MARTIN SCORSESE |
Sentindo-se provavelmente encorajado por esses sucessos, Scorsese resolveu apresentar a sua cidade de um outro modo, valendo-se do seu grande convívio com o mundo da música popular norte-americana, uma ligação que alimentava desde a sua juventude. Tanto esse contacto lhe era importante que em 1976 havia filmado o último concerto da banda The Doors, do qual participaram grandes nomes do rock. O filme, entretanto, só foi lançado em 1978, com o título The Last Waltz, sempre considerado como um dos melhores já feitos sobre o rock.
A realização de New York, New York, se encaixava também, por outro lado, num importante momento histórico da vida americana. Apesar da crise do petróleo (década de 1970-1980), do vexaminoso afastamento de Richard Nixon da presidência do país, da derrota no Vietnam e de uma certa distensão política obtida com a URSS (anulada depois, na década de 1980, com o projeto Guerra nas Estrelas, de Ronald Reagan), era preciso colaborar de algum modo para que a sociedade norte-americana melhorasse a sua autoestima e, afinal de contas, o mais importante, que o mercado consumidor se mantivesse aquecido.
Não foi por acaso, aliás, pelas razões apontadas, que a década de 1970-1980 ficou conhecida como a “era do individualismo”.
Quanto à música popular, descobriu-se que a reabilitação das big-bands e fazer com que as pessoas voltassem às pistas de dança poderiam ajudar bastante. Não foi por acaso também que Os Embalos de Sábado à Noite, com John Travolta, explodiu em 1977, ano em que Elvis Presley morria. Donna Summer, empurrada por Moroder e Bellotte, assumia por essa época, incontestavelmente, a condição de rainha da disc music, criando-se um novo balanço para a música popular norte-americana consumida pelo grande público.
Uma das ideias centrais de New York, New York é exatamente a da revalorização das big bands, muito enfatizada já na abertura do filme de Scorsese pela apresentação da banda de Tommy Dorsey. Robert De Niro e Liza Minelli interpretam, respectivamente, Jimmy Doyle, um saxofonista, e Francine Evans, uma cantora que procurava o estrelato, que se encontram em New York quando das festas pelo término da segunda guerra mundial. O clima é de euforia, mas o relacionamento dos dois revela-se no transcorrer do filme bastante tumultuado, tudo conforme o roteiro de Earl Mac Rauch e de Mardik Martin, com base numa história do primeiro.
Separados a partir de determinado momento do filme, principalmente por culpa do comportamento de Jimmy, que beirava a psicopatia, ele e Francine, que haviam inclusive tido um filho, seguem cada um o seu caminho, separados. Ele, apesar de tudo, acaba como band leader e ela como grande star, estourando ao cantar, já no final do filme, o famoso tema New York, New York, valendo-se para tanto de uma composição físico-coreográfica e vocal que se tornaria a sua marca registrada desde Cabaret.
Nascida em 1946, Liza Minelli, àquela altura, era o nome que Scorsese precisava para o seu filme. Cinco anos antes, ela havia demonstrado o seu grande talento como cantora e dançarina no papel de Sally Bowles em Cabaret, um dos melhores musicais de toda a história do cinema. Embora contida em grande parte do filme de Scorsese, Liza se soltou ao cantar New York, New York, o tema musical que ficaria para sempre ligado ao seu nome, ainda que Frank Sinatra tenha depois se “apossado” dele.
FRANCINE E JIMMY |
No filme de Scorsese, não se sabe bem por qual razão, a autoria do tema New York, New York foi atribuída ao casal Jimmy-Francine, ele a música e ela a letra, uma bobagem certamente, já que todas as canções do filme, inclusive New York, New York, como se sabe, são de autoria da dupla John Kander e Fredd Ebb, da Broadway (o tema de New York, New York, lhes teria sido sugerido por um produtor de TV chamado Howard Huntridge), embora muitas vezes o supervisor musical do filme, o grande Ralph Burns, compositor, pianista e arranjador, também apareça como o seu autor.
