanto ela é  “submissa” ao poder do dinheiro. O lixo da nossa publicidade nas Tvs está diariamente diante dos nossos olhos para comprovar o que aqui se coloca. Não foi por acaso que os norte-americanos inventaram nomes como sexy, sex-appeal ou pin-up e os nossos modernos publicitários, por exemplo, "criaram" mulheres bebendo cerveja.

Para as mulheres que podem pagar (refiro-me obviamente aqui às ocidentais), a dominação é exercida através de códigos da moda. Nas culturas tradicionais, conservadoras, esses códigos são controlados,  fixados,  rígidos.         Os  adornos,  os  trajes  para  as
solenidades, as roupas de luto, de casamento, tudo é determinado. Nos movimentos da contracultura que tomaram conta da juventude no ocidente a partir dos anos de 60 temos, apesar de pretextos de uma libertação, a mesma coisa, o conformismo do blue jeans, a moda deformadora do corpo feminino tanto no calçar como no vestir, a mesma maquiagem, as mesmas tatuagens, o mesmo piercing e muito mais.

Ora, aceitar códigos na moda é aceitar as imposições do mercado e não Afrodite. Para estar com ela, é preciso saber seduzir, brincar, ter a audácia de fugir do lugar comum, de transgredir as normas, de criar  um  estilo  próprio  na  decoração corporal, pois quem segue a
moda não tem estilo, hoje a maioria assustadora, sem dúvida. Os padrões da moda anulam o espírito de Afrodite. Por isso, há tantas mulheres que jamais chegam a descobrir o seu próprio caminho nos territórios da deusa. O utilitarismo, como proposta filosófica, ainda sobrevive e bem. Sua máxima se impõe sem resistências: “o útil ou o que pode proporcionar cada vez mais a “felicidade” (aquilo que o mercado impõe) deve ser o princípio supremo a orientar a ação humana.” É a chamada “aritmética dos prazeres”, ou seja, proporcioná-los e aumentá-los, prazeres que são só grossura e boçalidade, sendo fácil constatá-los que nada têm a ver com Afrodite. 

O caminho de Afrodite é o da expressão original, audaciosa, o de uma expressão para cada personalidade. Nada dos estereótipos do que “vende mais” no mercado da exibição do corpo feminino. De outro lado, numa outra ponta,  a mulher alienada, a boneca de luxo, também vítima, muitas vezes inconsciente, da imposição, dos clichês. Em todos os casos, a beleza feminina perde a sua real representação, o poder alquímico da deusa, a solutio, é rejeitado, ficando a mulher confinada em círculos infernais.


FLORA

Afrodite, entre os romanos, como Vênus, foi confundia inicialmente, nas suas representações, nos primórdios  de  Roma, com as imagens das deusas  dos  primitivos  povos  da região, como Feronia e Flora.   A primeira era uma antiga divindade itálica, sabina, relacionada com a Mãe   Terra,   sendo  conhecida  como  deusa  dos  campos   e   dos infernos ,  lembrando  os  seus  traços algo  da Perséfone grega e da Proserpina romana.      A segunda, divindade da Itália central, era a deusa das florações  primaveris,  cereais,  árvores frutíferas, vinhas, flores etc. 

Aos poucos, esses modelos foram se fixando, representando Vênus o amor sob o ponto de vista físico, instintivo e o apetite sexual e também atribuições agrárias, principalmente com relação a jardins e pomares, como o denotam as Vinálias rústicas, festas das vindimas celebradas em agosto. Ovídio, por exemplo, como uma reminiscência dos primitivos tempos, sugere que nessas festas os jovens ofereçam incenso a Vênus, pedindo-lhe beleza e favor popular na arte das carícias. Todos os poetas romanos que celebraram Vênus desse modo sempre consideraram também o vinho como um poderoso ingrediente da vida amorosa.

VÊNUS  DE  MILO
O que se sabe de mais concreto com relação a Vênus, no início da vida romana, é que a deusa não estava alinhada entre as grandes divindades do seu panteão, embora se registre a existência de um templo levantando em sua homenagem antes dos anos 700, data da fundação da cidade.  A identificação da Vênus romana só ocorreu a partir do séc. II aC, passando a antiga deusa dos pomares e dos jardins a ocupar uma posição mais importante no panteão da cidade. Essa posição foi conquistada quando a história de Eneias veio para o primeiro plano da mitologia romana. Foi assim por essa razão que Vênus se transformou na grande ancestral da família dos Júlios, através de Iulo, um neto seu, filho de Eneias, fundador do império.

