sexta-feira, 28 de outubro de 2016

MITOLOGIAS DO CÉU -- PLUTÃO (4)





A Mesopotâmia, a chamada “Terra Entre Rios” pelos historiadores gregos, que corresponde mais ou menos ao Iraque de hoje, era em sua maior parte uma desolada planície de aluvião. Ficava fora dessa paisagem apenas uma parte de pântanos e brejos, com sua vegetação de caniço, onde os rios Tigre e Eufrates desaguam no golfo pérsico. O clima, de um modo geral, era (é) quente e seco. Não há minérios nem madeira para as construções, sendo o solo, se não receber cuidados especiais, árido e improdutivo.

Mas foi nessa região, no quinto milênio aC, que o homem se tornou, ao que parece, realmente civilizado. Um povo conhecido como sumério ergueu os primeiros centros urbanos na região, com uma vida opulenta e complexa. Foi esse povo que resolveu por primeiro tentar regularizar as relações entre o poder tribal e as necessidades políticas de se unir os grupos humanos dispersos pelos desertos em centros políticos poderosos. 



A unificação política veio acompanhada de uma grande engenhosidade técnica (a construção dos famosos zigurates, os templos em forma de torre), de grande especialização industrial e
ESCRITA CUNEIFORME
comercial para a época, ao lado de um excepcional desenvolvimento artístico. Importante também, para esse progresso urbano, que superava o do próprio Egito, a invenção de uma escrita, um sistema prático, que operou uma revolução no campo das comunicações. 

As ideias práticas dos sumérios, suas técnicas e invenções foram depois cultivadas pelos demais povos da Mesopotâmia, os babilônios, assírios e outros, difundidas de leste a oeste, imprimindo a sua marca em todas as culturas da antiguidade. O Antigo Testamento está cheio de referências aos povos mesopotâmicos. Visitada por historiadores e viajantes gregos e romanos, a região só voltaria a ser notícia por volta do séc.XII,
TEMPLO   EM   NÍNIVE
quando europeus começaram a fazer seus relatos sobre as ruínas que encontraram na planície entre o Tigre e o Eufrates. No século XIX, porém, quando uma verdadeira paixão pelas antiguidades orientais dominou a Europa, pesquisadores começaram a investigar os misteriosos vestígios das antigas cidades da região. Revelaram-nos eles, então, os esplendores da antiga Babilônia, de Nínive e de outros importantes centros urbanos da “Terra Entre Rios”.


A religião da antiga Mesopotâmia é, pelo menos até agora, a mais velha dentre as que nos oferecem documentos escritos. As crenças sumérias, transformadas em religião, asseguravam uma orientação espiritual e ética para os negócios humanos e para os transcendentes mistérios da vida e da morte. Os babilônios e os assírios, sucessores dos sumérios, adotaram a maioria dos seus deuses e das suas práticas religiosas.


ANKI    

A Terra, para os sumérios, era um disco achatado que formava um todo com o céu, dando-se a esse todo o nome de Anki (céu+terra). O espaço entre o céu e a terra era preenchido por uma matéria chamada Lil. Ao redor da Terra agitava-se o mar, infinito, sem repouso, sustentando miraculosamente o universo. A onipresença das águas deixou claro para os sumérios que elas estavam na origem de todas as coisas. 

Apsu era o nome desse elemento aquático primordial,  dele fazendo parte a água doce, o Apsu propriamente dito, e a água salgada, oceânica, chamada Tiamat. Desse elemento primordial saíram todos os seres, deuses e humanos. Além do Apsu, ficava o mundo infernal, algo muito semelhante à elaboração mitológica grega. 

O Apsu era personificado como uma espécie de grande abismo
TIAMAT   E   MARDUK
cheio de água que cercava a Terra, concebida como um planalto, às vezes montanhoso, acima da qual repousava a abóbada celeste. Era do Apsu que provinham as fontes que brotavam na superfície da Terra. Tiamat e Apsu eram considerados como um par fêmea-macho, apesar de confundidas as suas águas. 


