quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

ESCORPIÃO (4)


HADES  ( GIOVANNI  DA  MODENA , 1379 - 1455 )

As três divindades sobre as quais discorremos  em Escorpião (3), conforme as culturas em que aparecem, “convivem”, cada uma a seu modo, com o Hades grego no signo de Escorpião. Sugerem todas, com as suas histórias, o inexorável e constante fluir das formas quando chegamos ao equinócio de outono, período em que, através da destruição, se prepara, no mundo natural, um futuro renascimento. É destas aproximações que decorrem  naturalmente as associações que podemos fazer entre o inferno (Hades) e o oitavo signo astrológico. Ligado à obscuridade, às trevas, à invisibilidade, o inferno, em todas as cosmogonias, sempre apareceu “em baixo”, ctônico, subterrâneo, lembrando o frio, as trevas, as sombras, a solidão.

As ligações do número oito com o renascimento estão presentes em várias tradições. Na astrologia, depois do sete, o número do repouso provisório, o oito indica uma possibilidade de ressurreição sob uma nova forma. Uma das mais conhecidas ilustrações do que aqui se diz, sob o ponto de vista astrológico, é a referência que podemos fazer aos signos de Libra (7), Escorpião (8) e Sagitário
CASULO
(9), aparecendo Escorpião como o casulo, invólucro no qual a crisálida (em grego, krysallis, dos), a larva do inseto, adormecida e entorpecida, se transforma, ocultamente, em borboleta. É por esta razão que a borboleta sempre foi considerada como um símbolo do renascimento. Na antiguidade grega, borboletas esculpidas em túmulos eram indicações de crenças reencarnacionistas.

Quanto ao número oito, é preciso lembrar também que ele aparece em muitas doutrinas orientais, como a budista, por exemplo, através da chamada via óctupla, como um símbolo de
PIA  BATISMAL
SÉ VELHA DE COIMBRA
renascimento. Na tradição ocidental, grega, não é por outra razão que o número oito sempre apareceu associado a Dioniso, o deus das metamorfoses. Não podemos esquecer ainda que as antigas pias batismais, por essa mesma razão, tinham a forma octogonal, na qual o oito se compunha do quatro (símbolo do corpo material), do três (símbolo da alma) e do um (símbolo do divino). Assim, era o número oito, para os primitivos cristãos, aquele que reunia as condições necessárias ao aparecimento de um novo ser pelas águas do batismo


DESCIDA  AOS  INFERNOS ( JEAN  LE  TAVERNIER , ? - 1462 )

A chamada “descida aos infernos” de que nos falam os mitos corresponde na vida cósmica aos primeiros dias outonais, prelúdio do inverno por oposição à ascensão, que ocorre em março no equinócio da primavera. Em todas as religiões de mistério, a descida aos infernos é imagem da morte alegórica, o abandono pelo iniciado (mystes) de sua natureza profana na obscura cela da reflexão, a passagem do negro (nigredo) ao branco (albedo) dos alquimistas. 


CORÃO
O Corão faz do inferno uma entidade devoradora, atribuindo-lhe características de fornalha, de incêndio, de tortura e de abismo sem fundo. As suas sete portas são reservadas aos que não adoraram o verdadeiro Deus e, que, portanto, viveram em pecado. Isto é, os cristãos, os judeus, os magos, os idólatras, os hipócritas e os sabeístas (seguidores do sabeísmo, seita judaico-crista, baseada na magia e na adoração dos astros, do antigo reino de Sabá, sudoeste da Arábia).

O fogo devorador do inferno, em todas as tradições, o fogo que consome e destrói simboliza, dentre outros sentimentos de natureza passional, o remorso, a culpa, o medo do sofrimento moral e a inveja. O inferno católico, como o Tártaro grego, tem um caráter definitivo ao representar o desespero e o endurecimento no pecado e no erro pela total e irremediável incapacidade de mudança. 


HADES  ( PIETER  BRUEGEL , O VELHO , 1525 - 1569 )

As modernas psicologias, fazendo coro a tudo isto, representam o inferno do inconsciente como um mar noturno que é preciso atravessar, isto é, partir de uma situação consciente, no geral muito limitada, mas dolorosa invariavelmente, para que uma outra margem, uma outra forma de vida seja atingida. Este processo se confunde com o próprio processo de individuação que tem início pela descida de uma pessoa à sua interioridade, ao mesmo tempo uma regressão e a busca de uma renovada forma. 

