terça-feira, 2 de setembro de 2014

ÀS CINCO DA TARDE E ARIANNE MNOUCHKINE




SAMIRA    MAKHMALBAF

O filme é de 2003, exibido no Brasil em 2006, dirigido pela iraniana Samira Makhmalbaf. Esta cineasta, aos 18 anos, com o seu filme de estreia, A Maçã, foi, como se sabe, premiada em Cannes como uma das grandes revelações do cinema mundial. Agora, com o seu Às Cinco da Tarde, ela, do Afeganistão, tendo por cenário uma Cabul devastada, nos envia uma história de resistência e de sobrevivência, premiada em Cannes (prêmio especial do Juri). Durante as filmagens no Afeganistão,  SM e sua equipe sofreram um atentado; com a intervenção e proteção de tropas  da ONU, ela conseguiu, entretanto, terminar o filme, fazendo-se depois a edição em Teerã.

Aproveitando as recentes mudanças político-sociais no país (queda do regime dos Talibãs), Noqreh, personagem principal do filme, resolve estudar, desafiando o pai, um homem extremamente conservador, como a maioria masculina do país, que a queria longe da escola. Ela, num debate com suas colegas, toma conhecimento de que mulheres também podem fazer política; sonha, por isso, em ser presidente do país, no que é auxiliada por um poeta que conheceu. Ao final, ao lado do pai e de uma cunhada, mãe de uma raquítica criança, partirá para uma viagem pelo deserto em busca de um lugar onde ela e o que sobrou de sua família possam sobreviver.


O filme é uma coprodução franco-iraniana. O roteiro é de SM e do pai, o grande cineasta Mohsen Makhmalbaf (À Caminho de Kandahar, Gabbeh, Salve o Cinema e outros), responsabilizando-se este também pela montagem. Fotografia de Ebrahim Ghafori; 
MOHSEN    MAKHMALBAF
música de Mohamad Reza Darvishi. 

Participam do elenco atores amadores e universitários.
Makhmalbaf pai, nascido em 1957, no Irã, lembremos, por suas atividades culturais sempre teve problemas com a censura. Aos 17 anos, foi preso e encarcerado por quatro anos pelo regime imperial iraniano. Libertado em 1979 pela revolução islâmica dos aiatolás, continuou na sua atividade de agitador cultural e se tornou um grande realizador cinematográfico, mas sempre tendo problemas com a censura oficial, na nova ordem.




O cenário do filme é o Afeganistão (29 milhões de habitantes), uma república islâmica. Sem fronteiras marítimas, o território do país ocupa a Ásia central, possuindo vínculos políticos, comerciais e religiosos com os países vizinhos (Paquistão, Irã, Turcomenistão, Uzbesquitão, Tardjikistão e China). O Afeganistão é um cadinho de experiências artísticas, com longas tradições culturais e arte privilegiada, entre o ocidente e o oriente, sendo sua localização estratégica, ao ligar o sul, o centro e o sudoeste da Ásia.

Desde 1970 o país se viu envolvido numa guerra brutal e contínua, que incluiu invasões estrangeiras, como a soviética de 1979 e mais recentemente, em 2001, a norte-americana, que derrubou o regime político instaurado pelos talibãs, anti-americano. O pretexto para a invasão americana foi o de que o terrorista Bin Laden estaria escondido no Afeganistão. Colocando no poder um governo títere, os USA firmaram com ele, em 2005, um acordo de parceria estratégica. Muitos milhões de dólares foram e continuam sendo investidos no país para a sua reconstrução, conduzida por empresas norte-americanas.


AS   MULHERES   E   O   CORÃO


Talibã quer dizer estudante (do Corão) na língua do país. O nome é dado a um movimento islamita extremista, profundamente nacionalista. O Talibã governou o país entre 1996 e 2001. Os membros mais influentes do Talibã são ulemás (estudantes de religião). Desde a invasão soviética, os Talibãs estão em luta. O ideal político-religioso do movimento é o de recuperar todos os aspectos do Islã (cultural, social, jurídico e econômico), com a criação de um estado teocrático. Quando os soviéticos invadiram o Afeganistão, os USA, através da chamada Operação Ciclone, conduzida pela CIA, armaram o país, que conseguiu afastar a presença soviética.

Os USA acharam que um dos parceiros do Afeganistão, o Iraque, que com ele formava o chamado “Eixo do Mal”, segundo divulgava a imprensa americana, também precisava ser invadido, como de fato o foi. Pretexto: o arsenal nuclear do país (inexistente, como se constatou), era uma ameaça para a humanidade. Enquanto isso, o Talibã se rearticulava, lutando (guerrilhas) contra a presença norte-americana no país e contra o governo títere.  Os norte-americanos intensificaram  os bombardeios, cidades foram arrasadas com o objetivo de se acabar com os talibãs, o que não parece ter dado resultados. Consequência: o grande sofrimento da população civil, a destruição de cidades, de vidas, de uma cultura, de tesouros artísticos.




Este é o cenário do filme de SM, situado agora, de modo muito sumário, histórica e geograficamente. Às Cinco da Tarde é o seu terceiro filme; ela coloca a sua técnica (cada plano do filme) a serviço de uma arte participante e poética ao mesmo tempo. O enfoque de SM é muito delicado, humano. Um país destruído e ela dando voz à juventude, que procura o seu caminho.

