segunda-feira, 8 de setembro de 2014

BLADE RUNNER, AINDA



                     

O filme é de 1982, produção dos USA, tendo por subtítulo O Caçador de Androides, classificado como de ficção científica. O diretor é Ridley Scott, transcorrendo a ação em 2019, na cidade de São Francisco. Sombria, enfumaçada, escura, achinesada, na cidade, concepção futurista de Syd Mead, responsável pelo fantástico “desenho” do filme, aglomeram-se promiscuamente alguns milhões de pessoas de várias procedências, num extravagante melting pot, a viver pelas ruas de uma enorme cidade-gueto repleta de construções inspiradas por discutíveis formas que lembram pirâmides com linhas  barrocas. Impregnando tudo, a vida urbana e social, um ar de decadência com tons expressionistas (influências do filme noir ?). 




Por entre os prédios, bem acima do leito carroçável das ruas, deslizam suavemente automóveis, exemplos ultramodernos da avançada tecnologia desse mundo.  Ao fundo, raios luminosos cortando os céus constantemente dão um ar de festival ao que acontece na tela; a enquadrar o cenário, aqui e ali, em meio à silhueta dos prédios, os painéis luminosos das grandes empresas multinacionais, logomarcas há muito conhecidas, persistentes representações de um passado que se adaptou, dão um clima de fatalidade às imagens que se sucedem. Permeia todo filme, sem dúvida, uma atmosfera cyberpunk. Punk, com sabemos, é slang, palavra que tanto significa algo sem importância, uma pessoa destrutiva, jovem parceiro homossexual ou restos de madeira para fazer fogo ou...

HARRISON  FORD  ( RICK  DECKARD )
O roteiro do filme é de autoria de Hampton Fancher e de David Peoples, baseado na novela Do Androids Dream of Electric Sheep? de Philip Dick. O personagem principal é Rick Deckard, um policial de Los Angeles, caçador de androides, criados artificialmente, seres que nos obrigam a aproximar o filme da temática judaica do Golem. O visual apresentado é, sem dúvida, espetacular e procura acentuar, através de um tom profético, o que aguardaria a humanidade num futuro não muito distante se humanos e androides tivessem que conviver.  Quem o concebeu o o visual do filme, como disse, foi Syd Mead. A trilha sonora ficou por conta de Vangelis. 

Embora os maiores créditos com relação ao sucesso do filme
SYD   MEAD
tenham sido atribuídos a Ridley Scott, grande diretor, sem dúvida, não podemos esquecer da inestimável contribuição de Syd Mead, hoje com 81 anos, em atividade. Artista chamado de neofuturista, ele se tornou mais conhecido certamente, fora dos meios técnicos, depois de Blade Runner, Alien e Tron, dos quais participou com a sua concepção visual. Exibindo-se com os seus desenhos, Syd Mead apresenta-se em Universidades, em várias partes do mundo, e presta serviços a grandes empresas que atuam internacionalmente. Desde 1973, quando participou da Documenta de Kassell (na Alemanha ocidental à época), iniciou uma carreira de guest speaker internacional em muitas universidades e empresas, proferindo palestras sobretudo para os desenhistas que trabalham na indústria automobilística. Ainda neste ano de 2014, recentemente, com trabalhos sobre o visual futurista, numa demonstração-espetáculo chamada Progressions, atraiu um público recorde em universidades americanas.  Seu grande lema: A imaginação suplanta a técnica.


No elenco, ao lado de Harrison Ford (Rick Deckard), temos Rutger Hauer (Roy Batty), Sean Young (Rachel), Edward James Olmos (Gaff), Daryl Hannah (Pris), M. Emmet Walsh (cap. Bryant), William Sanderson (J.F. Sebastian), Brion Jones (Leon), Joe Turkell (Tyrell), Joanna Cassidy (Zhora), James Hong (Hannibal Crew) e Morgan Paull (Holdens). 