Algumas correntes da moderna psicologia ocidental, numa “leitura” evidentemente retirada da mitologia grega, consideram o inferno um símbolo do recalque, um mecanismo de defesa que teoricamente tem por função fazer com que as exigências pulsionais, condutas e atitudes, além dos conteúdos psíquicos a elas ligados, passem do campo da consciência para o do inconsciente, ao entrarem em choque com exigências contrárias. Se num primeiro momento Hades é a divindade  que tem a ver com essa operação, ele pode, num segundo momento, significar como Plutão a reconstituição radical da personalidade vitimada pelo recalque sobre novas bases, pela rejeição dos elementos deletérios ou supérfluos que nas suas profundezas se encontram. 

Esta reconstituição costuma muitas vezes ocorrer subitamente, de modo imprevisível, uraniano. Qualquer que seja este processo, porém, instantâneo ou demorado, Plutão, astrologicamente, ao comandá-lo, é comumente representado com a cornucópia nas mãos, a nos mostrar que é nesse mundo subterrâneo (inconsciente) que estão todos os valores de que necessitamos, porém mal repartidos ou mal distribuídos. Por isso, a cercá-lo imagens de germinação, de passagens da morte à vida, de metamorfoses. A maieutikê (maia, em grego, parteira) socrática, a arte de fazer com que os espíritos trouxessem à luz, ao consciente, verdades que guardavam desconhecidas ou esquecidas dentro de si, é astrologicamente um método escorpiano para se chegar à “verdade”. Por determinadas perguntas feitas ao seu interlocutor, Sócrates o fazia “descobrir” verdades que estavam dentro dele. O filósofo levava-o a essa descoberta pela reminiscência, anamnese, partindo de dados matemáticos elementares ou de verdades morais universais. A Psicanálise freudiana é, neste sentido, um método maiêutico.

Ainda que muitas tradições antigas tenham do inferno concepções muito variadas, a maior parte delas o imagina como um subterrâneo misterioso e terrível onde as almas dos defuntos suportam sofrimentos indescritíveis como punição por crimes e pecados cometidos sobre a terra. As penas e sofrimentos infernais são estabelecidos por um tribunal, imagem simbólica da consciência, de um eu superior, como o encontramos nas psicologias freudiana e jungiana. 

Além disso, o reino dos mortos sempre foi organizado em vários andares, etapas que deveriam ser superadas conforme o nível de evolução das almas. Os romanos chegaram a um refinamento tal da ideia infernal  que o organizaram em vários degraus, etapas diferentes, onde eram acolhidos os natimortos, os suicidas, os amantes infiéis, os matricidas etc.


DIS PATER
Antes das infiltrações gregas, antigos povos da península itálica, com base em mitos etruscos, davam o nome de Orco (esconder, ocultar) não só ao reino subterrâneo dos mortos, mas à divindade que o governava. Posteriormente, devido ao sincretismo greco-latino, tendo por modelo o Plutão grego, os romanos passaram a dar o nome de Dis ou Ditis à divindade regente desse reino (dis, em latim, rico, opulento, abundante).



Os povos nórdicos, que possuem talvez o mais “escorpiano” reino dos mortos, davam, como os gregos também o faziam, o nome de Hel ao seu mundo infernal, sendo esse também o nome da divindade que o governava (vide a propósito o nome do computador que “trabalha” no filme de Stanley Kubrick, 2.001 – Uma Odisseia no Espaço). Hel se ligava por uma ponte ao mundo dos vivos e era dividido em nove regiões.

MIDGARD
Ao que parece também por influência cristã, o antigo deus Loki, uma espécie de demônio superior, sempre trabalhando no sentido contrário ao das demais divindades, foi assumindo a tutela do mundo do mal, passando Hel, mudando de gênero, a ser visto como sua filha. Hel conviveu desde que “nasceu” com os gigantes, com monstros, como o lobo Fenrir, e com a grande serpente Midgard. Ela dava abrigo, no seu reino, ao monstro Nidhog, que roía dia e noite a árvore Ygdrasil, que fazia a ligação terra-céu nos dois sentidos. 