       Após ter sido arrebatado pelos deuses, depois de ter vencido os
rútulos, e de ter se transformado em senhor da península itálica, Ascânio, depois Iulo, assumiu a chefia de todas as tropas confederadas do povo latino, formadas então pelos etruscos e rútulos. Como recompensa por tão grande feito, Ascânio foi apelidado de Iulo, palavra que então representava um diminutivo de Zeus, ou seja, Iulo, “O Pequeno Zeus”. 

A entrada do culto de Afrodite na península itálica se deu através da Sicília, quando os romanos, em guerra na região, conheceram o santuário da deusa. Esse contacto fez com que os romanos logo levantassem templos em homenagem à deusa Ericina (Afrodite siciliana), em cujo culto tinham papel importante as hierodulas. Com rapidez, o culto dessa Vênus helenizada se estendeu por todo o império. Um de seus apelidos era Vênus Felix, a dispensadora da felicidade e da sorte, sendo o centro de seu culto fixado em Pompeia. Cada imperador promovia um culto especial à deusa, ligando-o ao seu nome, criando-se um apelido para representá-la. O imperador Cneu Pompeu, por exemplo, nos deu a Venus Victrix, a Vênus Vencedora, dedicando-lhe um suntuoso templo. 

    Dentre outras denominações da deusa, como ancestral de Eneias,
de Rômulo e Remo e dos Césares, destacamos: Venus Cloacina, uma fusão da Vênus romana com Cloacina, deusa etrusca das águas, resultando de tal fusão uma grande estátua da deusa levantada bem próximo da chamada Cloaca Maxima (sistema de esgotos de Roma, ruínas, fig. dir.), lugar onde teria sido feita a paz entre os romanos e os sabinos. 

VENUS  FELIX
A Venus Felix foi patrocinada pelo imperador Adriano. Suas estátuas ficavam na Via Sacra, ao norte de Roma e, uma delas, encontra-se nos museus do Vaticano.  A Venus Genetrix era a deusa no papel de grande ancestral do povo romano, mãe de Eneias, cultuada como deusa da maternidade e da vida doméstica. A Venus Libitina aparecia associada a ritos funerários, enquanto a Venus Murcia tinha relação com a murta e, como tal, ligava-se às cerimônias matrimoniais. 


VENUS LIBITINA
Os noivos, no dia do casamento, trocavam coroas de murta. Entre os guerreiros, uma coroa de murta era sinal de vitória sem derramamento de sangue. A mitologia grega nos revela que Fedra, esposa de Teseu, rei de Atenas, desesperada ao saber da morte de Hipólito, seu enteado e grande amor, enforcou-se num galho de murta. Na astrologia romana, a murta era dos signos governados por Vênus, Touro e Libra.


VENUS   VICTRIX

A Venus Obsequens (Vênus Indulgente) era cultuada por mulheres acusadas de adultério. O mais antigo templo de Vênus em Roma, levantado com o dinheiro de mulheres vítimas de tal acusação, era o da deusa honrada sob este epíteto. A Venus Verticordia (Vênus que vira os corações) protegia contra vícios e desencaminhamentos amorosos de toda natureza. A Venus Victrix (Vênus Vitoriosa) era a deusa vitoriosa, armada, modelo herdado dos gregos que, por suas vez, o haviam herdado dos mesopotâmicos (Ishtar no seu aspecto guerreiro). Foi a essa Vênus que o imperador Pompeu dedicou um templo no Campus Martius. Posteriormente, essa Vênus foi usada para representar a vitória feminina sobre corações masculinos. Venus Amica, Venus Armata, Venus Caelestis e Venus Aurea eram outros epítetos da deusa usados pelos romanos.

       A esta altura é preciso salientar que o amor conjugal em Roma,
desde os primórdios da cidade, ocupou um lugar muito importante na vida social. Esclareça-se, porém, que esse amor conjugal sempre se distanciou bastante de formas mais “aquecidas” de convivência, assumindo no máximo características de ternura, de vida em comum mais ou menos compreensiva entre os parceiros.


