sexta-feira, 22 de julho de 2016

QUESTÕES ALQUÍMICAS: A MORTIFICAÇÃO

     


Desde a nossa mais recuada História, em várias civilizações, em períodos e épocas diversos, encontramos alguns indivíduos que decidiram viver à margem da sociedade, sem qualquer ambição, renunciando aos bens do mundo e às suas satisfações.


VARANASI    -   ÍNDIA

Qual o motivo fundamental desta decisão? Desenganos, decepções e desilusões com as coisas mundanas, geralmente, são as motivações principais. Contudo, há, também, aqueles que não passando por nada disto simplesmente acharam que o verdadeiro caminho era o da renúncia. Em todos os que partem para esta opção, qualquer que seja a motivação, uma tônica parece ser a dominante, a busca de Deus, traduzida sempre por uma imersão no Todo, um rompimento dos limites do eu, uma entrega que envolve a totalidade do ser, o corpo e a alma, experimentada tanto interiormente como exteriormente.

No que é mais evidente para nós, sempre, falamos de despojamento, de abandono da pátria, da família, da casa, dos amigos, da vida profissional, tudo roda quando a decisão se impõe. Para o mundo, no geral, para o homem comum, esse comportamento é incompreensível, absurdo, uma espécie de suicídio. Para o homem ocidental, muito mais do que para o oriental, uma decisão dessas é sempre algo escandaloso, extravagante, caso de patologia médica, de psiquiatria, quando não de ordem pública, a exigir a intervenção do poder policial.

Estes seres, hoje muito raros no ocidente, são (eram) chamados de ascetas (do grego, exercício), penitentes (do latim, arrependimento,
CAVERNA   DE   EREMITAS
pesar), nômades (do grego, pastor), seres que abandonaram tudo para ir em direção de algo maior. Outros se fixam num lugar isolado, em grutas, cavernas, são os eremitas (do grego, isolado), os anacoretas (do grego, retirar-se, afastar-se). Essa paixão que os consome os torna perigosos sob o ponto de vista social. A sociedade deve ser fruto da vida moral, que, como sabemos, pede convivência, reciprocidade, ajustes, trocas. Esses seres de que falamos não querem nada disto. São cegos para tudo o mais o que não seja a sua entrega total, a sua salvação, o da adoração e da efusão com o Todo, uma diluição no Inefável, no Absoluto.


Para as sociedades organizadas, quaisquer que sejam os seus regimes políticos, econômicos ou religiosos, a impressão que fica é a de que esses seres são personalidades psicopatas ou, na melhor das hipóteses, neuróticas, fixadas apenas numa ideia, masoquistas inclusive, presos a uma atitude improdutiva, perniciosa. São parasitas, ervas daninhas, que não só ameaçam a ordem pública, que sobrevivem à custa dos outros, como dão um péssimo exemplo.


PADRES   EREMITAS

Se entendermos que a vida pede produtividade, eficiência, sucesso econômico, ascensão social, esses seres realmente não servem para
MOSTEIRO   AGIOS   TRÍADAS  
METEORA  -   GRÉCIA
nada. Num mundo onde se investe tanto no ego, inflado de mil maneiras, esses seres são incômodos, causam mal-estar. Num mundo como o nosso, com tanta tecnologia à nossa volta, a grande utopia, o grande sonho da maior parte da humanidade é sem dúvida o consumismo nas suas mais variadas expressões, através do qual se cultuam todas as formas de poder. Seres como aos que nos referimos são incômodos, não nos causam nenhum prazer. Não fazem eles parte do nosso mundo, um mundo no qual a mensagem evangélica publicitária diz insistentemente que para sermos alguém será preciso possuir sempre mais, pois a felicidade é daqueles que acumulam, sempre glutões, grandes consumidores de bens materiais, inclusive dos produtos culturais de massa oferecidos pelos meios de comunicação. 

Além da renúncia física, material, os seres a que nos referimos renunciam também a qualquer opinião ou saber. Esta radicalização os faz voltar a um estado semelhante ao da inocência e da nudez originais. Para tanto, livram-se também do passado, da memória, de qualquer projeto futuro, perdendo até o seu nome e sua pátria. Seu tempo é o presente, eternamente real.