Foi Odin quem determinou que ela ocupasse esse mundo, também chamado de Niflheim. Sua aparência era terrível, e seu palácio, na região mais profunda do seu reino, era uma réplica infernal do palácio celeste de Odin, o Valhala. Desconsideradas as influências cristãs, a deusa Hel tinha por função, como uma espécie de gerente de um grande hotel, distribuir as almas que chegavam ao seu reino nas dependências que lhes cabiam, conforme a sentença decorrente do seu julgamento. Hel evoca, como se disse, o Valhala dos germânicos, paraíso dos guerreiros mortos nos campos de batalha, recolhidos e levados para lá pelas Valquírias, tão celebradas por Richard Wagner. O Valhala tinha mais de quinhentas portas, tão grandes que oitocentos guerreiros podiam sair por uma delas ao mesmo tempo, quando tivessem que combater os lobos.
CAVALGADA  DAS  VALQUÍRIAS ( PETER NICOLAI ARBO, 1831 - 1892 )

O herói germânico amava a vida, os seus bens e prazeres, não temia a morte porque ela não tinha  para ele o significado de aniquilação inesperada e fatal. A morte era para ele tão só a consumação final de um destino. Mesmo com a chegada do cristianismo, essa ideia não desapareceu. O destino, entidade criadora e transformadora por excelência, é cósmico e nele as individualidades se dissolvem no devir constante e inexorável do universo. Nem os deuses escapam dele, sempre em luta contra a morte e a decadência que constantemente os ameaçam. 


DESCIDA AOS INFERNOS
G. DA  MODENA , 1379 - 1455 )
Aos seres desvalorizados não era consentido sobreviver à morte para gozar as delícias do Valhala. Os que haviam morrido ignominiosamente iam sempre para o Niflheim, o País dos Mortos, do Gelo e das Trevas, cuja entrada era guardada pelo cão Garm. Ali viviam seres monstruosos, os anões, os gigantes e todos aqueles que haviam morrido de velhice ou de doença. Esta região era o domínio de Hel, que encarnava o princípio da doença, da decadência, da morte ignóbil, cujo poder o próprio Odin/Wotan era obrigado a aceitar. Neste reino, ausente qualquer esperança de ressurreição, tudo era sombrio, gelado, trevoso. 

Na mitologia germano-escandinava, os fantasmas e os duplos dos mortos se envolviam frequentemente com os vivos, assombrando-os, aparecendo em sonhos. Essas formas, chamadas de fylgjur, podiam também se manifestar como animais perigosos. Há espíritos dos mortos que se manifestavam, sempre sedentos de sangue e cruéis, chamados druckgeister (espíritos de opressão). Tradição semelhante é encontrada na Escócia, onde temos criaturas hermafroditas com asas de morcego, rosto de mulher, olhos e cabelos de fogo, habitantes dos pântanos, sempre uma séria ameaça a quem, à noite, se aventure por esses lugares.

Foram os escandinavos que criaram um dos melhores cenários relacionados com mitos que universalmente descrevem as catástrofes naturais que ameaçam a humanidade não só em razão dos seus pecados e faltas como também em virtude de ciclos de tempo que se fecham, destruindo tudo o que existe, inclusive
O ANEL DOS NIBELUNGOS
deuses, para que um novo mundo apareça. Este cenário, chamado de Ragnarok (em velho escandinavo, destino fatal dos deuses) ou  de Crepúsculo dos Deuses, descreve um combate final em que os deuses serão mortos por gigantes (Odin engolido pelo lobo Fenris; Freyr morta por Surt; Thor envenenado depois de sua luta contra a serpente Midgard). Depois da catástrofe geral, o mundo renascerá, uma nova idade do ouro, sob a tutela do deus Balder ressuscitado (vide a ópera de Richard Wagner O Anel dos Nibelungos).

Uma das mais “escorpianas” histórias da mitologia grega é aquela que tem Alceste (a defensora, a que afasta o perigo) como personagem principal. Alceste era uma das filhas de Pélias, rei de Iolco. Era a mais bela de todas, muito requestada, cercada de pretendentes. Para evitar complicações diplomáticas, o pai estabeleceu condições praticamente impossíveis de serem cumpridas por qualquer candidato à mão da jovem: ele daria sua filha àquele que conseguisse atrelar, ao mesmo jugo, um javali selvagem e um leão. Além do mais, as bestas assim atreladas deveriam dar uma volta completa numa pista de corridas. 

