segunda-feira, 17 de novembro de 2014

MITOLOGIAS DO CÉU - MARTE (4)




Marte é o mais romano dos deuses. Seu culto teve a importância do de Júpiter ou talvez maior. Podemos afirmar que Marte, em Roma, era uma divindade indiges (endo e agere), de dentro, nacional, e não uma novensile, importada. Há alguns dados mitológicos que, iluminados pela linguística (filologia), nos permitem entender melhor essa área mítica em que se deu o encontro do latino com o grego. Um dado muito esclarecedor é o que nos fala da deusa Ana Perenna, nome latino que significa ano completo, totalizado, fechado. Perenna vem de per (através) e de annus (ano). Ana tem relação com annare, atravessar, passar o ano. 


ANA PERENNA

Ana Perenna era uma antiga divindade do centro da Itália, do Lácio (Laurento), passando seu culto depois para Roma. Era a deusa do ano em curso, celebrando-se as suas festas, de caráter licencioso, no dia 15 de março. O ano velho era Mumurius Veturius, representado
MAMURIUS
como um ferreiro osco (os oscos  viviam entre a Campânia e o território dos volscos). Assumindo Marte a condição de grande divindade, atribuía-se a ele a expulsão de Mamurius, dando-se assim passagem a Ana Perenna. Essa expulsão se dava no mês de março (Martius mensis). Mamurius era espancado e banido da cidade.



MARTE

Marte, inicialmente, nesse  contexto, na península itálica, aparecia como divindade da primavera e da vegetação, sendo chamado como tal de Silvanus. Suas festas, como tal, procuravam fazer com que as plantações e as safras melhorassem cada vez mais. As chamadas Equírrias (sacrifício de cavalos), instituídas por Rômulo, tinham essa finalidade. Nesse período, eram celebradas também as Quinquátrias, purificação das legiões antes das guerras, as Armilustras, purificação das armas, entoando-se em todas os Cantos Encantatórios. 


EQUÍRRIAS

A ligação de Marte, deus da vegetação, com as guerras se estabeleceu logo porque, findo o inverno, entrando a primavera, a temporada das lutas tinha início. Marte, que entre os Sabinos era uma divindade tutelar da juventude, assumiu logo, entre os romanos, essa condição. Patrocinava assim o deus a busca de novas terras e riquezas, o que, obviamente, muito tinha a ver com campanhas militares.

JUNO
Os romanos, muito mais belicosos que os gregos, deram uma outra origem ao deus, diferente da que Hesíodo propusera quanto a Ares na sua Teogonia, como filho de Zeus e de Hera. Segundo a versão romana, Juno (Hera) teria tido muita inveja de Júpiter (Zeus), que, sozinho, “parira” Minerva (Palas Athena). Juno, diz o mito, se mandou para o oriente. A certo momento, cansada da viagem, deteve-se num templo da deusa Flora, que lhe interrogou sobre o motivo de tão longa caminhada. Ao inteirar-se do ocorrido, Flora recomendou a Juno que colhesse uma flor que crescia nos campos de Oleno, na Acaia. Assim aconteceu. A deusa tocou o pistilo da flor e ficou grávida, nascendo Marte, logo depois. A educação de Marte foi entregue por Juno ao deus Príapo, protetor da fecundidade, membro permanente do séquito de Dioniso. 


FLORA

Em Roma, Marte ocupou posição de grande destaque no panteão, sendo o seu culto muito desenvolvido, ao contrário do que aconteceu na Grécia, onde prevaleceu o de Apolo. Tinha Marte em Roma o título de protetor do império. Quando os cônsules determinavam o início de alguma campanha militar, todos, inclusive os chefes militares, o povo, iam ao Campo de Marte para orar no templo do deus, chamado de Gradivus (o que cresce). As figuras mais gradas da nação tocavam então a lança da estátua do deus exclamando: Mars vigila. 


CAMPO    DE   MARTE

A origem do nome Marte é discutível. Alguns o fixam através das raízes mar ou mas, que tem o significado de força geradora. Outros adotam a raiz mar com o sentido de brilhar. As formas mais antigas do nome são Maurs e Mavors. Pela junção de pater, temos também o nome Marspiter. Lembre-se que, como protetor da agricultura, Marte ganhou o epíteto de Robigus, o que protege as plantas da ferrugem (robigo).  

