quarta-feira, 22 de julho de 2015

MITOLOGIAS DO CÉU - JÚPITER (5)

                       
Para as pessoas de mentalidade literal, é preciso ressaltar que os antigos gregos nunca consideraram as histórias de sua mitologia como fantasiosas, irreverentes ou estapafúrdias. Os mitos, para os gregos, sempre traduziram sob uma forma poética, metafórica, simbólica ou alegórica, e construídos com absoluta maestria técnica sob o ponto de vista literário, os sentimentos e as emoções que eles experimentaram diante dos grandes mistérios do universo.



TITANOMAQUIA  ( CORNELIS  VAN  HAARLEN )

As várias provas pelas quais os seus heróis passaram ao longo de sua vida nunca deixaram também de ilustrar aquilo que eles chamavam de dokimasia, provas iniciáticas, preparatórias, às quais os seus jovens tinham que se submeter. Uma demonstração de que estavam aptos para enfrentar tarefas mais difíceis, os grandes embates da vida, na proporção humana, como as descritas nos episódios da Titanomaquia e da Gigantomaquia. A dokimasia, a rigor, na sociedade grega, era um exame ao qual deviam se submeter os candidatos a determinadas funções (magistratura e cavalaria) bem como os estrangeiros que pretendessem se naturalizar. Este exame era aplicado sob a supervisão dos chamados thesmotetes (arcontes) diante de uma assembleia ou tribunal. Mesmo Zeus se submeteu a provas semelhantes para assumir a posição de o maior dos deuses. 


ZEUS,  CÉRBERO  E  A  ÁGUIA

As lutas que Zeus travou contra os titãs e contra os gigantes ilustram o inconformismo das forças primordiais, constitutivas do universo, cegas e violentas, que precisam ser constantemente vigiadas e constrangidas a se manter dentro de seus limites. É dentro desse cenário que Zeus é uma espécie de reorganizador e recriador do universo. Se interpretarmos o que significa astrologicamente este papel de Zeus, podemos entender porque Júpiter, numa carta astral, não exerce uma função criadora, mas, sim, uma função disciplinadora, redistribuidora, reorganizadora, ao recolocar, se dignificado, a criação numa ordem superior.

Vencido momentaneamente Tifon e notando que os humanos tornavam-se cada vez mais perversos, Zeus alimentou o forte desejo de destruí-los. Para Zeus, os mortais, oriundos do reino de seu pai, criados, segundo Hesíodo, com o limo da terra por Prometeu, eram seres nascidos para o efêmero, pois sua força vital (aion) era precária; colados à terra, rastejavam, alimentavam-se de coisas putrescíveis, vivendo no cuidado e na preocupação. Os deuses vivem no Olimpo, nas alturas, onde as estações não existem, onde o tempo não muda. Os deuses são athanatoi, aiegennetai, imortais e nascidos para sempre. Além disso, são akedees, isentos de preocupação, e eternamente makares, felizes.

Como benfeitor da humanidade, Prometeu resolveu intervir quando Zeus começou a tramar a destruição dos humanos. Para resolver a questão, organizou-se uma reunião entre deuses e mortais na cidade de Mecone, tendo Prometeu assumido a defesa de suas criaturas. Seu desempenho nessa reunião foi, entretanto, lamentável, pois pretendeu enganar os deuses em benefício dos mortais. Para o banquete programado, dividira-se um boi enorme em duas partes; a primeira continha as carnes e as entranhas, cobertas com o couro do animal; a segunda, apenas ossos, disfarçados com a gordura. Zeus escolheria uma das partes, cabendo a outra aos humanos. Zeus optou pela segunda parte. Sentindo-se humilhado, encheu-se de cólera. A punição foi imediata: privou os humanos do fogo, o que equivalia fazê-los voltar à animalidade. A privação do fogo significava também retirar dos humanos o nous, a inteligência, a capacidade de conhecer os eide, as formas, tornando-os anoetos, imbecis.


PROMETEU   ROUBA   O   FOGO   DOS   CÉUS

Prometeu roubou uma centelha do deus Hélio, o Sol, ocultando-a no galho oco de uma figueira, e a trouxe para a Terra, distribuindo-a entre os mortais. Zeus revidou, e resolveu fazer com que os mortais se perdessem para sempre. Até esse momento andróginos, os mortais foram então separados em macho e fêmea, usando Zeus para modelo desta última uma figura por ele idealizada, Pandora (etimologicamente, presente de todos), de cuja confecção participaram todos os deuses. O fogo trazido dos céus por Prometeu ficou com os mortais, mas, desde então, implantou-se entre eles a divisão. 