Mesmo com o auxílio dos deuses, inclusive de divindades intermediárias, as chamadas divindades pessoais, havia um guardião que velava pelo crente e por sua família. Quanto aos seres humanos, eles só podiam contar com uma certeza, a da morte e de sua descida ao submundo. Em geral, essa região era concebida como um vasto espaço cósmico que ficava sob a superfície da terra, correspondendo mais ou menos ao céu, acima da Terra. As almas dos mortos desciam às profundezas desse mundo subterrâneo, devendo para tanto atravessar de barco um grande rio, concepções muito semelhantes de onde os gregos retiraram talvez muitas das suas para construir o seu Hades. 

ENKI  OU  EA
Impossível escapar desse mundo protegido por sete muralhas, mesmo no caso de uma divindade. A grande deusa Ishtar, que imprudentemente se havia aventurado a descer a esse mundo, abandonando a cada etapa da descida, um peça de sua roupa, viu-se prisioneira dele. Se não fosse a intervenção de Ea ou Enki, grande divindade do Apsu, detentora de grande sabedoria e de poderes mágicos e encantatórios, Ishtar lá teria ficado até o fim dos tempos. 

A deusa Ishtar, personificação do planeta Vênus, também chamada
ISHTAR
Inana, era uma divindade muito mais ligada às tradições semíticas do que às suméricas. Ela aparecia associada tanto ao amor e à prostituição sagrada como à guerra. Para arrancar seu amante Tammuz, deus da vegetação, das colheitas especialmente, do mundo infernal, concebeu o audacioso projeto de descer ao Inferno. Chegando à presença de Ereshkigal, a soberana desse mundo, esta convocou seu auxiliar Namtaru e ordenou que ele encerrasse a deusa no seu palácio e liberasse, para que ela fosse atingida, sessenta doenças. Ea, contudo, intervindo, conseguiu libertar Ishtar e seu amante.



TAMUZ


GIGAMÉS

Às vezes, muito raramente, as divindades podiam conceder às almas que desciam ao Inferno o privilégio de, por uns momentos, subir à luz. Assim, Enkidu, o companheiro do herói Gilgamés foi autorizado a revelar a seu amigo o que se passava no reino das sombras. A descrição que ele nos deixou foi desoladora. No mundo infernal, de trevas absolutas, as almas que lá viviam tinham o nome de edimmu e usavam uma roupa alada para lá viver. Seus alimentos eram a poeira e a lama. Só alguns, por uma deferência especialíssima, tinham direito a um leito e um pouco de água pura. 


EDIMMU

Além das almas dos mortos, eram encontradas no Inferno, em cativeiro, divindades que haviam sido vencidas pelos deuses. A
ANU
principal destas divindades chamava-se Qingu, chefe dos exércitos de Tiamat e seu amante. Vencidos por Marduk, Tiamat e a sua monstruosa guarda pessoal foram exterminados e Qingu foi aprisionado no mundo infernal. Com essa vitória, como se sabe, Marduk se apoderou das Tábuas do Destino, das quais Tiamat se havia apossado, e as entregou a Anu (An), a grande divindade celeste. 

ERESHIKIGAL
Reinava sobre o mundo subterrânea a deusa Ereshkigal (etimologicamente, Rainha do Grande Mundo Subterrâneo), primitivamente a sua única e maior autoridade. Era ela mãe das deusas Nungal e Namtar, filhas, respectivamente, pelo lado paterno, de Birtum e de Enlil. Um dia, porém, o deus Nergal, “o senhor da grande residência”, divindade associada às guerras sob o nome de Erra, e ligado à destruição pelo fogo, às
ENLIL  E  NILIL
febres e às pragas, assaltou o mundo infernal com catorze demônios que ele postou nos seus diferentes portões. A fim de obter a paz, Ereshkigal consentiu em tomá-lo por esposo. Assim, Nergal, até então um deus ligado à destruição e às doenças, tornou-se baal (senhor) dos mortos. Ele tem por símbolo tanto uma espada como uma cabeça de leão. Assessora-o o deus Namtaru, como divindade das pestes.


Do seu palácio com sete portões sempre trancados, governavam o Inferno  o sombrio Nergal em companhia de Ereshhkigal, auxiliados por uma grande quantidade de divindades menores, inclusive os sete Anunnaki, que agiam como juízes. Além disso, havia tropas de demônios, chamados galla, com poder de polícia. O grupo inteiro, exceto os galla, recebia, para “viver” nesse mundo, tudo o que um ser humano precisava normalmente para viver na terra, comida, roupa, utensílios diversos etc.