Literariamente, as primeiras expressões sobre o amor em Roma foram os epigramas (pequenas composições em verso) pederásticos, escritos no começo do séc. I aC. Políticos e pessoas da elite, mais letradas, que ocupavam altos cargos no governo da cidade, não consideravam  indigno  compor  uma  pequena  peça em  que  se celebravam os encantos de
um jovem, escravo ou liberto. Tais peças revelam contudo que o sentimento amoroso nelas expresso era muito mais uma atitude literária do que fruto de uma experiência vivida. Um fenômeno de imitação, uma moda literária, colocada em circulação por poetas alexandrinos. Membros da elite romana quiseram imitá-los, transformando-se, como eram chamados, em graeculi (gregos, palavra que tinha um sentido pejorativo, maus gregos, imitadores), a suspirar por um pastor que existia só na sua imaginação.

Quando nos aproximamos de Roma, constata-se que muitas vezes as produções da literatura e das artes plásticas não refletem com exatidão a realidade das consciências nem da sociedade em que aparecem. Tal procedimento confirma uma das grandes verdade das artes, ou seja, a de que elas, em muitos períodos históricos, podem ser esteticamente independentes da realidade vivida. Nem toda obra de arte, literária ou plástica, poema, romance, tragédia, pintura ou escultura, é “verdadeira” com relação ao que acontece na sociedade em que aparece.

Um exemplo do que aqui se diz é Catulo (87-54 aC), um dos grandes poetas imitadores dos alexandrinos. As suas peças líricas, consideradas obras-primas, falam de uma paixão que tinha por Lésbia, nome poético dado por ele a sua amante Clodia, mulher do proconsul Q. Metellus Ceter, da Cisalpina. Catulo a comparava a Safo, famosa poetisa de Lesbos. O grande poeta, tão precocemente desaparecido, é um dos maiores nomes da literatura latina. Deixou-nos,  dentre outras composições, uma pequena epopeia intitulada As Núpcias de Thetis e de Peleu.

De um modo geral, porém, para os estudiosos modernos a vida amorosa em Roma não tem boa reputação. A tradição que prevalece é a de que tanto entre as camadas populares como entre as elites a orgia dominava, sendo designada pelo nome de bacanal. Diga-se logo que Bacchus é o nome latino pelos quais os romanos designavam Bakkhos, um dos apelidos do Dioniso grego. Baco é palavra que significa “estar agitado, fora de si, exaltado, claudicante, entusiasmado”.


BACO   (CARAVAGGIO)

No mito latino, o deus do vinho era filho de Júpiter e de Sêmele que, ao pretender que ele lhe aparecesse sob sua forma divina, foi por ele fulminada. Quando Baco chegou à península itálica os vinhedos e a vegetação de um modo geral eram protegidas por uma divindade muito rústica, chamada Liber Pater, Pai Liber. Logo, porém, desde o séc. II aC, o culto dionisíaco foi assimilado pelos povos da Itália, recebendo as orgias báquicas, que tinham o objetivo de liberar e de transformar o homem, o nome de Bacchanalia, Bacanais, nelas se destacando o descontrole sexual, a intemperança e a depravação. 


BACCHANALIA


Vários fatores contribuíram para que esse quadro se fixasse. Os escritores moralistas romanos da época, Sêneca e Petrônio, principalmente, a pretexto de combater a imoralidade das bacanais, descreviam-nas com tantos detalhes, carregando demais nas tintas, que as suas invectivas acabaram produzindo um efeito contrário daquele que desejariam produzir. 

De outro lado, havia também a polêmica de escritores cristãos, empenhados em acusar a sociedade que desejavam reformar à luz dos princípios da religião que defendiam.                  Os    testemunhos
desfavoráveis sobre a orgia multiplicaram-se, sendo denunciado como pecaminoso, imoral, tudo aquilo que se opusesse de alguma forma ao cristianismo. Muitos cultos da fertilidade, por exemplo, que nada tinham de devassidão, foram condenados sumariamente por escritores dos primeiros tempos do cristianismo em Roma. No geral, porém, ressalte-se que a educação das crianças falava de pudor com relação ao corpo, sendo as meninas insistentemente lembradas da necessidade de se respeitar a castitas, o afastamento de toda conduta desregrada.