SÍMBOLOS   DO   CRISTIANISMO   


AUTOFLAGELAÇÃO
IDADE   MÉDIA
Na civilização ocidental, no início do Cristianismo, podemos encontrar, não com o radicalismo como os encontramos no Oriente, muitos exemplos desses seres, menos isoladamente e muito mais em grupos. Os exemplos, entre nós, podem ser buscados também da baixa Idade Média até o século XIX. As propostas que no Cristianismo mais se aproximaram daquelas formas encontradas no Oriente, principalmente na Índia, estão sem dúvida no Cristianismo primitivo. 

Aos poucos, porém, o Cristianismo procurou coibir de todas as maneiras essas experiências, chegando mesmo em muitos casos a exterminar os que as tentassem. Só entre as camadas mais baixas da população na Europa é que essas experiências encontraram, como na Índia, acolhida e compreensão. Receber um desses eremitas ou caminhantes era não só um dever, mas um privilégio, uma bênção, pois representavam uma esperança e também um exemplo, o de
JAINISTAS   DIGAMBARA
que, como eles, talvez pudessem aqueles que deles se aproximassem aprender a se libertar do desejo, das suas garras, do medo, do egoísmo. Importante, por isso, tocá-los, falar-lhes. Este modo de assim considerar esses seres, homens-santos, sannyasins, saddhus, é ainda comum na Índia, principalmente no interior do país. Nas grandes cidades indianas suas aparições são hoje sempre insólitas, extravagantes, rebaixados que ficam os modelos ao exotismo para turistas, transformados invariavelmente em modelos fotográficos. 



MORTIFICAÇÃO

Uma das principais características do comportamento desses  seres, em todas as épocas, com maior ou menor intensidade, é (foi) a mortificação. Ou seja, a adoção de determinadas práticas corporais de flagelação através de penitências, como jejuns e castigos corporais, com a finalidade de inibir desejos, de refreá-los ou de lhes dar a morte, através da autoflagelação, da tortura, da repressão de determinados sentimentos.   


MORTIFICAÇÃO
A mortificação, nos diz a Alquimia, é a mais radical e violenta operação que podemos aplicar à matéria no sentido de transformá-la. Indo mais longe, é também a operação que, no âmbito religioso, pode aniquilar a mente, a maior autoridade na hierarquia da nossa vida consciente. Simbolicamente, a mortificação assim entendida equivale a um regicídio, pois é acompanhada por uma dissolução regressiva do comando da personalidade. O que sempre se busca então é a sujeição das paixões e dos apetites por meio de rigores dolorosos infligidos ao corpo. São símbolos ligados à mortificação, exemplificando, o fogo, a foice, o esqueleto, o chicote, o porrete, o lobo, o rei, a caveira. A cor da mortificação é o negro, cor que lembra a tortura, a derrota, o pântano, a queda, a supressão da luz, o apodrecimento. A mortificação procura, assim, tornar a vida difícil, miserável. Enfrentada, leva à luz, ao renascimento, à ressurreição, a uma nova forma de vida.

A espiritualidade hindu propõe uma grande diversidade de caminhos para que possamos chegar ao Todo, voltar ao Brahman, partindo sempre do conceito básico, fundamental, de que não existem realidades divinas privilegiadas, superiores, de um lado, e o mundo material, profano, grosseiro, inferior, de outro. Tudo é sagrado. Em nenhuma outra religião encontramos tantas vias de acesso ao Todo. É lá que encontramos, como em nenhum outro lugar, os mais estranhos exemplos desses solitários seres, andarilhos metafísicos, que se entregam à miséria e ao sofrimento prazerosamente, com uma expressão de tranquilidade no rosto como raramente a encontramos em pessoas entregues a essa experiência.  