LISA MINELLI - NEW YORK, NEW YORK
Se Boris Leven, o desenhista de produção, havia acertado a mão em West Side Story (1961), no filme de Scorsese a sua visão da New York dos anos 1940 foi fantasized demais, demasiadamente estilizada, pois teve que adaptá-la às filmagens em estúdio. Quanto aos figurinos de Liza, embora tenham recebido uma indicação (nomination), a coisa também não ajuda, pois eles se inspiraram principalmente no que Judy Garland, uma das mais mal vestidas atrizes do cinema, usou em muitos de seus filmes. Além dos figurinos, Liza copiou os penteados de sua mãe, usando para tanto o mesmo cabeleireiro que a penteava nos tempos da Metro..
O tema musical New York, New York só decolou quando Frank Sinatra, em 1979, se “apossou” dele, depois incluído no álbum Past Present Future, em l980, transformando-se, a partir de então, num
hino não-oficial da cidade, tudo muito bem utilizado pelos meios de comunicação. Foi retomado, com ênfase, um antigo apelido da cidade, The Big Apple, nome de um prêmio de corridas de cavalos que nela se realizavam, e utilizado por músicos de jazz como símbolo de sucesso, associando-o a alguns dos chavões que desde então acompanham New York: a cidade que pode satisfazer todos os desejos humanos, a cidade que nunca dorme, a cidade que colocará no topo do mundo qualquer pessoa que nela faça sucesso etc.
THE BIG APPLE |
Em pouco mais de trinta anos, as discutíveis euforia e exuberância do filme de Scorsese, que felizmente voltou a se aproximar da música através de documentários, no que é mestre, o cinema, com um filme de 2011, desmontou a visão otimista que ele e Liza Minelli nos haviam deixado de New York. O filme é de um inglês, Steve McQueen, premiado tanto por Hunger (Cannes, 2008, melhor diretor) como recentemente, 2014, por 12 Years a Slave (Oscar), seu terceiro filme.
Muito bom nos curtas-metragens (Bear, de 1993, foi o seu primeiro), ele declarou que dentre as suas principais influências contavam-se Andy Warhol, Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, Jean Vigo, Buster Keaton, Carl T.Dreyer, Robert Bresson e Billy Wilder. Excelentes companhias, sem dúvida, que lhe fizeram muito bem como Shame o comprova, seu segundo filme, interpretado por Michael Fassbender e Carey Mulligan nos principais papéis.
STEVE MACQUEEN |
Muito bom nos curtas-metragens (Bear, de 1993, foi o seu primeiro), ele declarou que dentre as suas principais influências contavam-se Andy Warhol, Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, Jean Vigo, Buster Keaton, Carl T.Dreyer, Robert Bresson e Billy Wilder. Excelentes companhias, sem dúvida, que lhe fizeram muito bem como Shame o comprova, seu segundo filme, interpretado por Michael Fassbender e Carey Mulligan nos principais papéis.
O filme conta a história de Brandon, um very good-looking executivo, com boas roupas e de maneiras delicadas, mas um viciado em sexo, que recebe a visita de sua desmazelada e abúlica irmã, Sissy, que passa a viver com ele por uns tempos, na procura de uma oportunidade para se tornar cantora em New York. Brandon
(Fassbender), além de gostar do gênero pornô e de masturbar-se, tem como obsessiva atividade, fora do seu ambiente de trabalho, o sexo casual, com os mais variados parceiros na noite de New York. O filme é decididamente dark, desenvolvendo-se a ação no metrô, em bares, baladas, elevadores, em banheiros públicos, corredores de inferninhos e ruelas mal iluminados nos fundos de restaurantes. Onde quer que Brandon vislumbre uma possibilidade de entrar em ação, nada detém a sua compulsão, que parece incomodá-lo bastante como está nas entrelinhas do filme, mas da qual ele, resignadamente, não sabe como se livrar.
