terça-feira, 9 de setembro de 2014

O HERMES CÉLTICO


           


As mais antigas referências que temos com relação aos celtas foram feitas por Heródoto, que sobre eles escreveu por volta do séc. V aC. Falava de um povo que vivia perto da nascente do rio Danúbio. Outro grego, Hecateu, registra que a colônia grega de Massília (Marselha) ficava perto da terra dos celtas. Sabe-se hoje que os celtas (Keltoi, para os gregos), um povo bárbaro, apareceram na Europa por volta de 2000 aC. Eram indo-europeus e ocuparam extensas regiões da Europa central (Gália), da Espanha, do norte da Itália, dos Balcãs, da Ásia Menor, chegando às terras que ficavam além das colunas de Hércules, Grã-Bretanha e Irlanda. 

Quando os celtas chegaram à Europa encontram povos já instalados nas regiões invadidas. Aos poucos, como sempre acontece, operou-se uma fusão entre as concepções religiosas de invasores e dos povos dominados. De um animismo primitivo, chegaram os celtas, aos poucos, à representação antropomórfica dos seus deuses. Uma das bases desse processo estava centrada, por exemplo, na deusa Danu, mãe do panteão céltico insular, no qual ela aparecia como companheira de Beli, que corresponde ao Dis Pater, uma espécie de Plutão dos romanos, também chamado Dite, palavra que lembra riqueza, abundância, opulência.


DANU

Na Europa continental, na região a que os romanos deram o nome de Gália, a religião se caracterizou inicialmente por expressões politeístas de fundo naturalista, sem representações figuradas, sendo veneradas as forças naturais. Não havia nesse vasto mundo obviamente uma religião única, mesmo religiões nacionais, embora admitissem as suas expressões regionais uma espécie de Dis Pater comum. 

DRUIDA 
A grande multiplicidade das representações religiosas estava ligada, de maneira vaga e imprecisa, a clãs ou tribos, circunscritas a territórios, o que dificultava a fixação de um panteão. Além disso, a tradição se baseava sobretudo na oralidade, longos poemas cantados pelos druidas, etimologicamente, daru-vid, o vidente, o sábio (desenho à esquerda de William Stukely, 1740). Afora isso, somente algumas inscrições votivas e funerárias sobre estelas e baixos-relevos, algumas fórmulas mágicas e um calendário. Era uma espécie de mitologia sem mitos. 

As atribuições das divindades se confundiam muitas vezes.
EPONA
Primeiro, havia, além do culto das águas, das fontes e dos rios, a do alto das montanhas, divinizadas.  A mais bem elaborada divindade desse mundo é Epona, sempre acompanhada por um cavalo. Seus atributos eram o chifre da abundância, uma patera e frutos. Na deusa se uniam as águas, a fertilidade do solo e o cavalo, simbolicamente. Muito popular, seu culto chegou a Roma. 


CARVALHO
Importante também era o culto das árvores. Dentre elas se destacava o carvalho, em cujos bosques os druidas realizavam as suas cerimônias mais importantes. Além do carvalho, nesses cultos, aparecia também o agárico ou visco, símbolo da imortalidade, da regeneração. Esse vegetal, sempre associado ao carvalho (drud, em grego),
AGARÍCO 
merecia festas especiais, realizadas no mês de novembro. Os poderes do agárico ligavam-se também à arte médica e ao caminho da aquisição da sabedoria superior. Desse mundo religioso faziam parte também os deuses zoomorfos como o cavalo, o urso, o corvo, o touro e o javali. Em inúmeros monumentos encontramos serpentes com cabeça de carneiro, muitas vezes ao lado do Hermes céltico.

DAGDA
Antes da chegada dos celtas, Danu chamava-se a Grande-Mãe. Quanto ao grupo masculino, Dagda (Bom Deus) era o mais importante, provedor da abundância e regenerador. Seu equivalente entre os celtas continentais gauleses chamava-se Math. Dagda era o pai do Eros irlandês. Faziam parte desse mundo, dentre outras, as divindades que constituíram os modelos de arquétipos que nos interessam mais de perto e que se definiriam mais tarde, cada um deles representando uma função: o deus Oghma, como hábil construtor de armas;  Lugh, como dono das artes e dos utensílios em geral; Goibhniu como patrono dos metalúrgicos; Dian Cécht como a divindade  médica e assim por diante.



SAMAIN, NOS DIAS DE HOJE

LUGH
A maior festa dos celtas, tanto na Irlanda quanto na Gália, era o Samain, que marcava o fim de um ano e o começo do outro (novembro), nela se destacando o papel do casal divino Danu e Dagda. Em agosto, realizava-se a festa Lugnasad, festa que procurava garantir o amadurecimento das searas. Esta garantia era um “negócio” conduzido pelo deus Lugh, senhor de todas as habilidades em geral. Este deus é apresentado como um jovem e um de seus apelidos era o de “longo braço”, aquele que atingia o distante, inclusive pelo uso de armas que inventara, o grande dardo e a funda. É do nome deste deus que sai o antigo nome da cidade de Lyon, Lugdunum (colina do corvo, na língua celta).

ROSMERTA
Lugh, associado à deusa Rosmerta, que passa por sua esposa, era chamado também de O Brilhante, pois seu grande festival realizava-se no verão. O deus aparece ligado ao corvo (lugos, em gaélico, é corvo). A ave está presente em muitas lendas célticas. O corvo, lembremos, tem destaque também na mitologia escandinava. Wotan, Odin para os escandinavos, tinha por companheiros dois corvos que lhe traziam todas as informações  do universo, um deles era Hugin (o pensamento) e outro, Munin (a memória).

