segunda-feira, 10 de agosto de 2015

MABOROSI - A LUZ DA ILUSÃO


SEPPUKU
Sabemos, há muito, que o tema do suicídio faz parte da história social e cultural do Japão. Datam do séc. XI ou XII as primeiras notícias que temos sobre o ritual suicida japonês reservado à classe guerreira (samurai), só abolido legalmente em 1868. Era o Harakiri (rasgar o ventre abaixo do umbigo), chamado no Japão de Seppuku, que fazia parte de um código de

honra, Bushido (ver o filme de Tadashi Imai, de mesmo nome). 
Os guerreiros escolhiam esse modo de morrer para não cair nas mãos de inimigos ou quando, embora não capturados, perdiam uma batalha. Os aristocratas também  praticavam o ritual quando se viam caídos em desgraça ou expostos à desonra pública por terem cometido crimes ou delitos. 


KAMIKASES
Durante a segunda guerra mundial (1939-1945), os japoneses criaram um novo ritual para a morte. Jovens pilotos, chamados Kamikazes (vento divino), com seus aviões carregados de explosivos, lançavam-se contra navios dos aliados na guerra do Pacífico. Declarados heróis, a religião xintoísta os considerou como entidades (espíritos) protetores da pátria. 


MABOROSI
Evidentemente, Maborosi, o excepcional filme de Kore-Eda, nada tem a ver com as duas maneiras de se pôr fim à vida voluntariamente como as que mencionamos, se é que podemos considerá-las como suicídio. O que se tem, quando apreciamos mais de perto a questão, é  que,  na vida da sociedade japonesa encontramos, há muito, também, como um exemplo único talvez na história da humanidade, registros de um grande número de suicídios praticados pela gente do povo. Gente anônima que silenciosamente põe fim à própria vida, seja por cansaço, por revolta, por incontrolável pulsão tanática ou simplesmente porque não quer mais viver.  

Nada gloriosas, estas mortes nunca tiveram o charme daquelas a que kamikazes  ou samurais em desgraça se entregavam. Nunca
A BALADA  DE  NARAYAMA
foram celebradas por artistas nem poetas. Por muito tempo, a não ser em alguns poucos casos noticiados, os poderes públicos, ao que parece, as ignorou, nenhuma ideia de criminalizá-las (válida talvez a velha máxima: nulla poena sine crimene). Apenas o cinema parece ter se sensibilizado pelas histórias dos que procuraram esse tipo de morte. Um dos primeiros cineastas a tratar do assunto foi Shoei Imamura que, com A Balada de Narayama (1983), venceu o Festival de Cannes do ano. 


O filme narra a história de Orin, que, prestes a completar 70 anos, vive numa pobre aldeia do norte do Japão. Os moradores que chegassem a essa idade passavam a ser considerados como incapazes de contribuir para o bem-estar da comunidade. Levados para o pico de uma montanha da região (monte sagrado de Nara) e lá abandonados, ficavam à espera da morte pelo frio e pela fome.  

Uma explicação? As classes sociais japonesas menos favorecidas, muito mais tocadas por influências xintoístas e budistas que as elites, certamente, criaram também as suas formas de suicídio. Marcadas fortemente por essas tradições religiosas que consideravam a morte como um rito de passagem para uma outra forma de existência e que tinham em alta conta conceitos e sentimentos como os de Honra, de Pudor, de Dignidade, de Vergonha e de Vida Coletiva, essas classes sempre associaram vida comunitária, patriotismo e suicídio com ideias de salvação do nome pessoal e familiar. Ao longo de séculos, muitas pessoas no Japão se mataram e talvez continuem se matando por essas razões.


TORII  -  SÍMBOLO   DO   XINTOÍSMO

O xintoísmo (caminho dos deuses) histórico, uma forma de animismo, data do séc. VIII. É um conjunto de práticas e observâncias assim chamado para distingui-lo do budismo, que por essa época chegou ao Japão vindo da China. As cerimônias xintoístas procuram invocar os kami, poderes da natureza, para lhes pedir um tratamento benévolo e protetor. Abstinência, oferendas e purificação fazem parte das práticas. O xintoísmo destaca a importância da pureza e do reto agir para a obtenção de benefícios mundanos, considerados como dádivas divinas. O convívio grupal é orientado por rígidos princípios éticos e o que é bom para o grupo é o moralmente apropriado.