É no meio desse processo que Noqreh (atriz não profissional) só pode ir à escola às escondidas; o pai não pode saber. Suas idéias começam então a mudar; entra em contacto com outras jovens que, como ela, são obrigadas a usar a burka. Lê poesia, conversa, suas ideias mudam. Uma revolta contra a tradição? Os talibãs, no governo, proibiram o uso de câmaras fotográficas e cinematográficas sem licença; combateram ferozmente a programação livre de cinema,  a TV,  o uso de videocassetes e os jogos eletrônicos, considerando-os nefastos. Controlaram o uso da Internet. Mulheres, nada de estudo; à rua (obrigatório o uso da burka) só podem sair se acompanhadas por homens. Proibição total de exploração do nu feminino; de rinhas de cães; de lutas de box; promoveram a destruição das plantações de ópio do país, que estavam na mão das elites econômicas. Proibiram manifestações artísticas e exposições de arte não islâmicas.

As paisagens do filme são secas, poeirentas, o clima é desértico. Enquadramentos cuidadosos, pausas e silêncios nos põem dentro do filme e dos personagens. Há muita miséria, a convivência é difícil, mas há cores e música, olhos brilhantes. O roteiro do filme foi estabelecido em cima de fatos reais que SM foi colhendo na sua perambulação pelo país. Ela acabou nos dando uma visão do Afeganistão que nenhuma cobertura dos grandes canais internacionais de TV conseguiu igualar. Por isso, um grande cinema como reflexão. As respostas que Noqreh obtém são confusas, contraditórias, mas ela não desiste. Um dia, quem sabe, chegará à presidência, como Benazir Butho. Noqreh fica sabendo, porém, que política é algo que acontece nas altas esferas, não tendo nada a ver com o povo.




A metáfora dos sapatos brancos pode nos lembrar o conto de Cinderela. Mas Noqreh é apenas uma jovem afegã, que foge com o pai e a cunhada. Ajuda esta a cuidar do filho, precisa encontrar água para o animal que vai com eles, quer estudar e, um dia, ser presidente. Em meio à religiosidade fanática do mundo masculino, ela procura o seu lugar. Ao calçar os seus sapatos brancos, Noqreh ganha uma individualidade nova, participa da sociedade, tornando-se senhora da sua própria vida. A vida de Noqreh decididamente não é um conto de fadas, como ela pode perceber pelas palavras do velho afegão perdido no deserto, à espera da morte.

O título do filme foi retirado de um verso de um poema de Federico Garcia Lorca, poeta espanhol assassinado pelo franquismo espanhol em 1936. La Cogida y la Muerte é o seu título, que faz parte do Llanto por Ignacio Sánchez Mejías, incluído no Romancero Gitano.

Em junho de 2005, convidados pela Fundação para a Cultura e a Sociedade Civil de Cabul, capital do país, Arianne Mnouchkine e seu grupo, o Théâtre du Soleil, foram ao Afeganistão para realizar
ARIANNE    MNOUCHKINE
uma oficina de teatro, que seria o marco inicial de um movimento teatral estudantil no país (Teatro Aftab). Embora ameaçados pelos talibãs e mesmo contra as recomendações do governo francês para que não fossem, Arianne e um pequeno grupo para lá partiram. O resultado dessa experiência está num documentário de 2007, realizado por Duccio Bellugi Vannuccini, Sergio Canto Sabido e Philippe Chevalier, Um Soleil à Kaboul...ou plutôt deux, de 75 minutos de duração.





O Théatre du Soleil foi fundado em 1964 por Arianne Minouchkine e alguns de seus colegas, então estudantes na Sorbonne. Constituíram eles uma Sociedade Cooperativa Operária de Produção. Em 1970, o grupo se instalou na periferia de Paris, perto do Bois de Vincennes, num local chamado Cartoucherie, uma antiga fábrica de munição do exército francês. Desde essa época, o Théâtre du Soleil ocupa uma posição ímpar no teatro mundial, realizando espetáculos em várias partes do mundo, sempre caracterizados por um excepcional nível criativo e técnico. 


THÉÂTRE   DU   SOLEIL   -   PARTE   DO   COMPLEXO

O Théâtre du Soleil veio poucas vezes ao Brasil, sendo, em São Paulo,  acolhido no SESC, um local privilegiado para a montagem de seus espetáculos, como o realizado em 2011, Os Náufragos da Louca Esperança, calcado em texto de Júlio Verne.

Com base em experiência semelhante à do Afeganistão, Arianne Mnouchkine, lembro, já realizara um filme em 2003, intitulado Le
JEAN-JACQUES   LEMÊTRE
Dernier Caravansérail (Odyssées)
, com cerca de seis horas de duração. O ponto de partida do do filme, rodado na Cartoucherie, com música do excepcional Jean-Jacques Lemêtre, foi uma peça composta sobre uma série que relata histórias da vida de exilados, pessoas de procedências diversas (curdos, afegãos, iranianos e outros) obrigadas  a abandonar os seus países, por razões políticas, guerras etc., que Arianne encontrou em suas viagens pelo mundo.