MARTE  E  REIA  SILVIA  ( RUBENS )

A fundação da nação romana tem a ver com duas grandes histórias de amor: a de Afrodite por Anquises, já contada, e a da paixão do deus Marte pela vestal Reia Silvia. Vimos anteriormente que Eneias, filho de Afrodite e de Anquises, terminada a guerra de Troia, embarcou com seus homens em direção da península itálica para ali fundar um grande império, conforme o destino que lhe fora fixado por sua mãe. 

No meio do caminho, porém, Eneias deteve-se em Cartago, entregando-se aos amores de Dido, a rainha da grande cidade. Eneias, como vimos, embora contrariado, teve que abrir mão de sua paixão para cumprir o seu destino. Cabe aqui um esclarecimento: aparentemente, Eneias nascera por causa de um capricho de Afrodite, um capricho como o de uma mulher qualquer, como alguns chegaram a observar. Entretanto, Afrodite não era uma mulher qualquer, era uma deusa e, como tal, todos os seus atos se situavam no plano da Providência. Entregando-se a Anquises, ela realizara com a sua carne a vontade de Moros, a grande divindade do Destino. Não podemos confundir o ato de Afrodite com um capricho amoroso. No caso de uma mortal, este capricho será sempre cego, inconsequente. 

Afrodite, chamada agora de Vênus, teve que atuar politicamente
JUNO   SOSPITA
para resolver o problema criado pela paixão de seu filho por Dido. Teve que enfrentar Juno (Hera), padroeira das uniões legítimas e divindade da devoção de Dido. Juno empurrou Eneias para a sua protegida. Vênus percebeu a armadilha, zombando porém da ilusão de sua rival. Sabia que uma paixão, sobretudo satisfeita, não poderia aprisionar a vontade de um homem. Dido, mulher, mortal, morrerá por causa de sua paixão, talvez mais de raiva, decepção e vergonha do que de paixão. E o que era para Vênus a morte de uma mulher diante da fundação de Roma?


O segundo caso de amor ligado à fundação de Roma tem como personagens Reia Sílvia, filha de Numitor, rei de Alba, um rei destronado, deposto por seu irmão Amúlio. Este, como se sabe, condenara   Reia   Silvia   à   virgindade   eterna,   na  esperança  de
extinguir toda a linhagem  do soberano legítimo. Entregue ao culto de Vesta, não poderia ter filhos. Outros dizem que ela foi também trancada  prisão, de onde raramente saía, algo semelhante ao que Acrísio fez na Grécia com a sua filha Dânae. Reia Silvia, contudo, acabou conhecendo o amor. A façanha é atribuída ao deus Marte, que viu a jovem na margem de um rio, apaixonando-se por ela imediatamente. De Reia Sílvia nasceram os gêmeos Remo e Rômulo, fundadores míticos de Roma.


PANTEÃO   ROMANO

Os romanos gostavam de se declarar como “o mais religioso” dos povos. Como tal, verdadeira ou não a afirmação, não podiam eles deixar de ser sensíveis ao caráter sagrado do instinto amoroso, capaz de transformar os seres, de arrancá-los de si mesmos, e que submete toda a natureza às suas leis. Nesse sentido, criaram suas divindades, seus ritos e sua magia. O culto a essas divindades, a observação religiosa de práticas cuja origem se perdia na origem dos tempos, tudo tinha um objetivo, o de exaltar as forças criadoras do ato amoroso e também de controlá-las, disciplinar o que nelas havia de anárquico e fazê-las servir ao bem da urbe.

Na Vélia, uma das primeiras colinas romanas a serem povoadas,
MUTUNUS  TUTUNUS
existia um santuário muito singular, sendo a sua divindade tutelar representada por um membro viril. Essa divindade tinha o estranho nome de Mutunus Tutunus, numa tradução aproximada talvez “aquele que dá segurança mútua, recíproca”. Fizeram alusão a ele Tertuliano, Santo Agostinho, Arnóbio e Lactâncio. Seu culto prosperou até os tempos de Augusto. As mulheres, vestidas com a toga pretexta iam coroar de flores o símbolo da divindade. A toga pretexta era branca, bordada, com arremates na cor púrpura. 


O culto dessa divindade acolhia também as vestais e as sacerdotisas virgens que tinham sob a sua tutela os penates” do povo romano (antepassados ilustres). O membro viril que representava Mutunus Tutunus tinha correspondência com o chamado Genius, cultuado em todos os lares, simbolizando o poder de fecundação do dono da casa. 