Desde que chegou ao Japão, o budismo sempre apareceu associado ao xintoísmo, fixando-se como uma espécie de seu complemento. Ideias e cerimônias budistas se misturaram às xintoístas quando pensamos nas práticas religiosas das camadas menos favorecidas da população japonesa,  principalmente nos meios rurais. Difícil mesmo separar umas das outras. Ao que parece, porém, apesar de um grande número de seitas, de subseitas e de pequenas associações de ambas as tradições, elas coexistem harmoniosamente, o dia-a-dia do homem comum ficou sob a tutela xintoísta enquanto para as questões da morte, dos funerais e do
OBON
Além são priorizadas as práticas budistas. É comum dizer-se que o homem do povo vive como xintoísta e que morre como budista. O calendário referente às homenagens prestadas aos mortos é de inspiração nitidamente budista. Destaque especial para a grande celebração do Obon (Finados), o segundo maior ferido nacional do Japão. Acima dele, só as cerimônias referentes ao Ano Novo. No Obon (feriado de três dias no mês de agosto), os japoneses “recebem” as almas de seus antepassados, que voltam para visitar os lugares em que viveram. 


No geral, o budismo japonês entende que o espírito ou alma pode retornar com um corpo físico, caso da reencarnação, algo que acontece, nessa concepção, segundo leis naturais. Tanto a proposta xintoísta como a budista falam de uma iluminação obtida através de muitas experiências e aprendizado. A iluminação unifica a pessoa à verdade e ela não mais ficará submetida ao ciclo de nascimentos, mortes e  reencarnações (samsara para os hindus). Retornará como espírito à chamada Terra Pura, fonte e origem da vida.   

Hoje, talvez menos, muitas pessoas no Japão continuam se matando porque erraram, porque faliram nos seus negócios, porque foram demitidas, porque desonraram o nome familiar de algum modo, porque preferiram se matar a se verem dependentes dos outros na velhice, porque nos períodos de crise o país “não vai bem”, ou porque, simplesmente, não querem mais viver. 

AOKIGAHARA -  FLORESTA  DOS  SUICIDAS  ( MONTE  FUJI )

Incorpora-se a esta maneira de pensar uma espécie de culpa, uma sensação de culpa coletiva, melhor, que faz as pessoas se sentirem de qualquer modo responsáveis pelo que acontece na vida coletiva. Não é por outra razão que o suicídio da gente comum no Japão tem o nome de inseki jisatsu, expressão que significa aproximadamente responsabilidade coletiva. Há mais ainda: dão-se nomes também ao suicídio de amantes, de mães e filhos, de velhos e mesmo de membros de toda uma família. “Cultura da vergonha”, “Suicídio em nome da honra” e “A morte digna” são, dentre outras, expressões que encontramos em textos recentes dos que estudaram, além de Émile Durkheim (O Suicídio, 1897), o tema, mais ou menos profundamente, como é o caso de The Chrysanthemum and the Sword, de Ruth Benedict, 1954 (traduzido no Brasil com o título de O Crisântemo e a Espada) e de La Mort Volontaire au Japon, de Maurice Pinquet (a quem Roland Barthes dedicou o seu L´Empire des Signes, de 1984). 

Qualquer que seja o viés que usemos para nos aproximar do tema, as estatísticas são impressionantes. Cerca de 70 japoneses se suicidaram diariamente no país em 2014; na Coreia do Sul, um pouco mais. Causas? Além de  todo o substrato religioso-cultural, ainda muito presente,   acrescentem-se outros fatos, que o mundo atual, profundamente globalizado, vem produzindo em larga escala: problemas econômicos generalizados, doença, velhice prolongada, depressão, competitividade feroz nos ambientes de trabalho, diminuição dos orçamentos de previdência social, perda de status, humilhação, desmoronamento da vida familiar, desmoralização do poder patriarcal, incertezas com relação ao futuro, aumento das taxas de desemprego etc. 

É nesse cenário, altamente dinamizado hoje por processos tecnológicos (Internet), que notícias sobre o suicídio se espalham instantaneamente. Facilita-se bastante com isso o contacto entre pessoas que, por razões diversas, não querem mais viver. Se estou infeliz e descontente, a pergunta é inevitável: por que não encontrar companheiros que queiram, comigo, acabar com tanto sofrimento, medo e isolamento, já que a morte não é um fim? 