BELLONA
Nas batalhas, Marte costuma aparecer às vezes acompanhado de Vacuna e de Bellona, deusas guerreiras, de Pavor e de Pallor, que inspiravam terror aos inimigos; de Honos e de Virtus, que insuflam honra e coragem aos soldados. O apelido de Gradivus (o que cresce) ganha uma nova etimologia nas batalhas (gradi, caminhar rapidamente, marchar). Depois da vitória, Marte desfila acompanhado de Vitula e de Victoria.

Vacuna (oblação, oferenda) era uma antiga divindade rural dos sabinos e Bellona (bellum, guerra), como já foi dito, deusa da guerra, que aparecia empunhando ora um açoite, ora uma lança ou uma tocha. Tinha o privilégio de andar com Marte em seu carro e às vezes passava por sua irmã ou esposa. Pavor era uma divindade consagrada por Tullus Hostilius, terceiro rei de Roma e Pallor (palidez) era a divindade do medo. Honor era a divindade que favorecia a obtenção da consideração pública (honor) e Virtus, divindade inspiradora de qualidades que faziam o valor de um homem, soldado. Vitula era a divindade feminina do regozijo, da festa que se seguia à derrota do inimigo, sempre acompanhada da deusa Victoria, esta também alada, no que lembrava muito a deusa Nike dos gregos. Seu culto sempre apareceu ligado em Roma aos de Júpiter e de Marte, sendo reverenciada especialmente pelas legiões romanas.  

Marte era celebrado sobretudo em Roma e sob a forma de Quirinus possuía um sacrarium no Palatino, na  chamada Roma Quadrata de Rômulo. Era lá que se encontravam as lanças sagradas do deus e os doze ancilia, broches sagrados que, segundo a lenda, teriam caído do céu durante o reinado de Numa Pompílio, rei mítico de Roma, confiados ao colégio sacerdotal dos salianos.

A  importância de Marte era tão grande entre os romanos, principalmente no período em que Roma se tornou o “centro do mundo” antigo, que o seu aniversário era celebrado nas Matronálias, festas dos dias das mães, nas quais se homenageava Juno e se celebrava também a reconciliação entre romanos e sabinos. O grande dia dessas festas era o primeiro de março.

Marte, como se disse, era também o deus da primavera e, como tal, o deus da juventude. Os romanos herdaram dos sabinos esta associação. Os sabinos viviam no centro da Itália (Sabina, entre o Lácio e a Úmbria) e faziam parte do grupo Sabeliano, derrotado pelo latinos no séc. III aC. Os sabinos tinham Marte como divindade tutelar de sua juventude, principalmente da juventude que deixava a casa paterna em busca de terras novas e riqueza (vide mito grego do Velocino de Ouro). O lobo era um dos animais sagrados do deus  na condição de deus da juventude. É deste contexto, ao que parece, que sai o mito da loba que amamentou os gêmeos Rômulo e Remo.
REIA SILVIA


Na melhor tradição mítica latina, Rômulo e Remo, fundadores de Roma, são filhos do deus Marte e da vestal Reia Silvia. Quando esta se dirigiu a uma fonte para buscar água, o deus a violentou. Ela acabou encarcerada, quando descoberta a sua gravidez. Nascidos os gêmeos, Amúlio, tio da jovem vestal, mandou expor as crianças às margens do rio Tibre, perto do monte Palatino. 


RÔMULO   E   REMO

As crianças, no entanto, ao invés de expostas, foram colocadas num cesto, lançado ao rio, levando-o a correnteza até um ponto em que ficou preso a uma pequena elevação de terra, perto de uma figueira, que, por esse fato, receberia mais tarde um culto especial.

A loba, animal consagrado a Marte, alimentou as crianças. Um picanço, ave também consagrada a Marte, trazia diariamente alimentação sólida a elas. O pastor Fáustolo, inspirado pelos deuses, passou pelo local e as recolheu, entregando-as a sua esposa, Acca Larência, para que os criasse. 