Entre o povo,sobretudo no campo, durante muito tempo sobreviveu a crença num poder mágico do falo, chamado de fascinus. Em
FASCINUS  (  POMPEIA )
Pompeia, ainda se vê a sua imagem ameaçadora na porta de várias casas, evidentemente com a função de proteger a morada de mau-olhado. O falo era a melhor proteção contra as forças do mal, contra tudo que prejudicasse o crescimento e o desenvolvimento das criaturas, plantas e animais. À sua imagem não se associava nenhuma vergonha, o que não impedia que se tivesse o pudor do próprio corpo.


O fascinus não tinha só o valor apotropaico. Entre os camponeses era objeto de um verdadeiro culto, associado a Liber Pater
AGOSTINHO  DE  HIPONA

Santo Agostinho assim se refere a esse culto: “Esse membro vergonhoso, nos dias em se festejava Liber, era colocado com grande pompa num carro e conduzido primeiro pelo campo, de encruzilhada em encruzilhada, depois até a cidade. Na urbe de Lavínio, um mês inteiro era consagrado a Liber, e durante todo esse mês, todos os dias, empregava-se a linguagem mais obscena, até o falo ser levado através do foro em procissão solene e depositado em seu santuário. Sobre esse membro vergonhoso uma mãe de família entre as mais veneráveis devia depositar publicamente uma coroa. Aparentemente era a maneira de tornar o deus Liber favorável ao bom sucesso das semeaduras e afastar dos campos o mau-olhado.”

A princípio, deus de toda a fecundação, Liber progressivamente ganhou especialização. Logo assimilado ao Dioniso dos gregos, na religião formalista e discilpinada de Roma, tornou-se o protetor das vinhas e dos pomares. Na sua festa, uma lembrança dos velhos tempos, celebrada a 17 de março, os jovens tomavam a toga viril,
LIBERÁLIAS
tornando-se assim capazes de instituir família e entrando na classe dos patres. Nos campos, as formas arcaicas do culto de Liber mantiveram-se vivas por muito mais tempo. Vergílio conta-nos que em sua época os camponeses nas Liberálias reuniam-se para cantar, dançar, beber e fazer brincadeiras muito livres. Para eles como para aqueles que Santo Agostinho menciona a obscenidade da linguagem também tinha um valor ritual, uma eficácia mágica capaz de estimular a natureza e de ajudar a se realizar o mistério da vegetação. 



Das palavras que eram assim trocadas surgiram fórmulas quase rituais, que tomaram o nome de versos fesceninos e que na passagem de um cortejo nupcial ou de uma procissão triunfal eram dirigidos pelos espectadores aos participantes. Nessas ocasiões, deixava-se de lado toda a decência verbal, as palavras obscenas faziam parte do rito, afastando a desgraça e ao mesmo tempo estimulando a fecundidade do casal, aumentando a eficácia dos poderes misteriosos dos quais dependia o sucesso da cerimônia. 

Roma sempre esteve dividida entre dois grandes perigos: um era que, se negligenciados os cultos da fecundidade, as fonte de vida em seu território poderiam secar; outro, menos temível, era que a prática desses mesmos cultos viesse a provocar acessos de fanatismo e desordem na urbe. A reação amedrontada dos senadores na época do escândalos das bacanais não era isolada. É aqui que entra a história de Vênus, protetora dos amores, para nos trazer esclarecimentos mais completos. Muito cedo Vênus recebeu os traços da Afrodite grega, mas tudo indica que havia uma Vênus mais antiga, diferente na Anadiômene, que no mundo helênico resultara de uma síntese complexa na qual predominavam traços asiáticos.

Durante muito tempo os estudiosos se admiraram que Vênus tenha começado na Itália a sua carreira entre os camponeses, uma divindade algo rústica que personificava o encanto da primavera, das florações, reinando sobre as hortas. Só depois é que seu culto tomara uma direção “superior”, vendo-se nela uma das fontes primordiais da natureza, cujo poder muitas vezes os mortais sentiam duramente. Alguns, porém, acham pouco convincente que tenha sido esse o caminho da deusa, isto é, o resultado de uma religião da fecundidade que só mais tarde teria vindo a representar o amor humano. Outros entendem que o caminho foi inverso: partindo do humano e estendendo-se depois, progressivamente, a tudo o que vive.