PANDORA    ( JOHN   WILLIAM   WATERHOUSE )

Pelo seu crime, sob o ponto de vista divino, Prometeu foi punido. Mandou Zeus acorrentá-lo nas montanhas do Cáucaso, missão cumprida por Hefesto, devidamente assessorado por Crato, o Poder, e Bia, a Força. Durante o dia, o fígado do titã era roído por um monstruoso abutre, filho de Tifon e de Équidna, recompondo-se durante a noite, quando a gigantesca ave se afastava, recomeçando-se tudo a cada aurora. Mais tarde, séculos e séculos depois, Zeus aceitou a libertação do titã, mas o obrigou a carregar para sempre nos tornozelos uma argola confeccionada com o aço da corrente que o agrilhoou, preso a ela um fragmento da rocha no qual ela fora fixada.

Dotado de dons divinatórios, Prometeu (o previdente, etimologicamente) tornou-se para os humanos o símbolo da filantropia. Do século XVIII em diante, principalmente a partir do
PROMETEU - BEETHOVEN
Renascimento e depois no Romantismo, para a poesia (Voltaire, Schelegel, Herder, Byron), para as artes plásticas (Ticiano, Rubens, Böcklin) e para a música (Beethoven, Liszt, Orff), Prometeu passou a simbolizar a revolta do pensador criativo, do técnico, do inovador, contra as forças do destino que o querem esmagar. Do ponto de vista dos deuses, porém, o titã sempre foi considerado um criminoso. Para os humanos, um herói, chamado pelo apelido de o Filantropíssimo. Prometeu é hoje o patrono da civilização moderna que deseja desvendar todos os segredos do universo com base no seu prodigioso poder criador técnico, em cuja origem está o fogo, para o qual nenhum limite pode ser admitido.


Os tempos se passaram. O desgosto de Zeus com relação aos mortais crescia. Os vícios e os crimes dos heróis da Idade do Bronze pareciam ter chegado a limites insuportáveis. O Senhor do Olimpo desencadeou então sobre o mundo um dilúvio, chamado dilúvio de Deucalion por ter ocorrido quando este personagem, filho de Prometeu, casado com sua prima Pirra, filha de Epimeteu e de Pandora, reinava na Tessália. Os homens procuraram fugir da terrível catástrofe, fugindo para lugares elevados. Mas lá também foram alcançados. Seguindo um conselho de Prometeu, Deucalião construiu uma grande embarcação, juntou nela vários animais, aos pares, e esperou que a tormenta passasse. 


DEUCALIÃO   E   PIRRA  

Ancorando a embarcação no alto do Parnaso, diminuindo a altura das águas, Deucalião e Pirra desceram e foram consultar um oráculo de Themis, milagrosamente preservado, para saber como a Terra poderia ser repovoada. O oráculo lhes deu a seguinte resposta: Saiam do templo, cubram o rosto, atem vossas cinturas e lancem para trás os ossos de vossa Mãe. Deucalião meditou por algum tempo. Entendeu que o oráculo, ao se referir à Mãe, estava falando da Mãe Terra e que seus ossos eram as pedras. Pôs-se então a lançar pedras às suas costas e notou com espanto que as lançadas por ele se transformavam em homens e que as lançadas por Pirra se transformavam em mulheres. 

Aparentemente fantasiosa, uma invenção poética, esta passagem se fundamenta entretanto em algo que parece ter sido historicamente bem real. Sabe-se que na Tessália, em remotíssimos tempos, havia um rei chamado Deucalion. Um grande terremoto atingiu a região, interferindo no curso dos  rios. No mesmo período em que ocorreu tal terremoto, a região foi assolada por chuvas torrenciais como nunca se vira antes, ficando tudo inundado. O povo da região procurou se refugiar nas montanhas. Muitos morreram, entretanto. Terminada a tormenta, os sobreviventes repovoaram a região. Tudo teve que ser reconstruído a partir do nada, das pedras. A chave da explicação da sentença do oráculo de Themis estava na palavra grega laos, que tanto designa povo como pedra. Juntando as pedras, tudo com o tempo foi reconstruído pelos homens. Perdeu-se o fato histórico, encarregando-se a tradição oral de lhe dar o viés alegórico, mítico.

