terça-feira, 2 de setembro de 2014

A PALAVRA ( ORDET)



CARL   THEODORE   DREYER

O filme é de 1955, realizado na Dinamarca sob a direção e com roteiro de Carl Theodore Dreyer. A excepcional fotografia é de Henning Bendtsen e de John Carlsen. Montagem: Edith Schüssel. No elenco: Henrik Malberg, Emil Hass Christensen, Cay Kristiansen, Birgitte Federspiel, Ann Elisabeth Groth, Preben Lerdorff Rye e outros.


Uma família de pequenos fazendeiros passa por desavenças. A rotina familiar é sacudida pela chegada de um dos filhos do patriarca, perturbado mentalmente. Excessos nos estudos de filosofia (Kierkgaard) e de teologia seriam os responsáveis por tal desequilíbrio, assim pensam os familiares, amigos e mesmo médicos. Mas nem todos aceitam que Johannes Borgen seja um louco, como se verá.

A ação transcorre nos anos de 1930 na península de Jutlândia (Dinamarca). Na pequena propriedade agrícola, viviam o velho luterano, Mortem Borgen, seu filho mais velho, Mikkel, casado com Inger, seu segundo filho, Johannes, que, mergulhado numa espécie de loucura mística, julgava-se uma encarnação de Jesus Cristo, e seu terceiro filho, o caçula, Anders. 


FAMÍLIA    BORGEN

Joahnnes falava de um modo enigmático, muitas vezes incompreensível, mas sempre recriminando os seus familiares e vizinhos, porque se mostravam insensíveis aos ensinamentos de Cristo. Inger, a mulher de Mikkel, mãe de duas filhas, estava grávida. Quanto a Anders, ele andava de amores com Anne, filha de Peter, um  vizinho, que a impedia de se unir ao rapaz, em razão de divergências religiosas. Mortem e Peter discutiram, alegando o primeiro que tais questões não poderiam prejudicar o amor dos jovens.


JOHANNES

Em determinado momento, Inger, grávida, começa a passar mal. Johannes tem visões sombrias sobre o desenlace dessa gravidez. Suas previsões se materializam: a criança não sobrevive e Inger morre. Johannes  tenta ressuscitá-la. Não o conseguindo, afasta-se, sai do quarto pela janela, deixando para os presentes, familiares, médico e outros, uma mensagem bíblica. Na residência de Borgen, o pastor da cidade pronuncia seu sermão. As famílias de Morten e de Peter acabam se reconciliando. 


A    MORTE    DE    INGER    

Enquanto isso, Mikkel chora ao lado da mulher morta. Johannes reaparece. A pequena filha de Inger, o conduz ao quarto onde a mãe jazia morta, pedindo que ele se apresse, que a traga de volta à
vida. Johannes, para espanto de todos, parece ter recuperado a razão. Em nome de Jesus Cristo, ele se dirige à morta. O pastor protesta, o médico o retém. Johannes ordena então que ela volte à vida. Inger descruza as mãos unidas sobre o peito e abre os olhos. Seu esposo, Mikkel, reencontra sua fé e Anders faz o pêndulo do relógio voltar a funcionar. Mikkel diz que uma nova vida recomeçaria para ele e para a mulher. Inger lhe responde, concordando e abraçando-o.

A Palavra, dentre todos os filmes de Dreyer, é, sem dúvida, o que leva mais longe a sua reflexão fundamental sobre o poder da fé e o valor da vida. Quem realiza, porém, o milagre não é o Johannes, tomado por sua loucura, mas o Johannes que voltara à sua normalidade, agora um homem comum, mas pleno de fé, para fazer suas as palavras de São Paulo, as de que a fé é superior ao amor. 

KAJ   MUNK
O filme tem como base uma peça teatral de Kaj Munk, pastor e dramaturgo muito conhecido à época nos países escandinavos, fuzilado pelos nazistas em 1944. Unanimemente considerado como uma obra-prima, o filme explora questões como o poder da fé, do amor, da vida sobrenatural, com um tratamento realista, objetivo. Toda a plateia presente no festival de Veneza de 1955 aclamou A Palavra, considerado-o um dos mais belos filmes em preto e branco já produzidos, aclamação confirmada sempre que exibido em festivais pelo mundo afora. Merecidamente recebeu o prêmio máximo, o Leão de Ouro.

Dreyer (1889-1968) começou a filmar na década de 1910, estendendo suas atividades até os anos 60. Sempre visto como um dos maiores cineastas da história do cinema pela crítica dos grandes centros cinematográficos do mundo, considerada a totalidade de sua obra. Dois filmes, porém, parecem ser responsáveis por essa consagração, A Paixão de Joana d´Arc (1925) e A Palavra (1955).