HIROKAZU   KORE - EDA

Achamos que é dentro deste contexto que os filmes de Kore-Eda, principalmente   Maborosi e Depois da Vida podem ser apreciados. Tendo recebido mais de quinze prêmios internacionais, Maborosi, seu primeiro filme, realizado em 1995, é unanimemente considerado uma obra-prima. Tem como tema o suicídio, ideia que persegue enigmaticamente a vida de uma mulher desde a infância. Yumiko (etimologicamente, bela)  tinha 12 anos quando sua avó retornou à sua cidade natal com a disposição de ali morrer. Sente-se Yumiko, de algum modo, culpada por este acontecimento, por não ter conseguido dissuadi-la. 


MAKIKO  ESUMI

Passam-se os anos. Casa-se Yumiko com Ykuo (etimologicamente, superior, útil), que entra na sua vida mais como uma entidade protetora do que como marido, como a avó o fora. Nasce um filho, Yuichi (etimologicamente, corajoso). Um dia, sem nenhuma causa aparente, o marido se suicida. Andava pelos trilhos da ferrovia e foi apanhado pelo trem. Suicídio, conforme a versão policial. Dele nada restou, a não ser uma peça da sua bicicleta. Yumiko se sente também culpada. Seria ela a causa da morte das pessoas que amava? 


YUMIKO   E   A   AVÓ

Cinco anos depois, Yumiko conhece Tamio, um pescador que foi abandonado pela mulher e que vive com uma filha pequena. Os dois se casam e tudo parece tranquilo. Ao voltar à sua aldeia natal, para o casamento de uma irmã, lembra-se Yumiko do marido que morrera, do seu inexplicável suicídio. A vida prossegue. Tamio vai para o mar e uma tempestade se anuncia. Yumiko sente mais uma vez a morte rondando a sua vida...

Delicado, sensível, pungente, humano, lírico, compassivo, são adjetivos usados para descrever Maborosi, uma das maiores obras do moderno cinema japonês, que se situa na contracorrente de grande parte da produção cinematográfica de hoje. Os adjetivos acima foram usados pela crítica mais consequente e por gente de cinema mais inteligente para se referir a Maborosi. Adjetivos há muito ausentes da crítica cinematográfica ocidental, principalmente com relação ao grande cinema americano, todo produzido, para as massas, na base de blockbusters, cheios de violência e destruição, com adjetivos como amazing, terrific, astonishing e outros. Estranha sina a dos USA, que, embora tendo um cinema de qualidade (pouquíssimo consumido pelo grande público), banaliza a morte, exporta guerras e faz o cinema mais violento mundo.

O filme de Kore-Eda é também uma grande homenagem ao que de melhor havia na produção cinematográfica japonesa. Referências plásticas, enquadramentos e pouquíssimos movimentos de câmera constituem um tributo prestado por Kore-Eda ao grande mestre Yasujiro Ozu, um dos maiores cineastas de todos os tempos, nascido em 1903 e falecido em 1963, no dia em que completou 60 anos (12 de dezembro). Na lápide do túmulo de Ozu, muito visitado por Kore-Eda, uma única inscrição: MU, isto é, nada, vazio, na doutrina Zen. Um nada, um vazio, que se transforma em presença.


TÚMULO   DE   OZU

Kore-Eda, em Maborosi, opta sempre por um registro mais intimista e lento da história, que, a rigor, não tem nenhuma trama. Neste sentido, o filme chega a ser radical ao expor, como conceito de morte, duas possibilidades, a natural e o suicídio. A ideia está sintetizada na primeira cena do filme, quando a menina tenta dissuadir sua avó a não voltar à sua cidade natal para morrer (citação de A Balada de Narayama?). Em todo o transcorrer do filme, o diretor não altera o registro da narrativa, pouco movimenta a câmera e faz do silêncio um aliado para chegar à verdade, à
YASUJIRO   OZU   
interioridade do personagem. Como Ozu, Kore-Eda renuncia aos excessos dramáticos e à ação, aos efeitos mirabolantes, às piruetas estilísticas. Já neste primeiro filme, ele se revela um mestre no uso da imagem e dos enquadramentos, tratando cada fotograma como um artista plástico. Vale-se, como Ozu, por exemplo, para marcar as alterações da história, de recursos como o da mudança das estações. Tudo isto de certo modo
CARL   G.   DREYER
enxuga o filme, reduzindo-o ao essencial, ao fundamental, dando-lhe uma grande simplicidade, uma característica encontrada tanto no teatro
No como na poesia japonesa Haiku (a máxima expressividade com um mínimo de sinais) e certamente em outras inspirações declaradas do diretor, como Robert Bresson e Carl G.Dreyer.     