Alguns mitógrafos apresentam uma outra versão desta história, menos canônica, digamos. Segundo elas, não houve loba nenhuma. Quem cuidou das crianças foi Acca Larência, mulher do pastor, chamada então de Lupa, loba, palavra que em latim queria dizer também prostituta.


FÁUSTULO,   ACCA   LARÊNCIA,   RÔMULO   E   REMO

Crescendo, as crianças foram enviadas por Fáustulo, sempre sob proteção divina, para estudar. Depois de inúmeras peripécias e de terem tomado conhecimento pelo pastor de sua origem divina, os dois jovens, unindo-se a outros pastores, mataram Amúlio e devolveram o trono a Númitor, pai de Reia Silvia. 


MONTE    PALATINO

Númitor deu aos netos o monte Palatino para que lá fundassem uma cidade. Para tanto, os irmãos consultaram os áugures. Rômulo optou pelo Palatino e Remo pelo Aventino. Acabaram brigando e Rômulo, furioso com o irmão, por ele ter invadido a área já por ele definida, matou-o. Arrependido, sepultou-o ritualmente. 

Roma, segundo a tradição, foi fundada no dia 21 de abril de 753 aC para uns e 772 aC para outros. Achando que a cidade não prosperava, sendo muito pequeno o número de seus habitantes, Rômulo cedeu terras a todos os que desejassem se mudar para lá,
RAPTO   DA   SABINA
inclusive escravos, exilados, fugitivos, insolventes e mesmo assassinos. O grande problema, porém, era a falta de mulheres. Foi então planejado pelos romanos o rapto das sabinas, episódio muito famoso da história da cidade. Travou-se então uma grande luta; quase vencidos os romanos, Rômulo, desesperado, pediu proteção a Júpiter, sob a promessa da construção de um grande templo no local em que os sabinos fossem vencidos. Assim aconteceu: Rômulo mandou levantar um grande templo em homenagem a Júpiter Estator (o que faz parar, o que segura), localizado no Palatino, local da vitória. 


Logo a paz foi restabelecida entre romanos e sabinos. Consta que foram as própria jovens sabinas que, tomando o partido de seus raptores, pediram que a batalha terminasse. Rômulo, pelos romanos, e Tácio, pelos sabinos, passaram a dividir o poder. Morrendo Tácio, Rômulo assumiu sozinho o poder. Tendo governado por trinta e três anos, consolidou o poder de Roma sobre os povos vizinhos, instituindo leis e preceitos civis e religiosos. Rômulo tornou-se, com justiça, o grande Pater Patriae.

A lenda nos diz que Rômulo foi arrebatado em vida pelos deuses. Ao passar revista às tropas, no Campo de Marte, a cidade foi assolada por grande tempestade, tudo ficou às escuras. Como se constatou, nesse dia, num dia sete de julho, aos cinquenta e quatro anos, Rômulo desapareceu, nunca mais sendo visto. 

Em Roma, a história dos gêmeos Rômulo e Remo passou a ser representada através da Loba Sagrada, a cujo ventre, às suas tetas, duas pequenas figuras humanas estão unidas. Simbolizam elas as duas raças, a latina (romana) e a sabina. Por extensão, as demais raças, marsos, marrucinos e mamertinos, todos itálicos, incorporados ao mundo lácio-sabino,  passaram a ser considerados descendentes do deus Marte.

Numa Pompílio (715-672 aC), rei lendário de Roma, sabino piedoso e pacífico, inspirado pela ninfa Egéria, organizou a vida religiosa romana, fundou colégios religiosos das vestais, dos pontífíces, dividiu o ano em doze meses e estabeleceu os dias fastos e nefastos. Egéria (pôr para fora, extrair) era uma ninfa das fontes, muito cultuada por mulheres grávidas. Passava por uma espécie de conselheira de Numa Pompílio.

QUIRINUS
Eram oferecidas ao deus Marte, como vítimas sacrificiais, o touro, o varrão, o galo e o abutre. As mulheres romanas costumavam sacrificar a ele, no dia primeiro de março, um galo. O costume sabino de adorar Marte sob a forma de uma lança (quiris) foi adotado pelos romanos. Daí, Rômulo ser chamado de Quirinus e de Quiritis o cidadão romano. 