O comportamento dos filhos de Deucalião e Pirra, a nova humanidade, também voltou a incomodar o Senhor do Olimpo, que resolveu fazer uma viagem à Terra para verificar pessoalmente as notícias que lhe chegavam. O que constatou foi lamentável, desapontador. Não teve outra alternativa senão a de lhes infligir duros castigos. Para isso, escolheu alguns personagens tidos como ilustres e os puniu exemplarmente, para que os demais, amedrontados, temerosos, segundo pensou, se corrigissem.


LICAON   ( HENDRIK   GOLTZIUS )

Dentre os castigados, merece destaque Licaon, rei da Ardádia. Seu grande crime: jamais prestar reverência a Zeus na sua forma de Xenios, protetor dos estrangeiros, pois matava indiscriminadamente todos aqueles que atravessassem as fronteiras do seu reino. Misturando-se entre o povo da região, um povo ingênuo que se dedicava à agricultura, Zeus, embora disfarçado de camponês, chamou a atenção pelo seu porte. Intrigado, desconfiado, Licaon mandou chamá-lo e o convidou para se hospedar no seu palácio, mas com a intenção de matá-lo, como fazia com todos os estrangeiros, conforme nos conta Ovídio. Antes, porém, Licaon tentou obter confirmação sobre a origem  do personagem (seria um deus disfarçado?) que visitava o país. Serviu-lhe, no jantar, os membros de um de seus escravos. Indignado, Zeus transformou-se numa nuvem de fogo que incendiou o palácio e transformou Licaon em lobo. 


LICANTROPIA   ( LUCAS   CRANACH  DER  ÄLTERE )

Esta história, como muitas outras, está na origem de uma antiquíssima tradição mítica de se sacrificar vítimas humanas a Zeus Lício (Lupino) na Arcádia com o objetivo de se afastar os lobos que então infestavam a região, pondo em perigo os homens e os rebanhos. A licantropia (transformação do homem em lobo), lembre-se, está atestada na antiguidade greco-romana por Heródoto, Strabon, Virgílio e outros. Sua origem sempre apareceu associada à história de Licaon, o cruel rei da Arcádia, e à magia agrícola, para se pôr termo às secas e às catástrofes naturais de toda sorte. Feito o sacrifício, Zeus então enviava as chuvas que fertilizavam os campos.  


ZEUS   ( DESENHO  DE  MAARTEN  VAN  HEEMSKERCK )

Zeus é o deus maior dos olímpicos, o organizador do universo. É dele que dependem todas as leis físicas, sociais e morais. Suas tendências negativas aparecem exatamente devido a essa irrefreável inclinação de incorporar tudo (as suas inúmeras uniões e ligações com deusas e mortais), de abranger tudo, o seu cosmocratismo, a sua natural disposição para monopolizar a autoridade e destruir tudo o que pudesse aparecer como autonomia e independência. São comuns no mito os seus rompantes de autoritarismo e a sua enorme suscetibilidade quando as reverências de que se julga merecedor não são feitas. Comuns por isso as suas explosões de cólera, as suas cenas, as cobranças quanto à vassalagem, tudo, no fundo, certamente a configurar um sentimento de inferioridade e de insegurança, que precisa das compensações do seu cerimonial, do seu culto, dos seus ritos, dos quais não abre mão.

Zeus é o grande modelo do patriarca na cultura ocidental, ainda muito poderoso apesar dos ataques que o arquétipo vem sofrendo. Na história do ser humano, quando pensamos em organizações e sociedades que se constituem para governar um país, para administrar uma empresa, mesmo para formar uma família, onde quer que haja comandante e comandados, a cultura que Zeus representa, a do grande chefe, eternamente presente e onipotente, pode e continua a aparecer arquetipicamente.  
  
É oportuno observar que muitos deuses da mitologia grega representam diferentes maneiras de comandar e de administrar, podendo servir de modelos de tipos humanos quando pensamos em administradores de empresas. Cada deus representa um determinado tipo de poder, de influência, mas nenhum como Zeus, que está acima de todos como cappo dei cappi. 

É na cultura das organizações empresariais modernas que o complexo de Zeus encontra o terreno mais propício para se desenvolver. Afora algumas das desejáveis características pessoais do Administrador-Zeus (empatia; demagogia; priorização de contactos informais, diretos, do tipo olho no olho; visitas constantes às bases etc.) o complexo só se configurará em toda a sua plenitude se  incorporar, fundamentalmente, os elementos que fazem parte da vida e do currículo do Senhor do Olimpo. 

HERMES


É preciso salientar que chefes de organizações públicas ou privadas tomados pelo completo de Zeus não podem prescindir, como temos no mito, de uma eficiente assessoria. Zeus jamais dispensou os valiosos préstimos de Hermes, deus que representa a inteligência sagaz, esperta e engenhosa. Hermes é uma peça importante, imprescindível, para que o modelo Administrador-Zeus funcione.