A   CRIAÇÃO   DO   GOLEM
O Golem (em hebraico, incriado, informe), como se sabe, é um ser humano artificialmente criado pela magia cabalística e por processos que lembram a alquimia. Às vezes, entre os judeus, a palavra golem toma um sentido insultuoso, quando designa um ser semelhante a um zumbi, uma espécie de alma penada. O Golem concorre com a criação divina, é uma imitação do ato criador de Deus. Feito de argila, é mudo, jamais conseguindo os seus criadores lhe dar o dom da palavra. É um ser inclinado naturalmente ao mal, escravo de suas paixões, como o são também os seus criadores. As lendas que cercam essa estranha criatura nos dizem que escapou do controle do(s) seus(s) criador(es), levando ambos , criador e criatura, à destruição. No fundo, a história do Golem pode ser vista como uma ilustração da tecnologia moderna, na medida em que ela, voltada só para fins materiais, como vem acontecendo, escapa do controle de seus criadores. A aproximação com o tema do Golem é inevitável, mas ela poderia ser estendida a outros, como o de Dédalo e Ícaro e Prometeu, da mitologia grega. 

É de se ressaltar que o tema da criação de antropoides ou androides pode ser rastreado nas mais antigas tradições mágicas encontradas em várias culturas. Tais criaturas ora apareceram como simples autômatos, outras vezes como estátuas animadas capazes de falar. O tema está registrado, principalmente, nas antigas tradições egípcia, grega, romana e chinesa. Entre os chamados primeiros Pais da Igreja Católica podemos encontrar também referências a ele. 

Uma das figuras mais interessantes dos tempos iniciais do
SIMÃO,   O   MAGO
cristianismo foi Simão, o Mago, personagem que aparece mencionado nos Atos dos Apóstolos, como taumaturgo (operador de milagres). Gabava-se de animar estátuas de tal modo que quem as visse acreditaria que eram realmente seres humanos de carne osso. Simão competia com os apóstolos para conquistar o povo e quis comprar deles o know-how que Cristo lhes teria transmitido para fazer milagres. Desde então A Igreja Católica dá o nome de simonia à compra ou venda ilícita de coisas espirituais (indulgências e sacramentos) ou temporais (benefícios eclesiásticos).


TALOS
Um dos mais perfeitos seres artificiais de que se tem notícia tem o nome de Talos, uma espécie de robô de bronze, dotado de um servomecanismo aparentemente perfeito, criado pelo deus Hefesto (mitologia grega), invulnerável, a não ser na parte inferior da perna. Talos guardava dia e noite o reino de Creta, jamais descansava. Como todos os seres criados artificialmente, Talos também teve um fim. Medeia, a grande maga, descobriu o seu ponto vulnerável e o atacou, destruindo-o.   

O filme de Ridley Scott descreve que num futuro próximo os
RIDLEY   SCOTT
humanos (leia-se USA, através de uma de suas multinacionais, a Tyrell Corporation) iniciam a colonização espacial. Criam-se para isso seres (androides, “os que têm forma humana”) chamados no filme de replicantes (réplicas humanas), geneticamente alterados, muito mais perfeitos que os humanos, para trabalhos perigosos ou degradantes nas colônias do espaço. Em genética, replicar é tornar múltiplo. Replicar será também fazer a cópia de alguma coisa ou, ainda, duplicar, falando-se da molécula do ADN (ácido desoxirribonucleico) ou DNA, em inglês, o “ácido da vida”. 



REPLICANTES

O nome Tyrell, que aparece no livro e no filme, é também encontrado nas histórias de George R.R. Martin, escritor norte-

americano, nascido em 1948, autor de muito sucesso. Sua série sobre a Casa Tyrell, iniciada em 1991, inspirada na história da Inglaterra, tem o nome de Casa Nobre, novelas da Canção do Gelo e do Fogo, Casa cujo lema é: Crescer Forte. Podemos ainda, com relação ao nome Tyrell, tentar uma aproximação etimológica com tire, de tyre
verbo que tem o sentido de  cansar pelo esforço, pelo trabalho, fatigar, exaurir. 