Uma explicação mais admitida hoje é a de que a deusa teria sido a princípio não uma entidade ligada à fecundidade, mas a personificação de uma realidade espiritual infinitamente mais sutil, a eficácia das orações e preces, a única capaz de atrair para os homens as bênçãos das divindades. Originalmente, assim, Vênus teria sido uma mediadora universal, situada a meio caminho entre o humano e o divino, aquela que faz com que os seus fieis recebam o benefício das forças vivificantes do sobrenatural.

RUÍNAS  TEMPLO  DE  VÊNUS
O que se sabe também é que já no séc. VII aC a deusa tinha um santuário em Lavínio, cujo fundador teria sido Eneias. Foi aqui que teria se processado inicialmente a fusão entre a Afrodite grega e a Vênus romana. A primeira teria sido introduzida pelos colonos gregos na Campânia e também pelos etruscos instalados no Lácio. Todos os latinos faziam peregrinações a esse santuário a fim de prestar culto oficial à deusa.

Os traços dessa Vênus vão se fixando, vindo ela a personificar sobretudo para os romanos não só a sedução feminina com a força misteriosa, religiosa e mágica que a pessoa e o corpo da mulher encerram. Essas características sempre inquietaram de algum modo a sociedade romana no que ela tinha de puritana e conservadora, o que explica de algum modo o pequeno número de templos a ela dedicados nesses primeiros tempos.

           Os patrícios, zelosos sempre em preservar a ordem e os bons
costumes, mais na aparência do que na realidade, diga-se, sempre consideram a deusa com muita reserva, vendo-a como desestabilizadora da personalidade humana, ao levar os por ela atingidos a crises passionais, muitas vezes incontroláveis. As informações disponíveis sobre o culto de Vênus, nesses recuados tempos da história de Roma, permitem-nos afirmar que a deusa foi inicialmente honrada no Capitólio, uma das sete colinas da cidade, lendário lugar onde Rômulo e Remo teriam sido amamentados pela loba e, por isso, inicialmente centro religioso mais importante da cidade. Num santuário ali levantado honrava-se, estranhamente, uma Vênus Calva.

VÊNUS  CALVA
Há duas explicações para a origem desta Vênus Calva. Conta-se que durante o cerco de Roma pelos gauleses, as matronas romanas encerradas no Capitólio cortaram espontaneamente os seus cabelos para com eles serem feitos cordas e cabos necessários às máquinas de guerra. Como lembrança desse fato, o Estado teria dedicado, após a vitória, uma estátua à deusa, para lembrar que, embora calvas, as mulheres não haviam perdido a sua capacidade de seduzir. Outra explicação: nos tempos do rei Anco Márcio   (quarto  rei  legendário  de  Roma, sobrinho de Numa Pompílio),  as  mulheres  romanas,  inclusive  a rainha, foram acometidas de uma desconhecida enfermidade (alopecia) que provocava a queda dos cabelos. Para consolar a rainha, o rei ergueu-lhe uma estátua, representando-a no estado em que a doença a reduzira. Exposta a estátua em praça pública, um milagre ocorreu: os cabelos das mulheres do reino voltaram a crescer, mais belos que nunca. 

Um hipótese histórica sobre a Vênus Calva é a de que os homens resolveram, ao mesmo tempo em que cultuavam a deusa, despojá-la de um de seus grandes atrativos, seus cabelos, temerosos de seu imenso poder. Se nos homens os cabelos sempre se associaram à potência vital, como uma síntese das propriedades e das virtudes de seu ser, na mulher eles são incontestavelmente sedução e atração sexual. Nelas, o sacrifício voluntário ou imposto da cabeleira sugere uma espécie de castração simbólica, de sublimação dos instintos, de renúncia aos valores mundanos. 

Vênus, de um modo ou de outro, sempre ofereceu perigo aos magistrados romanos encarregados de regulamentar a religião oficial da Urbe. Foi para aplacar a cólera da deusa que os romanos, conforme documentos oficiais preservados, construíram em Roma no séc. III aC um templo em sua honra. Esse templo tem uma história curiosa: ele foi levantado com o produto das multas impostas às damas da alta sociedade romana condenadas legalmente pelo crime de “stuprum”, como então se chamava o comércio carnal ilegítimo. No rol destas mulheres encontravam-se viúvas jovens, moças de família que, por algum motivo, se prostituiam sem ser propriamente profissionais. Pelo que se pode ver, a prática do stuprum estava muito difundida, pois o dinheiro arrecadado, na forma acima descrita, possibilitou que um monumento público fosse levantado.