Um dos candidatos, Admeto (o indomável), graças à cumplicidade do deus Apolo, conseguiu fazer com que Hércules domasse os dois animais, cumprindo assim os requisitos impostos por Pélias. Consta que essa interferência de Apolo se deve ao fato de o deus solar, quando do seu exílio terrestre, ter sido tratado com extrema deferência pelo pai de Admeto, o rei Feres. Outros, mais “venenosos”, afirmam que Apolo, enquanto permaneceu na corte de Feres, havia se apaixonado pelo jovem príncipe. De qualquer maneira, vitorioso, Admeto conquistou a mão de Alceste. Esqueceu-se ele, porém, como era obrigatório em casos de favorecimentos desta natureza, de fazer o devido sacrifício a Ártemis, a deusa da vida selvagem. 

Muito ressentida, a deusa, no dia das bodas de Admeto e Alceste, encheu a câmara nupcial de serpentes. Intervindo mais uma vez, Apolo conseguiu resolver o problema e os noivos puderam ter a sua lua-de-mel. Tudo parecia correr  bem, quando Admeto foi sorteado pelas Moiras e decretada a sua morte (algumas versões nos dizem que por interferência de Ártemis).  Apolo, mais uma vez,  que tinha por Admeto toda a solicitude que se possa ter por alguém, embriagou Átropos, retardando assim a morte de seu protegido, para que se procurasse uma outra pessoa para morrer em seu lugar. Consultados, os pais do soberano, embora muito velhos, mal enxergando a luz do dia, não quiseram fazer o sacrifício pelo filho.

ALCESTE   MORRENDO ( J. F. P. PEYRON , 1744 - 1814 )

Tudo estava nesse pé, quando Alceste, corajosamente, se ofereceu para dar a vida pelo marido, não só por amor a ele mas por considerar que a presença do pai seria bem mais importante que a da mãe para a educação dos filhos do casal. Versões: a) Alceste teria se matado logo, sacrificando-se, ingerindo veneno; ao descer ao Hades, Perséfone, achando absurdo e injusto tal sacrifício, a incitara a voltar e tomar de novo o seu lugar entre os vivos. b) Admeto, diante de Thanatos, que viera buscá-lo, oferecera, covardemente,  ao deus da morte a sua própria esposa como substituta. Quando Thanatos estava para agarrar Alceste, eis que surge Hércules, que recebera hospitalidade de Admeto, depois de ter cumprido o seu primeiro trabalho (As Éguas de Diomedes). Ciente do que ocorria, Hércules travou um violento combate com o deus da morte, conseguindo arrancar de suas garras a jovem e bela esposa de Admeto. 


HÉRCULES   LEVA  ALCESTE  A  ADMETO
( ANTOINE  COYPEL , 1661 - 1722 )
Modelo de uma esposa amantíssima e exemplar e de uma inexcedível piedade filial, a esposa de Admeto e filha de Pélias, com justa razão, deu seu nome ao que chamo de complexo de Alceste, isto é, aquele comportamento, parcial ou totalmente inconsciente, vinculado ao terreno da afetividade, que leva algumas mulheres a agir como a esposa de Admeto o fez com relação à sua vida familiar, como filha, como esposa e como mãe, a mais perfeita encarnação do ideal feminino segundo o mundo patriarcal.   

A inclusão da piedade filial como elemento deste complexo se deve a uma história que envolve Medeia, sobrinha de Circe, feiticeira como a tia. Tudo começou quando Jasão retornou a Iolco, depois da conquista do Velocino de Ouro. Passou a arquitetar com a grande feiticeira, sua esposa, um estratagema para eliminar Pélias, seu tio, que havia usurpado o trono do país, que por direito caberia a seu pai, condenado à morte pelo irmão.  

MEDEIA  E  FILHAS  DE  PÉLIAS
Por amor ao marido, muito humilhado pelo tio desde que voltara da Cólquida, Medeia se aproximou enganosamente das filhas de Pélias, que não sabiam da sua união com Jasão, e as convenceu de que poderia, com a sua arte mágica, rejuvenescê-lo, já muito avançado em anos que estava. Bastaria que as filhas o fizessem em pedaços e que os lançassem num caldeirão de bronze com muita água. Medeia, então, adicionaria a essa mistura um preparado que só ela conhecia, um segredo de sua família, trazendo Pélias de volta à vida numa forma muito rejuvenescida. Para demonstrar do que era capaz, a sobrinha de Circe, usando o processo acima descrito, transformou um velho e trôpego carneiro num jovem e saltitante cordeirinho. 