A   PAIXÃO   DE   JOANA   D'ARC

Dreyer nasceu (3 de fevereiro) em Copenhagen como filho bastardo. Sua mãe era uma empregada doméstica de nacionalidade sueca. Sem condições de criá-lo, entregou-o a um casal, Dreyer, sendo a criança registrada com este nome de família. O meio em que o menino passou a viver era muito severo, luterano, rígido, gente silenciosa e fechada. Embora Dreyer tivesse afirmado mais tarde que o ambiente de sua infância e juventude não o tivesse influenciado diretamente, não há como negar a forte presença dos temas religiosos e das questões de família no seu cinema.

Considerado aluno brilhante, Dreyer acabou se afastando de sua família. Começou a trabalhar em  atividades burocráticas, indo depois para o jornalismo, chegando a fundar um jornal. Interessou-se por aeronáutica e por cinema, ingressando nos estúdios da Nordisk Film. 




Começou escrevendo títulos e legendas, depois roteiros. Seus primeiros créditos em filmes datam de 1914 (Abaixo as Armas). Passou para a edição de filmes, realizando em 1918 a sua primeira obra, Presidente. A dispensa de cenários grandiosos e nada de maquiagem para os atores, a busca da realidade e da naturalidade, marcas suas, já apareciam nessa primeira produção.

Na época, seus filmes foram considerados muito sombrios, tanto pelos temas como pelo tratamento que lhes dava. Aproximou-se do cinema sueco, alemão e francês. Em 1928, foi convidado, pelos franceses, para dirigir A Paixão de Joana d´Arc. Os mais famosos planos fechados e close-ups do cinema estão neste filme, estudado sempre por todos os grandes diretores, em várias épocas, até hoje. 

Entre 1930-1940, realizou inúmeros documentários. Só depois de terminada a guerra, conseguiu filmar A Palavra, que o consagrou como diretor. Seu último filme data de 1964, Gertrud. A filmografia de Dreyer não é extensa, mas é excepcional, não chegando a quinze filmes de longa metragem. Destaques: Leaves from Satan´s Book (1919), Mikael (1924), The Vampyr (1932), além naturalmente dos já citados A Paixão de Joana d´Arc (1929) e A Palavra (1955).




A obra de Dreyer é notável por sua rigorosa simplicidade, sets de filmagem austeros, limitado número de shots, um cinema minimalista. A prematura morte de sua mãe biológica e a distância emocional de sua mãe adotiva estão presentes na caracterização de alguns personagens femininos de seu cinema no que eles representam, ainda que idealmente, propostas existenciais de auto-sacrifício e opressão.

ROBERT   BRESSON
Dreyer sobreviveu a todas as revisões críticas e mesmo seus filmes que foram rejeitados quando de seus lançamentos acabaram reabilitados nos anos seguintes. Como cineasta, Dreyer é incomparável. Contudo sempre será possível aproximá-lo de um Robert Bresson não só pela temática religiosa como pelo seu ascetismo, pelo seu rigor absoluto. Outro que poderia conviver com Dreyer é Yasujiro Ozu, grande mestre japonês.
PAUL    SCHRADER
Não foi por outra razão que Paul Schrader, roteirista de Martin Scorcese (Motorista de Taxi e Touro Indomável), um bom estudioso do cinema, escreveu uma dissertação de doutorado unindo os três diretores num trabalho que intitulou Transcendental Style on Film.



Em Dreyer, o ser humano é sempre observado psicologicamente e sua dignidade é defendida contra qualquer intolerância, qualquer tratamento injusto (Vampiro, Dias De Ira, Páginas do Livro de Satã). Os temas são religiosos, como o da ressurreição em A Palavra; ele situa seus personagens entre o temor e a esperança, isto é, no espaço teológico, como o definiu Spinosa. Os seres humanos vivem muitas vezes apavorados (principalmente nos meios religiosos estritos como o temos, por exemplo, no luteranismo) diante da morte (Bergman é outro que poderia fazer companhia aos três diretores acima mencionados). Precisam de alguma transcendência para se equilibrar. Este o espaço religioso, soteriológico, onde as religiões entram como mistificação ou ideologia, de um lado, ou como possibilidade de superação da mediocridade e da contingência da vida humana, de outro. Buñuel se coloca na primeira hipótese. Dreyer, na segunda. Mesmo para os agnósticos, para os ateus, para os que consideram a morte como um fim último, os filmes de Dreyer são importantes porque se trata de um homem que sempre procurou ser autêntico. Essa autenticidade transparece sempre. Seus filmes vêm de dentro, são viscerais e mentais, totais. 