STUPRUM

O stuprum, em Roma, ganhava expressão dentro daquela tendência que tinha o ser humano de se abandonar aos excessos, tendência presente no comportamento mítico-religioso e combatida, no geral hipocritamente, pelo discurso filosófico-moral. Esses excessos eram chamados pelos romanos de luxúria, uma palavra que, do mundo natural passou ao mundo moral. Com efeito, luxúria, inicialmente, significou viço, magnificência, a propósito da vegetação. Riqueza de formas e cores, superabundância, excesso. Transferida para o mundo moral, virou comportamento desregrado com relação aos prazeres do sexo, lascívia, concupiscência, colocados sob a tutela de Vênus, deleite e prazeres venéreos. 

O radical indo-europeu wen ou van, de onde sai Vênus, é tanto desejo como graça, amor. Em latim, venustus quer dizer encantador; vanas, em sânscrito, quer dizer desejoso. É desse radical que sai também em latim venenosus, venenoso, e, em inglês, wish, desejar. Vênus é, assim, uma projeção no plano do divino do desejo humano natural e instintivo, presente na força inesgotável da mãe natureza, que impele os seres humanos à união e à reprodução. Trata-se essa força para os antigos e para nós também de uma misteriosa energia mágico-religiosa que se manifesta nos seres humanos e que, por isso, vem sendo venerada desde sempre e a ela se fazendo oferendas ritualmente. 

No plano humano, essa força que a deusa personifica tomou a forma de luxúria, afetando na antiguidade romana matronas e moças de família, que chegaram ao amor sexual ilegítimo (stuprum) e que, por isso, passaram a venerá-la, como se disse, sob o nome de Venus Obsequens (Vênus Complacente). A Venus Ericina, da Sicília, foi, por isso, marginalizada em Roma, sendo cultuada apenas pelas puellae vulgares, as moças do povo que caíam no meretrício. Para neutralizar ou contrabalançar essa inclinação os romanos criaram, como vimos, a Venus Verticordia, que desviava das seduções, dos desejos, das paixões.


VENUS   VERTICORDIA   (D. G. ROSSETTI )

Vênus em Roma sempre esteve ausente dos casamentos, era mesmo uma noção estranha ao vínculo conjugal, que era antes de tudo uma instituição voltada para reprodução. O casamento como instituição era um contrato estabelecido entre os pais dos nubentes, às vezes já na infância deles; os dois adolescentes ou, noutros casos, entre uma menina de doze anos e um homem com quarenta ou mais. Nesse mundo, Vênus era tanto o desejo carnal como o seu antídoto. 

Politicamente, sempre interessou à Urbe evitar que as mulheres praticassem atos imorais, estes sempre uma vingança da deusa, principalmente com relação àquelas que não a honrassem de modo adequado, que não a cultuassem com o devido fervor ou que a tivessem ofendido. Procurava a Urbe apaziguar a sua cólera e fazer com que ela favorecesse sempre os amores legítimos. Os deuses, contudo, costumam zombar dos obstáculos que os humanos lhes opõem ou de sua inabilidade em honrá-los devidamente. Quando das guerras púnicas, Roma ficou à beira da ruína. Decidiu-se que a mãe de Eneias não poderia ficar esquecida. Entre outras providências, decidiram os senadores tomar uma medida religiosa importante, trazer a Roma a Vênus Ericina. Para os romanos, as operações vitoriosas contra os cartagineses tinham sido, em grande parte, favorecidas pela Ericina, a partir da Sicília. 

JÚPITER
Essa deusa, porém, de fortes traços orientais, algo difícil para consciência romana aceitar. Trazer Ericina para Roma, dar-lhe direito de cidadania era uma decisão muito séria, pois ela sempre fora considerada uma potestade turbulenta, que protegia os lugares impuros e perturbava os corações. Na iminência do perigo, porém, essas reservas caíram por terra. E assim a Ericina foi para o Capitólio e colocada ao lado de Júpiter todo-poderoso. Com a sua entrada em Roma, o amor passional foi legalizado à custa da moral tradicional. 