Neste sentido, o filme é um aterrorizante hino a todas as formas de imperialismo, o norte-americano, em especial, sem dúvida. Esses replicantes têm um modelo, são da série Nexus-6, muito aperfeiçoada, sendo bem mais fortes e ágeis que os humanos. Não têm sentimentos nem emoções, fraquezas humanas. Viajaram pelo sistema solar, foram além dele, visitaram paisagens estelares que nenhum humano poderia visitar.  Seu período de vida, entretanto, seu prazo de validade, é limitado a quatro anos, da data de sua fabricação. Viver na Terra era absolutamente proibido a qualquer replicante. Se porventura alguém encontrasse um poderia matá-lo. O que se depreende é que os replicantes poderiam eliminar facilmente os seus criadores e assumir o controle do Universo. 

Numa colônia extraterrestre, habitada por esses seres, há um motim.  Alguns conseguem fugir, vindo para a Terra. Eles querem aumentar o seu prazo de validade. Há que caçá-los, exterminá-los, “aposentá-los” como eufemisticamente é dito pelo poder criador. Uma força policial se encarrega desse trabalho. São os blade runners, expressão que admite várias traduções; a) perigo iminente; b) alerta vermelho; c) cortar rente etc... Os replicantes vão sendo caçados um a um. Aos poucos, porém, no desenrolar da ação, eles parecem se tornar mais humanos e os humanos mais replicantes.




O filme, pela sua construção e pelos subtemas que põe em relevo, transcende o gênero da ficção científica, para nos colocar diante de questões filosóficas, eternas para o ser humano. De onde viemos? Será que somos só memória? Somos o que lembramos ou somos algo mais? A tecnologia do mundo moderno, toda voltada para a produção de bens materiais, ajuda a melhorar a qualidade de vida dos humanos ou cria um inferno? Quais são realmente os valores essenciais pelos quais vale a pena lutar? O filme propõe realmente questões sobre os caminhos que a ciência moderna vem tomando; fala de valores éticos, morais; nos faz buscar respostas para o que significa viver mais dignamente. É neste particular que paira sobre todo filme a figura sinistra de Prometeu, que, a pretexto de ajudar os humanos, tanto os infelicitou até hoje.


PROMETEU TRÁS O FOGO DIVINO PARA OS HUMANOS (HEINRICH   FUEGER) 

Os produtores do filme (sempre eles!) o mutilaram por questões políticas e mercadológicas. O diretor Ridley Scott conseguiu, contudo, relançá-lo, dando-nos em 2007 a chamada “versão do diretor”, nela incluindo, com o seu final cut, o que foi cortado na versão de 1982. Ridley Scott é inglês e dentre seus filmes destacamos obras importantes: Os Duelistas, Alien, Telma e Louise, Gladiador, Cristóvão Colombo e outros. Vangelis, o responsável pela música, é grego, fez música neoclássica, progressiva, eletrônica, pop e rock (grupos Formynx e Aphrodite´s Child). É figura conhecida internacionalmente e circula musicalmente entre o erudito de baixa extração e a música pop e o hard rock. 


Blade Runner é um filme importante porque faz pensar, a não ser, é claro, para os que só viram os seus efeitos especiais. Alguns o acham muito dark, tétrico, fantasioso. Não podemos, contudo, ignorá-lo, é muito significativo à sua maneira. Ele se junta, com destaque, a muitos outros filmes que abordaram temas semelhantes desde os primeiros anos do cinema: Frankenstein, Metropolis, Planeta dos Macacos, Farenheit 451, Alphaville, Laranja Mecânica, 2001- Uma Odisseia no Espaço, Matrix e muitos outros.


METROPOLIS   ( FRITZ   LANG )

Um dos subtemas mais interessantes de Blade Runner é, sem dúvida, o das cidades futuristas, muito bem explorado também por Tim Burton, em Batman, (1989), ambos e outros aqui não mencionados tendo sempre como matriz, como fonte de inspiração, o espetacular Metropolis (1927), de Fritz Lang. 


*Texto de apresentação (palestra) sobre o filme em Ciclo de Cinema (2010/2011) realizado para Lita – Projetos Culturais