O agnosticismo, lembro, é uma doutrina que reputa inacessível ou incognoscível ao entendimento humano a compreensão dos problemas propostos pela metafísica ou religião (questões como a existência de Deus, o sentido transcendente da vida, do universo. Isto porque todas estas questões ultrapassam o método empírico de constatação e comprovação científica. 


INGER,    NIKKEL,     JOHANNES

O estilo de Dreyer combina movimentos lentos de câmera, firme direção de atores, iluminação difusa e contrastada, utilização do silêncio como valor dramático e progressiva dramatização. Famosa é a sua contenção, isto é, dizer muito com pouco, economia em benefício da profundidade, um cinema para poucos, enfim, que podem usufruí-lo como técnica elevada à plenitude, domínio da linguagem a serviço de uma mensagem única, pessoal, pensada, meditada, honesta.



Ao morrer, Dreyer deixou o roteiro de um filme que gostaria de ter feito, Medeia. Homenageando-o, Lars von Trier, atuante cineasta, em plena atividade, recuperou esse roteiro e fez o filme, lançado em 1998, uma das grandes realizações do moderno cinema dinamarquês. 


SOREN    KIERKGAARD
Umas poucas palavras sobre Soren Kierkgaard (1813-1855) nos ajudarão a abordar melhor o filme de Dreyer. Colocando-se frontalmente contra o sistema filosófico objetivo, universalista, de Hegel  e outros, Kierkgaard proclama a verdade da subjetividade, pondo em realce a existência individual com todas as suas contradições, seu sofrimento, suas angústias, o ser humano enfim a viver entre a liberdade e a falta. Sua influência foi muito grande sobre os filósofos da existência, ateus ou cristãos (Heidegger, Sartre, Jaspers, K.Barth), dentre outros, e sobre a renovação da teologia protestante. Kierkgaard é considerado fundador do Existencialismo como corrente filosófica. Suas análises da angústia, da solidão e do destino levam a uma filosofia do homem diante do divino, do tempo e da eternidade.

Dreyer: os rostos, observados até que eles revelem (traindo-se?) os segredos do ser escondidos; o mistério, de súbito, tornado aparente, exposto à luz; o silêncio das fermentações e das origens, assim, talvez, se pudesse caracterizar o seu cinema. Despojado até a abstração, rigoroso na busca da única realidade que importa, a da alma, seu estilo permite que o coloquemos ao lado (ou acima?) dos grandes cineastas, escritores, pintores, escultores, artistas, enfim, que levaram a análise da situação humana às últimas consequências.


DREYER    NO    SET   DE    FILMAGEM

Evidentemente, A palavra é um filme que sempre permaneceu circunscrito no âmbito dos meios cinematográficos mais cultos e dali alcançou a intelectualidade de muitos países. O tempo vem nos demonstrando que, apesar disso, o filme é vital e ocupa uma posição privilegiada não só na história do cinema, mas a transcende para colocar quem o vê diante de questões sempre fundamentais para o ser humano, que podem ir além do interesse religioso.

Três são para mim as razões que encontro em A Palavra para entendê-lo assim: o poder da fé, há muito colocado sob desconfiança e ceticismo, quando não abertamente ridicularizado pelo mundo moderno, que pode realizar milagres; a constatação de que esse poder pode permanecer intacto nos seres mais ingênuos e desarmados, ainda que manipulável; e a ideia de que o verdadeiro pensamento religioso deve estar acima de qualquer divisão.


INGMAR    BERGMAN
Fica claro que A Palavra introduz, sob o ponto de vista histórico, um valor novo que desde o século XIX incomodava bastante a intellighentzia nórdica, o obtuso entendimento dos luteranos do norte com relação aos aspectos morais da prática religiosa e a liberdade de expressão. Uma insatisfação, aliás, que Bergman nunca deixou de apontar em todos os seus filmes, principalmente os realizados a partir da década de 1950. O hino à vida com que Gustav Adolphe Ekdhal (Jarl Kulle) encerra Fanny e Aleksander é uma comprovação que, acredito, não precisa ser explicada. 


DISCURSO    DE    GUSTAV   ADOLPHE    EKDHAL

A sequência do retorno de Inger à vida (milagre ou morte aparente; Dreyer deixa o problema para nós)  é também uma razão que acrescento às três acima mencionadas, pois ela dá corpo a uma afirmação, por parte de Dreyer, dos valores da vida,  melhor dizendo da carne, diante da morte e das hipotéticas promessas de conquista de um paraíso depois dela, feitas pelas religiões patriarcais, o luteranismo, no caso. Uma celebração do aqui e do
INGER    E    MIKKEL
agora. Inger é a mulher que retorna à vida, não para celebrar o reino dos céus, mas para celebrá-la materialmente, fisicamente. Como entender o comportamento da ressuscitada? A avidez com que ela se enlaçou no marido, repetindo “vida”, “vida”, não deixa dúvidas em que nível da existência humana Dreyer quis inscrever a sua mensagem. Inger, que a rigor já era a única “força” positiva no filme, voltou do Outro Lado para nos revelar, com maior ênfase, sob o ponto de vista social ou religioso, a verdade que sempre procurara viver naquele mundo tão cheio de conformismo, rotinas e acomodação. 