Por outro lado, para atenuar as influências da Ericina em Roma, no sentido de equilibrar a política religiosa da Urbe, o Senado resolveu dar mais força ao culto da Verticordia, a que desviava das paixões perigosas. Os “Pais da Pátria”, dando uma demonstração prática de seu conhecimento das forças contraditórias que atacam a alma humana, esperavam que uma estátua da Verticordia “afastasse de algum modo da devassidão a mente das matronas e das virgens, devolvendo-lhes o senso do decoro.”

Quem deu corpo e rosto a esta Verticordia, emprestando-lhe os seus
SULPÍCIA
traços, foi a esposa de um senador, chamada Sulpícia, escolhida depois de um verdadeiro concurso de virtudes. Assim, ela tornou-se símbolo das virtudes que as mulheres deveriam cultivar a partir do mais profundo de sua alma. Logo, porém, a força da Verticordia mostrou-se insuficiente. Os escândalos se sucediam e um dos mais contundentes foi o que envolveu três vestais, acusadas de infidelidade aos seus votos de virgindade. O caso abalou todas as consciências. Decidiu-se, então, favorecer ainda mais o culto da Verticordia.


Nesse cenário, como se pode perceber, duas Vênus disputavam as fieis. Pouco a pouco, porém, a Ericina foi se impondo, perdendo os costumes o seu antigo vigor. Os últimos governantes que tiveram nas suas mãos o destino da Urbe, Sila, Pompeu e Cesar, colocaram-
SILA
se sob sua proteção. Além disso, principalmente a partir do século I aC, com a ampliação do domínio romano no Oriente, o lado oriental da deusa ampliou a influência da Ericina, tornando-se protetora de tudo o que era feliz, jovem, abundante. Não foi por acaso que os romanos consagraram a Vênus o mês de abril, o mês em que irrompe a primavera, e que tenham feito coincidir as festas da deusa com as das Vinálias, festas do vinho. Além disso, honrada publicamente pelas cortesãs, que dançavam sem véus, as festas da Ericina acabaram por se impor também no calendário romano àquelas celebradas em homenagem à deusa Flora, que representava o eterno renascer da vegetação.


O número de fieis da Ericina, a partir do séc. I aC, cresceu muito. Eles lhe pediam não só sucesso no amor, mas em todas as ações que viessem a praticar, no jogo, nos negócios, nas viagens etc. Os jogadores chamavam de “lance de Vênus” a combinação mais favorável que podiam obter. Sila, vencedor de Mitridates, recebeu o apelido de Epaphrodite, o Favorito da deusa. Lucrécio, o grande poeta latino (98-55), no prólogo do poema De Natura Rerum, deixou anotado o grande poder de Vênus sobre a consciência coletiva em Roma. Ela é chamada por ele de “Mãe das Eneidas”, a única capaz de dar paz ao povo, de aplacar a cólera de Marte e de pôr fim ao espírito belicoso das gentes.
  
 Para um poeta como Lucrécio e para os governantes de Roma, que
LUCRÉCIO
reconheceram o poder da deusa e sob sua tutela se colocaram, Vênus personificava, não uma abstração, mas um modo de viver que exaltava e transformava uma força cósmica em sentimento perturbador dos corações. Quando os romanos entenderam a sua vocação para a universalidade e a puseram em marcha, Vênus firmou o seu império sobre as almas e os corações. Não era mais a essa altura uma expressão carnal, mas um poder cósmico, gerador da vida, inclusive político e material, que sobrepujou antigas tradições puritanas e conservadoras que informavam a vida da Urbe. 


Aos poucos, os antigos conceitos morais foram sendo afastados em nome de uma moral mais humana, mais permissiva talvez, que não tinha só a função de assegurar a exaltação da Urbe, mas a de dar lugar também às expressões individuais. A Vênus romana foi o produto de uma convergência na qual se harmonizaram influências da Afrodite grega como também as de deusas orientais como Ishthar e Astarte. A devoção popular soube entender tudo isto e atribuir a Vênus um poder cada vez maior, principalmente na Itália meridional e na Sicília, onde as festas da deusa atraíam grandes multidões. 

Para uma dessas festas, um poeta, cujo nome a história não guardou, deu o nome de Alma Mundi a Vênus e nos deixou as palavras que transcrevemos:“É Vênus que com seu alento sutil penetra o sangue e a alma para exercer sobre a procriação o seu poder misterioso. Através dos céus, através das terras, através do mar, ela abriu para si um caminho que não cessa de impregnar com os germes da vida e, à sua ordem, o mundo aprende a gerar.”