BRANDON ( MICHAEL FASSBENDER ) |
A crítica que se aproximou do filme de Steve McQueen encarou-o somente sob o viés psicológico. Brandon e Sissy (ao vê-la no filme, não posso deixar de pensar em Romy Schneider no inacabado filme
de Henri-Georges Clouzot, L´Enfer, tentando destruir a sua imagem de Sissy, a inocente e romântica princesa austríaca) são doentes, vítimas de patologias mentais. Explica-se: desde que a Psicologia entrou em moda a partir de meados do século XX, a Psicanálise principalmente, as explicações religiosas e sociológicas pelos desencontros do indivíduo com a vida e a sociedade foram substituídas pelas psicológicas: deixamos de falar em pecado, amoralidade ou imoralidade, irreligiosidade, delinquência, infração, crime para nos referirmos tão somente a doenças mentais, narcisismo, egolatria, erotomania, parafilia, sadomasoquismo, bondage, voyeurismo, fetichismo etc. A única referência a problemas sociais que se tem no filme se resume a uma fala de Sissy quando ela tenta fazer com que o irmão aceite mais naturalmente a relação entre ambos: ela diz que afinal eles, ela e Brandon, não eram tão ruins assim, o problema é que eles apenas tinham vindo de um lugar que não era bom.
Quando Sissy invade o mundo de Brandon, um novo componente é acrescentado ao filme. Problemas de privacidade surgem inevitavelmente, a nudez entre os irmãos, a invasão de espaço, começamos a pensar em incesto, talvez em suicídio... Quando penso que em alguma de suas entrevistas, McQueen declarou que os norte-americanos eram reprimidos sexualmente, ficou para mim a pergunta: gozação, provocação ou concessão ao público médio norte-americano o título de Shame (Vergonha) dado ao filme?
McQueen é um diretor refinado intelectualmente, culto, como o comprovam algumas das peças que fazem parte do soundtrack do filme, como as Variações de Goldberg, de Bach, interpretadas pelo rebelde e excêntrico Glenn Gould, o grande pianista norte-americano, ou de John Coltrane e Chet Baker, todos, num como noutro caso, joias raras para muito poucos, sem dúvida.
GLENN GOULD |
McQueen é um diretor refinado intelectualmente, culto, como o comprovam algumas das peças que fazem parte do soundtrack do filme, como as Variações de Goldberg, de Bach, interpretadas pelo rebelde e excêntrico Glenn Gould, o grande pianista norte-americano, ou de John Coltrane e Chet Baker, todos, num como noutro caso, joias raras para muito poucos, sem dúvida.
Por outro lado, o estilo de filmar de McQueen é bastante sóbrio, chamando a nossa atenção, como opção estética, as sequências longas, com a câmara imóvel, às vezes por longos minutos, uma opção que pode causar desespero ou náusea ao apressado espectador (obrigado dessa maneira a ver mesmo e, quem sabe, a criticar) acostumado à vertiginosa velocidade dos cortes no cinema americano, que, como se sabe, têm a finalidade de não deixá-lo pensar, de distraí-lo, se quisermos.
CAREY MULLIGAN - NEW YORK, NEW YORK
A grande revelação do filme, tanto para Brandon, numa grande interpretação de Fassbender, sem dúvida, mas que é literalmente engolida pela de Carey Mulligan, está na sequência em que ele leva Dave, seu chatíssimo chefe, para ambos verem Sissy cantar num bar New York, New York. Neste momento, voltamos a 1977, ao filme de Scorsese. Numa interpretação única, Carey Mulligan, com
aqueles closes no seu sofrido rosto, desconstrói, verso por verso, a letra e a interpretação de Liza Minelli, mostrando-nos uma cidade talvez ainda sedutora como The Big Apple para a realização das nossas fantasias materiais, mas na qual, hoje, estamos condenados inapelavelmente ao escapismo e à evasão, perdida para sempre aquela nossa inocência quando víamos os musicais da Metro. Cruel, paradoxal, impiedoso, vingativo, desagradável, qualquer que seja o adjetivo, se outro mérito não quisermos atribuir ao grande filme de Steve McQueen que fique pelo menos o registro da descoberta de uma cantora excepcional que, com esse filme, inscreveu seu nome na pequena e selecionada galeria dos cantores sem voz, dos anti-cantores, os cool singers brancos de jazz.
CAREY MULLIGAN |