Muitos historiadores romanos identificam Lugh como o deus Teutates, divindade de caráter nacional, o “deus do povo”, vendo nele muitas das características de Mercúrio. Júlio Cesar, nos seus
JÚLIO  CÉSAR
comentários De Bello Gallico, põe em primeiro lugar, como divindade dos gauleses, o deus Teutates, chamando-o de Mercúrio, inventor de todas as artes úteis, protetor das estradas e dos viajantes, todo poderoso nas questões comerciais e de dinheiro. Seu campo de ação parece, contudo, mais vasto que o do Mercúrio romano. Ele passa por ser um deus civilizador. Seu culto talvez fosse o mais difundido. Assimilado a Hermes-Mercúrio, Teutates adotou os traços destas divindades e seus atributos, inclusive o nome latino. Representado muitas vezes como um jovem imberbe, com tornozelos alados, sempre em pé, raramente sentado. Nu ou com a clâmide (manto que se prende com um broche ao pescoço ou aos ombros), usa o pétaso (chapéu dos antigos gregos, de aba larga e copa cônica, feito de palha ou feltro) e carrega um caduceu. Seus animais, além dos apontados, são o bode e o galo. O bode é um símbolo da força vital, geradora, fecundante. Tem características lunares, noturnas, por oposição ao carneiro, que é diurno, solar.



FOMORIANS  ( JOHN  DUNCAN,  1912 )

Lugh tinha relações de parentesco com os Fomorians (Balor, líder desses seres, era avô do deus), de natureza inferior, feios, disformes, maléficos, chamados “cabeça de bode ou de cabra”, que simbolizavam as forças que se opunham à evolução. Lugh travará uma batalha contra eles, usando todo o seu poder mágico e a sua espada encantada, além das armas que inventara, a lança longa e a funda. Os Fomorians tinham os poderes do mau olhado e do azar (fomoire). As divindades, para seu alento na luta contra os Fomorians, realizavam um festival (Gobniu) durante o qual se preparava uma cerveja mágica. Por oposição a Dagda, apresentado no Samain, como um ser grotesco, primitivo, com o seu inesgotável caldeirão, Lugh aparecia sempre como uma divindade mais jovem, “moderna”. O epíteto, Lamfhada (Longo Braço), no sentido de longo alcance, lhe foi dado porque as suas armas eram o grande dardo e a funda, armas novas por ele adicionadas ao arsenal celta.  

A mãe do panteão céltico insular, Danu,  tem uma filha chamada
ARIANROD
Arianrod (roda de prata), divindade tutelar da constelação da Corona Borealis. Esta constelação é, no mito grego, o diadema que Afrodite deu a Ariadne quando, depois de abandonada por Teseu na ilha de Naxos, a princesa cretense se uniu ao deus Dioniso. Corona Borealis situa-se entre 2º-17º de Scorpio. Arianrod é irmã de Gwydion; unindo-se a ele, tornou-se mãe do deus irlandês Lleu, Lugh ou Lug. Entre os gauleses, Lug irradiava uma luz de seu rosto que nenhum mortal podia suportar. Era o mestre maior de todas as artes, tanto as da paz quanto as da guerra. Seu arco era o arco-íris e a Via-Láctea entre os irlandeses era o seu caminho.
   
No longo período da dominação romana, o culto de Teutates-Lugh
MERCÚRIO GAULÊS
se alastrou, mudando-se o nome da divindade para Mercúrio. Como lembrança desse fato, temos inúmeros nomes de lugares como Mercurey, Mercueil, Mercoeur, Mirecourt, Montmartre (Montmercre, monte de Mercúrio). Deus da prosperidade financeira, o Mercúrio gaulês era também divindade guerreira. Seus apelidos: Albiorix, rei do mundo, e Rigisamos, o muito real. Fundindo-se com o Hermes-Mercúrio romano, Teutates-Lugh adotou os seus traços e atributos. 


Com nomes um pouco diferentes, nos grupos insulares (goidélicos, Irlanda, e britânicos, Inglaterra), encontramos Gwydion, deus civilizador, dispensador das boas ações e propagador das artes. Lembra um pouco Odin-Wotan dos germânicos e escandinavos. O equivalente deste Gwydion será na Irlanda o deus Ogma, que é patrono da eloquência e inventor do chamado alfabeto ogâmico formado por 15 símbolos consonânticos, com vinte letras. Este alfabeto podia igualmente ser expresso por gestos, como uma língua para surdos-mudos.


Luciano, retórico grego, séc.II, consagrou um pequeno tratado a
LUCIANO
Ogme, por ele chamado de Ogmios. Aparece representado sob os traços de um velho enrugado, quase calvo, trazendo uma pele de leão e uma clava, o que muito lembra Hércules. Mas o poder deste Hércules céltico não estava no seu corpo físico. Correntes saíam de sua língua e se ligavam às orelhas dos que o escutavam, dando-nos esta imagem uma ideia de seu poder como deus da eloquência e dos discursos persuasivos. Os romanos davam o nome de argute loqui à grande capacidade que os celtas tinham de discursar. 

Escritor satírico, Luciano era de Samósata, Síria, tendo sido educado na sofística.         Andou pela Grécia, pela Itália e pela
Gália, fixando-se depois em Atenas. Muito ferino, mas inspirado por uma notável verve, cheia de invenção e malícia, Luciano foi muito admirado por escritores modernos. Foi admirado por Erasmo, por Cyrano de Bergerac, por Fontenelle, e serviu de modelo para o Cymbalum Mundi, de Bonaventure Des Périers. Temos, no Brasil, uma excelente versão bilíngue  grego/português de uma obra muito importante de Luciano, Diálogos dos Mortos (organização e tradução de Henrique G. Murachco).