Deslocando-se muito rapidamente (polytropos), Hermes representa o conhecimento objetivo, recolhido de todos os cantos do universo, como também tem a ver com as múltiplas maneiras pelas quais qualquer informação pode ser recebida (subjetividade) e transformada em mensagem. Pode-se dizer que o complexo de Zeus nas suas formas mais pomposas e grandiloquentes, incorporado para ser reverenciado pelo público interno ou externo das organizações, depende sempre, do trabalho sujo (corrupção, comprar jornalistas, cronistas sociais, chantagem, suborno, apropriação de informações privilegiadas em benefício próprio, propagação de boatos desabonadores sobre inimigos ou aliados não mais úteis, eliminação de adversários etc.) do deus Hermes. É Hermes (assessoria) quem limpa a barra de Zeus para que ele ofereça sempre a sua melhor face para o mundo. Não nos esqueçamos que Zeus, divindade do espírito, da luz celeste, do reino do espírito, precisa recorrer constantemente, para firmar e consolidar as suas posições, a ações indignas, conduzidas sombriamente, mesmo criminosamente.

É Hermes, por exemplo, quem se encarrega de fazer o Administrador-Zeus usar os símbolos mais adequados à imagem a
ASSESSORIA   DE   COMUNICAÇÃO
ser projetada, é Hermes quem o faz ser sempre notícia, ser amado pelos comunicadores de jornais, TVs, revistas especializadas. Isto, como se sabe, implica o patrocínio de muitas gentilezas, almoços, jantares, ingressos para espetáculos, fins de semana em hotéis de luxo, meetings, congressos, restaurantes da moda, empréstimo de dinheiro (jamais cobrado), de apartamentos, casas de praia, fornecimento de garotas ou garotos de programa, droga etc. Uma regra de ouro da assessoria hermesiana é aquela que nos diz que, depois da cama, o melhor lugar para se conhecer uma pessoa é a mesa.



HERA  ( GUSTAV  KLIMT )
Outro elemento importante, altamente desejável, na vida do Administrador-Zeus, é que ele tenha uma esposa oficial, como Zeus tinha, apesar de todos os problemas conhecidos. A Esposa-Hera é importante para as solenidades oficiais, para as recepções, para o clube, ficando aos cuidados dela o cenário familiar, a casa ou o apartamento da cidade, a fazenda, a casa de praia,  os filhos bem educados e formados etc., etc. Deverá ser de preferência uma mulher de alta linhagem, de bela estampa, bem tratada e vestida, com sobrenome importante, bem treinada, com algum curso na Europa, que saiba se vestir bem, que não seja monoglota (falar inglês é importante), que esteja, ainda que muito superficialmente, a par do que aconteça nos circuitos artísticos oficiais.  

Faz parte do complexo de Zeus no mundo empresarial outro componente do mito. Refiro-me ao nepotismo. Zeus, no mito, sempre cultuou através de deuses mais próximos, olímpicos ou não, essa forma de criar dependências. O nepotismo é constituído por uma entourage de personagens próximos, familiares, parentes, amigos de infância, colegas de faculdade, compadres, gente conhecida e testada há muito tempo (cuidado com amizades
PAPA   ALEXANDRE   VI
recentes!). O termo nepotismo vem de nepos, nepotis, neto, em latim. O nome foi usado na Idade Média para designar os filhos ou netos dos Papas que passaram a acompanhá-los, mas evidentemente não como tal reconhecidos. Eram considerados como sobrinhos, protegidos, favoritos, "aspones" privilegiados. Um dos casos mais escandalosos de nepotismo foi protagonizado pelo Papa Alexandre VI (fa mília Bórgia, sécs. XV-XVI), que nomeou cardeais seu filho (16 anos), sobrinhos, cunhados e amigos.  



LOUIS XIV (HYACINTHE RIGAUD)
Exemplos do complexo de Zeus podem ser encontrados em muitos personagens ao longo da História. O imperador romano Otávio Augusto, Luiz XIV, o rei Sol, são bons exemplos. Nos tempos modernos, William Randolph Hearst, magnata da imprensa americana (o Cidadão Kane do filme de Orson Welles). Thomas Mann, com o seu Os Buddenbrook, e Robert Musil, com O Jovem Törless nos dão grandes exemplos. Um dos mais bem acabados modelos do complexo nós o encontramos na biografia de David Selznick, grande figura do cinema americano entre os anos 1920-1950.