ANNUNAKI

Os Anunnaki, etimologicamente, os nascidos antes, eram assim chamados porque faziam parte de um grupo de divindades primitivamente nascidas mas que não tinham se individualizado, diferenciado, não tendo por isso nomes. Prestavam serviços aos deuses. Seiscentos deles prestavam serviços a Nergal. Nos céus, atuavam apenas trezentos.

GESTINANA
No Inferno mesopotâmico não havia a rigor nenhum julgamento ou avaliação das qualidades morais dos mortos. O morto simplesmente se apresentava a Ereshkigal, que pronunciava a sentença, enquanto seu nome era anotado na Tábua por Gestinana, escriba do mundo infernal. Nesse cenário, o deus Ningiszida funcionava como mestre-de-cerimônias. Pabilsag era o deus-administrador, Namtar seu ministro ou mensageiro e Netar era o porteiro. 


GILGAMÉS

Ao longo dos séculos, vários trabalhos literários refletiram as mudanças pelas quais o cerimonial do Inferno mesopotâmico passou. Os textos mais notáveis estão no conhecido poema de Gilgamés, A Descida de Inana ao Mundo Subterrâneo, e no épico babilônico sobre Gilgamés onde se inclui o sonho de Enkidu sobre a sua morte e outros.

 O mundo infernal era conhecido pela expressão “a terra da qual ninguém retornava”. Para nele penetrar era preciso passar sucessivamente por sete portões, abandonando em cada uma deles uma peça de roupa. Fechada a última porta, o morto, isto é, sua alma, ficaria aprisionado para sempre na “morada das trevas”. 

Acreditava-se na antiga Mesopotâmia que a imortalidade estava reservada aos deuses e que a morte era o inevitável quinhão dos homens. Na concepção suméria, o morto quando ia para o inferno ficava obrigado a consumir poeira e lama, como se disse. Já na concepção assiro-babilônica, ele ficava à mercê de temíveis demônios  e monstros. 

Estas concepções contrapunham-se, sem dúvida, de modo radical, às concepções egípcias e às práticas de embalsamamento e mumificação. Este “pessimismo” mesopotâmico é atribuído provavelmente às duríssimas condições de vida das primeiras tribos que se instalaram no sul da Mesopotâmia. Com efeito, vivendo na aluvial planície suméria, eles pouco mais tinham para subsistir do que argila, embora com o tempo tenham criado uma grandiosa civilização.


GIDIM

As primeiras crenças relacionadas com a vida depois da morte admitiam que muitos seres humanos podiam sobreviver na forma de espíritos ou de fantasmas, passando a viver no mundo ctônico. Esses espíritos ou fantasmas eram chamados de gidim e deveriam ser reverenciados mediante determinado culto. As “condições de vida” dos gidim não poderiam ser consideradas como agradáveis. Eles precisavam receber constantemente oferendas de comida e bebida, pois, do contrário, se tornavam agitados, intranquilos, voltando do mundo infernal para perturbar os vivos. Era comum que os espíritos dos que haviam tido morte violenta voltassem para “agarrar” o seu assassino ou seus familiares. Para isso, o gidim entrava no corpo de suas vítimas, principalmente através do ouvido, enlouquecendo-as.  Só a magia poderia sossegá-los e assim mesmo com grande dificuldade.

A necromancia, a evocação dos mortos, era muito praticada, ganhando destaque na Babilônia. Questões sobre situações futuras poderiam ser propostas pelos necromantes aos espíritos nas sessões, ainda que tal prática sempre oferecesse algum perigo, principalmente se tivessem como objetivo a reversão de situações ou influências negativas. Atribuía-se também aos espíritos o poder de causar doenças, principalmente perturbações mentais.

O conhecimento que temos da vida além-túmulo dos mesopotâmicos deve-se sobretudo, como se disse, ao texto do poema sumério Gilgamés, Enkidu e o Mundo Subterrâneo. Parece certo que a prática de enterrar os mortos tinha por objetivo tanto a manutenção de um contacto com eles através de determinado culto e ritos (dar-lhes de beber água através de libações) como evitar que eles ficassem a perambular pela terra depois de mortos como fantasmas (gidims).