As pelíades, como a história registra, se entusiasmaram e diante do que lhes fora demonstrado não hesitaram em matar o pai e destroçá-lo. Procurada para que fosse aplicada a sua receita, Medeia não foi encontrada. Jasão e sua família estavam vingados. Dentre as pelíades, Alceste foi a única a não aderir à proposta de Medeia, combateu-a mesmo, afirmando que as leis de Cronos deveriam ser respeitadas por todos, que nem mesmo os deuses poderiam revogá-las, e que amava o pai mesmo velhinho. Assim, além de exemplo de piedade e de respeito familiar, de grande amor ao marido e aos filhos, da aceitação do papel que lhe cabia nesse
ESTER   NUM   PURIM
( E. LONG , 1829 - 1891 )
contexto de superiores valores masculinos, Alceste ofereceu também inegáveis provas de inexcedíveis sentimentos religiosos, merecendo, por isso, dar nome ao complexo que descrevi, tornando-se assim um insuperável exemplo para todas as mulheres atreladas ao mundo patriarcal. Como ela, talvez, ainda que não de todo satisfatória a comparação, pela excepcionalidade de seu exemplo, algumas matriarcas judias como Ester e Léa.

Os habitantes da antiga Acádia, na Mesopotâmia, davam o nome de Girtab ao escorpião, isto é, “àquele que pica”. Era o símbolo das trevas, pois trazia consigo a diminuição da potência solar, depois do equinócio de outono. Há uma passagem da mitologia grega que traduz, com outras palavras, este poder que o escorpião tem de afetar o Sol. O deus Hélio, o Sol considerado fisicamente, depois de muita insistência por parte de seu filho Faetonte, emprestou a ele seu carro.

FAETONTE  ( JAN EYCK , 1390 - 1441 )

Muitas foram as recomendações e advertências, de modo especial quanto à fogosidade dos cavalos e quanto às zonas que, ao transitar pelo Zodíaco, ele iria atravessar. Em cada uma delas um perigo, animais bravios, traiçoeiros, carneiros, touros, caranguejos, leões etc. Bem ou mal, saindo às vezes da eclíptica, encostando na terra, provocando incêndios, Faetonte conseguiu chegar até a sétima constelação, Libra, que não teve problemas para atravessar. Contudo, ao ingressar na constelação seguinte, qual não foi o seu espanto e o seu desespero. Os quatro cavalos, sentindo-se certamente não conduzidos por mãos hábeis, desarvoraram-se, assustados, enlouquecidos, diante do monstruoso escorpião que lá vivia. Faetonte, como a história registrou, perdeu totalmente o controle do carro. Os desastres se sucederam de tal modo que Zeus, a pedido da Mãe Geia, não teve outra alternativa senão a de fulminar o tresloucado jovem, que pagou a sua vida, mergulhando com o carro nas águas do rio Erídano.

Um dos grandes mitos da antiguidade que devemos associar ao eixo Escorpião-Touro é o do deus Mithra, que tem relação com o deus de mesmo nome da religião védica. O nome mithra, na origem mihr, queria dizer Sol. Depois, passou a significar contrato, na época aquemênida, também nome de uma divindade conciliadora para representar a alternância entre a luz e as trevas, assumindo inclusive as funções de um deus de natureza escatológica. Seu culto se espalhou pelo mundo helenístico e depois romano sob a forma de uma religião de mistério (sete graus de iniciação).


MITHRA

A estatuária helenística popularizou a cena da imolação de um touro por Mithra numa gruta. Era o taurobolium, o batismo pelo sangue do touro. De grande penetração no mundo greco-romano, o culto foi muito difundido nos meios militares. Como ideias essenciais do mitraísmo destacamos um zelo ardente pela pureza moral, obtida e conservada graças a uma atitude belicosa, a do “soldado da fé”. Daí, o prestígio do culto entre as legiões romanas, traduzido pela veneração da luz, sendo o único princípio “invencível” o Sol (Sol Invictus). A grande festa do mitraísmo era celebrada no dia 25 de dezembro, uma das datas aproveitadas pelos primitivos cristãos para nela fixar a sua festa de Natal. 