O roteiro do filme é de Yoshihisa Ogita; a montagem, de Tomoyo Oshima; a música, de Chen Mingchang; a fotografia, de Masao
MASAO   NAKABORI
Nakabori. Elenco: Makiko Esumi (modelo de moda), Takashi Naitoh, Tadanobu Asano e Gohki Kasiyama. O filme foi inteiramente rodado com iluminação natural, praticamente sem nenhum close up. A câmera não segue os atores, filma-os a uma certa distância. Muitas vezes, Kore-Eda usa deliberadamente os famosos planos com a câmera fixa ou baixa do mestre Ozu. Declarou ele que a iluminação e a composição das tomadas tiveram a intenção de evocar o mundo interior de Yumiko. No mais, o filme é o tempo que passa, a irreversibilidade das coisas, o seu eterno fluir...


O diretor Kore-Eda nasceu em 1962, em Tokyo. Formado em literatura pela Universidade de Waseda, especializou-se na produção de roteiros cinematográficos. Na TV, ganhou vários prêmios com documentários. Escreveu um livro sobre a morte, uma preocupação constante em sua obra cinematográfica, juntamente com questões relacionadas com a memória e as perdas humanas, as afetivas em especial. 

Seus filmes são sempre visualmente intensos, com grande atenção para os detalhes. A distribuição de linhas e formas, da posição de pessoas e objetos dentro do plano, pode às vezes parecer geométrica. Porém, devido ao material empregado na arquitetura interior japonesa, madeira, fibras naturais, motivos florais, papel (tudo muito diferente da frieza do concreto, do metal e do vidro no ocidente), há sempre uma transmissão de calor humano, de relaxamento, de brandura. 

Além de Maborosi,  outros filmes de Kore-Eda se relacionam com a morte, mais ou menos diretamente. Dentre eles, os já citados Depois da Vida (1999) e Tão Distante (2001),  mais Seguindo em Frente (2009) e Our Little Sister (2015), ainda sem título em português, exibido no último festival de Cannes. 


Maborosi é um desafio para o grande público desinformado e acostumado a ver no cinema só correrias, violência e explosões ou, então, além de uma indigência mental alarmante dos seus personagens, muita grossura e boçalidade a título de comédias. O núcleo de Maborosi é tão só o da pequena história de uma mulher que não encontra a paz procurada, embora tente de maneira até obsessiva compreender o que levou o primeiro marido à morte (lembramo-nos muito, por causa desse minimalismo do filme, de uma obra, que na literatura, dialoga com Maborosi, o Le Picole Virtú, de Natalia Ginzburg). O que marca também o filme não é

tanto a sua pequena história, aquilo que se expõe, mas um certo rumor de fundo, quase inaudível, uma faísca acesa pela luz da ilusão. Maborosi é algo que brilha no mar (ou será imaginação?). Os marinheiros conhecem essa luz, uma fantasia talvez, mas não conseguem resistir ao seu chamado, que pode levá-los à destruição. Como as sereias, Maborosi atrai, promete alguma coisa, prazer, esquecimento, ninguém sabe ao certo. Outra lembrança nos ocorre: na Odisseia, a sereia, a “cruel cantora”, que Ulisses ouviu, mas que não quis seguir.
Maborosi é uma palavra intraduzível; apenas uma luz fugidia que os marinheiro vêem ou julgam ver quando estão em alto-mar, extremamente perturbadora.

Maborosi não é uma experiência cinematográfica fácil. Como toda verdadeira obra de arte, pede que nos esforcemos para nela penetrar. Quanto mais nos dispusermos a isso, mais cresceremos com ela. Quem não quiser se dar ao trabalho, há certamente muita alienação e idiotice disponível no mercado da distração, no cinema de ação, violento e brutal. 

Kore-Eda faz um cinema de autor. Alinha-se com diretores como Ingmar Bergman (Gritos e Sussurros, Morangos Silvestres) que nos falam da vida ao nos falar da morte, do seu sentido como uma experiência sempre radical, por mais que filosofemos sobre ela e
tentemos desvesti-la dessa característica. Wim Wenders é outro cineasta que faz da morte um dos grandes temas de alguns de seus filmes. Quando pensamos em Kore-Eda, não podemos deixar de mencionar, além dos filmes do já citado Bergman, evidentemente, obras tão importantes de Wenders como Tokyo Ga e Nick´s Movie, o primeiro sobre Ozu e o segundo a filmagem da agonia do grande cineasta americano Nicholas Ray, vitimado por um câncer.