Em todas as religiões, como se sabe, acredita-se que há vários níveis de divindades entre o céu e a terra. No primeiro, vivem aquelas que têm relação direta com as manifestações celestes, fenômenos atmosféricos etc. e com a ordem cósmica. Constituem o topo dos vários panteões. Muitos próximos da terra, habitando geralmente o mundo subterrâneo, vivem umas divindades que sob o nome de demônios, seres sobrenaturais, espíritos etc., renegaram a luz e preferiram viver nas trevas.

As palavras para designar esses seres entre os mesopotâmicos eram rabisu (Suméria) e maskim (Acádia). Os mais recentes estudos sobre a civilização mesopotâmica nos dizem que os mencionados nomes tanto poderiam usados positiva ou negativamente. Os mesopotâmicos usavam expressões como Fora, maus rabisu! como Socorre-me, bom rabisu!, conforme o caso. 

Geralmente, maus demônios sempre foram concebidos como agentes executores da vontade maléfica dos deuses. Eles eram os encarregados de punir os humanos que incorriam no erro e no pecado. Estes maus espíritos eram idealizados sobretudo como entidades que agiam através do mau tempo, de catástrofes, tempestades, ventanias etc. Outra forma de atacar os humanos era a de causar-lhes doenças.




LAMATSU

Lamatsu era um demônio feminino, filha do deus Anu, que se situava acima da faixa onde atuavam os demônios comuns, que agiam sob as ordens de algum deus. Com Lamatsu era diferente, ela praticava o mal por iniciativa própria. Suas principais vítimas eram os fetos e os recém-nascidos. A morte pelo aborto era dela. Recém-nascidos, se atacados por ela, podiam inclusive morrer enquanto dormiam. Mulheres grávidas, se tivessem seu estômago tocado por ela, perdiam a criança. Muitas vezes, ela simplesmente sumia com a criança adormecida no berço.

Para se proteger contra os ataques de Lamatsu, as mulheres assim

PAZUZU 
que engravidavam passavam a usar uma cabeça de bronze de Pazuzu, na forma de amuleto. Esta deusa-demônio era representada sob a forma canina, com olhos enormes, corpo escamado, com componentes ofídicos e asas. Era reconhecida como um demônio do mundo subterrâneo. Era uma entidade protetora contra ventos pestilenciais que traziam epidemias. Era Pazuzu quem forçava Lamatsu a voltar para o Inferno (lembro que Pazuzu “apareceu” no filme norte-americano O Exorcista).


Enquanto divindades como Enlil, Utu, Eki/Ea promoviam o bem e a justiça, protegendo o homem, os fracos, as viúvas e os órfãos, os fantasmas, os espíritos e as divindades do mal, demônios como Udug, Lama, Alad ou Galla faziam o mal. Os mesopotâmicos  tinham também um demônio, Mimma Limnu (etimologicamente, tudo o que é mau), encarregado levar o mal a qualquer canto do universo.



REPRESENTAÇÃO   CÓSMICA

Temos notícias de que por volta do ano 1.000 aC os babilônicos já tinha perfeitamente definido um zodíaco com dezoito constelações através das quais a Lua e os planetas se movimentavam. Por volta do séc. VII aC (reinado de Nabucodonosor II), redesenhou-se o céu, ficando reduzidas as constelações zodiacais a doze. No oitavo setor zodiacal, denominado Arashama, relacionado com o mês Apindua, representado por um escorpião (girtab), os deuses infernais eram mostrados como senhores dessa região. 



ASTRÓLOGOS   MESOPOTÂMICOS
Sabe-se que os antigos mesopotâmicos adotaram o ano lunar de 12 meses lunares. De três em três ou de quatro em quatro anos era intercalado um mês para ser mantida a sincronização do calendário com o ano solar. 

O legado mesopotâmico alcançou o ocidente pelas vias do helenismo, do judaísmo e do cristianismo. Esse legado incluía noções astronômicas e astrológicas, as do círculo dividido em graus e a hora em minutos e segundos. As suas observações astronômicas permitiram que fossem criados os eixos equinociais e solsticiais, definida a regularidade das fases da Lua e desenvolvidos os conhecimentos que permitiram entender como  o céu e seus astros afetavam a vida na Terra, a humana de modo especial,  além de terem fixado eles, os mesopotâmicos, as primeiras designações das constelações zodiacais, adotadas até hoje.