Mithra era, entre os antigos persas, o deus da luz criada, da veracidade, da boa fé e da justiça, sempre invocado como garantia da palavra dada e dos contratos em geral; uma espécie de juiz clarividente das ações humanas. Neste sentido era um mediador entre dois mundos opostos, o mundo luminoso superior (nona casa astrológica) e o mundo da luz criada pelos homens (sétima casa astrológica). Seu culto também estava baseado na doutrina da ressurreição por uma regeneração física e psíquica. As cerimônias eram celebradas numa gruta, em torno de uma lanterna, com ritos especiais, chamados sacramentos: um batismo pelo sangue, pela água pura, por aspersões de água lustral (purificação), por unções de mel, pela distribuição comunitária do vinho e do pão). Os iniciados tratavam-se entre si pelo título de irmãos, sendo os superiores, instrutores, chamados de pais.

TAUROBOLIUM
No séc.II da era cristã, o rito do taurobolium foi introduzido no mundo romano, onde já era grande também a influência do culto de Cibele, Grande-Mãe, oriundo da Ásia Menor. O taurobolium era o batismo pelo sangue do animal, uma aspersão sanguinolenta que transformava o mystes num renatus in aeterneum, nascido para uma nova vida, eternamente. A vigorosa energia do animal regenerava o corpo e a alma do iniciado, pondo-o em comunicação com formas superiores da vida espiritual. Os exércitos romanos difundiram o culto de Mithra por todo o império, com grandes celebrações no dia 25 de dezembro, logo depois do solstício de inverno, quando os dias começavam de novo a aumentar, festejando-se o renascimento do Sol, o Natalis Solis

O taurobolium significava também o controle da natureza primitiva e instintiva do homem, representada em muitas tradições por animais. Há cerimônias específicas para o estabelecimento dessa relação, principalmente em ritos de iniciação para jovens do sexo masculino. O jovem, através deste rito, entra na posse de sua alma racional e sacrifica o seu o lado instintivo, animal, por meio de um outro rito, sendo o mais comum o da circuncisão. Só então o jovem poderá ser considerado um ser humano. É por isso que, em muitas tradições, africanas especialmente, que os animais são considerados como seres não circuncidados. Assim, o sacrifício do touro pelo deus Mithra (sacrifício também encontrado nos cultos dionisíacos) pode ser considerado como um símbolo da vitória da natureza espiritual do homem sobre sua animalidade, da qual o touro é um símbolo comum. 

O que está acima pode, explicar, por exemplo, a popularidade das touradas e de temas míticos como o do Minotauro, símbolo das indomáveis forças instintivas do homem. O culto de Mithra, acredito, também pode ser compreendido, sob o ponto de vista astrológico, como a passagem da era cósmica de Touro para a de Áries, que começa em 1.662 aC., lembrando-se que o planeta Marte rege tanto o signo de Escorpião como o de Áries.

Outra aproximação muito significativa que podemos fazer com relação ao signo de Escorpião é o cotejá-lo com as crenças celtas relacionadas com a morte, com o outro mundo e com as ideias de renascimento. É importante dizer de início que os celtas continentais tinham uma atitude muito  positiva com respeito à morte como está demonstrado tanto por evidências arqueológicas como por testemunhos literários. Julio Cesar, o imperador romano, como se sabe, escreveu uma obra sobre as guerras que os romanos travaram na Gália, contra os celtas. Ele nos informa, pois os conhecia muito bem, que eles honravam deuses muito semelhantes aos dos romanos, inclusive o seu Dispater, a divindade que governava o mundo infernal; informou-nos mais Cesar que os druidas, os sacerdotes celtas, atribuíam muita importância à crença da transmigração das almas. Comentando, porém, esta última informação, ele acrescenta uma venenosa observação: a de que os druidas propalavam essa ideia para que os guerreiros celtas não tivessem medo de morrer. 


LUCANO
O poeta latino Lucano, no primeiro século da era cristã, observou que os celtas encaravam a morte simplesmente como um estágio entre uma vida e outra. Outras fontes literárias (Diodorus Siculus) afirmam a mesma coisa. As tradições mitológicas celtas projetam uma imagem muito ambígua sobre o seu inferno. Fala-se mesmo de uma vida melhor no Outro Lado. Não há dor, sofrimento, decadência; há festas, música, beleza, embora encontremos registros de combates entre heróis que nele se encontram. Outro aspecto, muito contrastante com o que está acima, é o de que inferno pode se tornar um lugar muito perigoso, sombrio, se visitado por humanos antes da morte. 