CIBELE
Os cultos onde entrava o touro em Roma vinham de duas fontes: da Ásia Menor através do taurobolium, ligado à deusa Cibele, Grande-Mãe, um batismo de sangue. Aquele que se submetia a ele tornava-se um renatus ad aeternum, o nascido para uma nova vida. Outra ligação do Marte romano com o touro foi estabelecida através do Mitraísmo, culto de origem iraniana, de significação semelhante ao anterior. 

As
MITRA
legiões romanas haviam espalhado pelo império este culto com o nome de Mitra, Deus Vencedor. Este título fazia referência ao início do retorno do Sol ao hemisfério norte, com o nome de Sol Invictus, celebrando-se a sua festa no dia 25 de dezembro, dia do Sol Natalis. No mitraísmo também se degolava o touro sagrado, cerimônia que dava acesso à luz eterna.

Estas cerimônias, interpretadas segundo a Astrologia mundial, significavam a passagem da era do Touro à de Áries, acontecimento que ocorreu matematicamente em 1662 aC, permanecendo o Sol nesta última constelação até 498 dC, ou seja, por 2160 anos, quando então teve início a era de Peixes (498-2658), na qual nos encontramos em seus séculos finais. 

O varrão é o porco escolhido para ser reprodutor e, por isso, poupado de sofrer castração. Universalmente símbolo da voracidade, qualificado, por isso, como impuro, o porco assumiu um lugar importante nos cultos religiosos da antiguidade. Devorando tudo, lembra as tendências obscuras do ser humano, a luxúria, a concupiscência, o egoísmo. 

Na tradição grega, o sangue do varrão era purificador, sendo usado
SANTO   ANTÔNIO
inclusive nos cultos de Apolo para lavar as impurezas morais e crimes (Orestes). Em razão de sua predileção pelo lixo, por restos de comida, o porco, no simbolismo medieval, transformou-se na imagem do Diabo, da voluptuosidade, dos prazeres imundos. É por esse motivo  que na iconografia medieval o porco aparece aos pés de alguns santos (Santo Antonio especialmente), a indicar uma vitória sobre a natureza animal do ser humano.





Os gregos prezavam de modo especial a porca como símbolo da fertilidade (uma gestação a cada três meses, ou melhor, três semanas e três dias, número mágico por excelência) associando-o a Deméter, sacrificando-se o animal à deusa para ser obtida a fertilidade dos campos. Entre os romanos, a porca era objeto de veneração. Diz o mito que foi uma porca, acompanhada de suas crias, que indicou a Enéas, príncipe troiano, no Lacio, o local nais adequado para a fundação de Lavinium.  

O galo, além do que já se disse sobre ele na Grécia (alectrion) é ave  que, por suas “virtudes” militares, aparece ligado a uma exaltação solar. Seu canto, em muitas tradições, é de bom augúrio, como aconteceu quando ele anunciou, entre os gregos, a vitória de Temístocles sobre os persas. Natural e benéfico, o canto do galo é funesto quando ouvido antes da meia-noite, em horas insólitas. Reputado por sua coragem e virilidade, é, por direito, o rei do galinheiro. Em muitas tradições, aconselha-se ao homem que não tem filhos comer todas as manhãs, na primeira refeição matinal, um testículo de galo.


CAPITÓLIO

Rômulo e Remo, quando estavam para demarcar as áreas da cidade que fundariam, viram abutres, o primeiro posicionado no monte Palatino e Remo no monte Aventino. Rômulo viu doze abutres e Remo apenas seis. Como ave divinatória, o abutre favoreceu, neste caso, Rômulo, que imediatamente, com a sua charrua, traçou os limites da sua Urbs, que, do Palatino, avançou em direção do Capitólio e de outros lugares. Com efeito, das sete colinas de Roma, o Palatino conserva até hoje o status de centro da Cidade Eterna e é o local que mais emoção oferece aos seus visitantes, não só por interesse arqueológico, mas sobretudo pela sua paisagem. Lembre-se que nesta colina Domiciano  mandou levantar o palácio Domus Flavia, onde se desenvolvia a vida oficial da cidade (Domus Augusta) e se situava a residência privada dos imperadores.