A atitude de Inger ao retornar à vida poderá ser talvez melhor entendida se a aproximarmos de um episódio da mitologia grega, onde encontramos, em grande parte, a base dos comportamentos arquetípicos do ser humano na cultura ocidental. Refiro-me a uma
AQUILES
passagem do mito em que os deuses concederam a Aquiles, o maior dos guerreiros, o privilégio de escolher a sua morte: morrer jovem, glorioso, ou morrer velho e esquecido, anonimamente. Aquiles preferiu a “morte jovem” para ser lembrado como o maior dos guerreiros, o mais destemido e belo dentre todos. Assim aconteceu. O comportamento do filho de Peleu e Tétis tipifica o que chamo de complexo de Aquiles: o daqueles que abrem mão da vida em nome de uma glória futura (caso de Aquiles), de um conhecimento absoluto ou da conquista de um paraíso para ganhar a vida eterna, já que, com relação a esta última hipótese, segundo a moral cristã, a verdadeira vida só começa depois da morte.


EMPÉDOCLES
Com relação à segunda hipótese, a da aquisição de um conhecimento absoluto, este comportamento poderia, mais propriamente, ser chamado de complexo de Empédocles. Explico-o, abrindo um justificado parêntesis no desenvolvimento do meu tema central, já que Empédocles (etimologicamente, do grego, empedos, forma sólida, e kleos, glória, renome, barulho) é uma das figuras mais fascinantes da antiga filosofia grega e porque sua história tem algo a ver com o que aqui vem sendo exposto: nasceu e viveu em Agrigento entre 483 e 424 aC. A tradição fez dele um tipo orgulhoso e excêntrico, que arrastava multidões com os seus discursos. Desenvolveu, dentre outros itens filosóficos importantes, a teoria dos quatro elementos universais e a ideia do devenir cíclico do universo dentro de uma alternância em que ora prevalece Philia (Amor - União), ora prevalece Neikos (Ódio - Separação). A tradição nos conta que, para melhor conhecer as teorias que divulgava, Empédocles, seguido pelos habitantes da cidade, que o celebravam com cantos e hinos, dirigiu-se às montanhas e mergulhou na cratera do vulcão do monte Etna.

Mas, voltando a Aquiles, o meu relato prossegue quando Ulisses, conforme está na Odisseia (XI, 478-481) teve que descer ao Hades para receber informações sobre o caminho que o levaria de volta à sua pátria. Lá encontrou Aquiles como um eidolon, a forma que tomavam as almas dos que morriam quando para lá se encaminhavam. Dirigindo-se à alma do antigo companheiro morto, Ulisses celebrou-o como um herói sempre lembrado, de kleos imperecível, o maior dos guerreiros gregos. Abúlica e desanimada, a alma de Aquiles respondeu-lhe que, se pudesse, de bom grado renunciaria ao seu kleos, pois as almas no Hades, como podia constatar, não eram mais que sombras, não eram nada sem o corpo físico. Por isso, apesar de tudo,  aceitaria voltar, mesmo na pior das condições sociais terrenas, como um servo.

Eis, no que nos interessa, a resposta da alma de Aquiles a Odisseu (Ulisses):   
      
“Ora, não venhas, solerte Odisseu, consolar-me da morte,
Pois preferira viver empregado em trabalhos do campo
Sob um senhor sem recursos, ou mesmo de parcos haveres, 
A dominar deste modo nos mortos aqui consumidos.”  
                                                                (trad. C.A. Nunes)


Empédocles até hoje, ao que se saiba, não nos deu notícias quanto à confirmação de sua doutrina. Quanto a Aquiles, os poetas gregos, certamente para aliviar o seu sofrimento, inventaram uma história de que sua mãe, Tétis, apoderou-se de seu corpo reconstituído e o transportou para a Ilha dos Bem-Aventurados, onde ele passou a viver feliz, divertindo-se com as suas armas e jogos guerreiros, participando de um eterno banquete.


BRIGITTE    FEDERSPIEL   (INGER)    E    DREYER

A única que parece ter superado o poder  dos complexos (chamemo-los como se quiser), diante dos quais o ser humano se mostra sempre tão impotente, foi certamente, pelo milagre da fé e pela intervenção de Johannes, Inger, conforme nos conta Carl Gustav Dreyer em seu excepcional filme.   


*Este artigo é dedicado ao meu dreyeriano amigo F. Menezes.