O aspecto tenebroso do mundo infernal é representado pelos celtas de modo especial nas festividades do Samain, realizada quando o Sol ingressa no sigo de Escorpião. Na Irlanda, era a maior festa, celebrada no início de novembro, marcando o fim de um ano e o início de outro. A festa era um ponto de transição cujos ritos procuravam garantir a renovação e a prosperidade terrena, os êxitos tribais, a germinação da boa sorte para a primavera e o verão seguintes.


SAMAIN  ( F. J. GOYA Y LUCIENTES , 1746 - 1828 )

LUPERCÁLIAS
O Samain corresponde ao Halloween anglo-saxão e equivale à festa de Todos-os-Santos e dos Mortos dos cristãos latinos. Marca, na segunda quinzena do mês de Samon (novembro), o começo da estação sombria, estabelecendo-se então uma comunicação temporária com os mortos. Em oposição a esta festa, no mês Imbolc (fevereiro), temos as celebrações associadas à deusa Brigit, equivalentes às Lupercálias romanas e ao Mardi Gras (terça-feira gorda, último dia do carnaval), festas que assinalavam o fim do período hibernal e o renascimento da vida e do mundo vegetal. A
SANTA  BRÍGIDA , 1280
deusa Brigit era, na origem, uma deusa ligada à terra, ao fogo e à poesia (esta última era considerada como uma expressão do fogo, tendo um caráter não material). Quando da chegada do cristianismo, muitas divindades celtas foram transformadas em santos, como foi o caso de Brigit, que virou Santa Brígida, chamada a Maria dos celtas, venerada tanto quanto São Patrício, o evangelizador dos irlandeses.



LUGNASAD  ( PIETER BRUEGEL, O VELHO , 1525 - 1529)

Em maio, tínhamos as festas chamadas Belteine, que marcavam o início da estação estival. Em agosto, realizavam-se as Lugnasad, em homenagem ao deus Lug, período das grandes assembleias. Estas festas, ao que parece, eram fixadas com base na observação de estrelas importantes. Samain e Belteine tinham início, respectivamente, quando da ascensão helíaca de Antares (Escorpião) e de Aldebarã (Touro). Assim, quando da ascensão helíaca de uma delas, o céu noturno era dominado pela outra. O ano era assim dividido em duas estações, uma sombria, de 179 dias, e outra luminosa, de 186 dias, em harmonia com o calendário climático e agrícola da Europa temperada. As datas das duas outras festas eram determinadas pela ascensão helíaca de Sirius (Lugnasad) e de Capella (Imbolc). 

CALDEIRÃO
O mais importante símbolo de regeneração do mundo celta era o caldeirão, nos seus três níveis: abundância, ressurreição e sacrifício. A maior parte dos caldeirões encontrados em várias tradições míticas deve a sua força mágica à capacidade que eles têm de transformar tudo o que neles é lançado numa massa confusa, equivalente à nigredo alquímica, para que a partir dela possa ser criada uma nova forma. O caldeirão celta lembra a cornucópia, tendo o alimento que nele se prepara um caráter inesgotável, símbolo de um conhecimento sem limites, no que se aproxima bastante de outro símbolo celta, cristianizado, o Santo Graal. O caldeirão celta podia restaurar a vida dos guerreiros, que renasciam mais fortes do que antes. A serpente era outro símbolo usado pelos celtas  para o renascimento, ao representar o conjunto dos ciclos da manifestação universal, o encadeamento do ser à cadeia indefinida dos renascimentos.

Ao falar do caldeirão, não podemos esquecer de Héstia, a deusa
HÉSTIA
grega da lareira. Um de seus atributos era justamente o caldeirão, identificando-o os gregos como uma representação do tesouro particular ou do tesouro público, ou seja, tanto das casas como da polis. Héstia “recebia” o que nelas entrasse. No primeiro caso, dinheiro e alimentos. No segundo, os tributos em geral. Em ambas as hipóteses, tudo era levado para o seu caldeirão, posto em comum, preparando-se uma grande “sopa”, distribuída para os da casa ou para os habitantes da polis, segundo as necessidades de cada um.