Na Índia, aquele que se dispõe a entrar nesse caminho deve buscar a melhor maneira de fazê-lo conforme a sua personalidade,
MOKSHA
segundo nela predomine a atividade intelectual e racional, a física, a emocional, os sentimentos, a aspiração devocional, o dom de si mesmo e mesmo a sexualidade. Qualquer que seja a via escolhida, a meta final é a mesma, o buscador deve tornar-se um jivan-mukta, um liberto em vida, alguém não mais submetido ao mecanismo dos desejos e do medo. Aquele que chega a esse estado, coloca-se acima de toda limitação psicológica e reconhecidamente situa-se acima, fora de toda regra social. Libertou-se dos três corpos (físico, emocional e mental), entrou na quarta etapa, a de moksha, a do liberto em vida.


ANDREI   RUBLEV   (CENA   DE   FILME  DE   ANDREI   TARKOVSKY)


ÍCONE  DE  ANDREI  RUBLEV
Nos primeiros momentos do Cristianismo, uma das experiências mais interessantes que encontramos no sentido do que acima se expôs foi a da chamada Igreja Oriental. Os religiosos do Cristianismo oriental sempre se mantiveram mais próximos de uma vivência que buscasse a humildade e o ascetismo, ao contrário do Cristianismo oficial, que sempre se ligou muito mais às elites e ao poder político-econômico, sacramentando-os.



HAGIA   HÉSYCHIA
 É dos monges cristãos orientais a doutrina da chamada "oração do coração", a hésychia, ou seja, uma volta ao reino interior. Propõe essa doutrina um método que começa por certas conquistas (desprendimento, lembrança da morte, humildade etc). Depois, o domínio de certas práticas respiratórias, cujo objetivo é o de fixar a mente, a atenção, e unificar as faculdades corporais. Com isto, que lembra muito certas técnicas do Hatha Yoga,  seria possível, segundo os monges, reconduzir o espírito ao coração de modo a uni-lo à alma. Isto seria obtido assim: sincronizando a entrada do espírito no coração com a inspiração do ar; a inspiração seria ralentada e espaçada, de modo a se conseguir comandá-la inteiramente. Tudo isto deveria ser praticado num lugar tranquilo, solitário, na posição sentada, assento baixo, olhos fechados, o queixo sobre o peito, os olhos fixados no umbigo. O que se procurava era a chamada exploração das entranhas, algo que lembra certos métodos sufistas. 



Em 1782, foi publicado com o nome de Filocalia (amor à beleza), em Veneza, um grande texto onde se reunia a produção de vários autores, desde os chamados Padres do Deserto até os religiosos bizantinos do século XIV. Dentre alguns apotegmas (palavra memorável, lapidar) desse grande texto, citamos:  

O monge (do grego, solitário, que vive só) deve, como os querubins e os serafins, ser apenas olhos. 
Suprime as relações numerosas, se não queres que teu espírito divague e perturbe tua solidão (hésychia). 
Que a alma pratique a sobriedade, afaste-se da distração e renuncie às próprias vontades; então, o Espírito de Deus se aproximará dela. 
A apatheia é o estado pacífico da alma racional que resulta da humildade e da temperança, os respectivos antídotos das paixões e da cólera.

SÃO   PAULO
A perspectiva de sofrer por Cristo nos primeiros séculos do Cristianismo enfatizava o abandono das riquezas, da família, dos amigos, da saúde, da própria vida. Um aspecto interessante desse martírio era o da virgindade, ideal definido por São Paulo no capítulo sétimo da sua primeira Epístola aos Coríntios, povo da cidade de Afrodite, que o escandalizou, com as suas hierodulas, prostitutas sagradas, sacerdotisas da deusa.  


DECAPITAÇÃO  DE
METÓDIO  DE  OLIMPO 
O primeiro tratado cristão sobre a virgindade só aparece no século III, O Banquete, de Metódio de Olimpo. Nesse texto ele afirma que as virgens são os verdadeiros mártires do Cristianismo, já que sustentam até o fim, sem esmorecer, durante toda a sua vida, o verdadeiro combate olímpico que é a luta pela castidade. Textos da época afirmavam que pela prática da castidade era possível às virgens porem-se em contacto com Céu
TRÊS   VIRGENS   SÁBIAS
CATEDRAL   DE   MAGDEBOURG
ainda que na Terra. As virgens elevavam-se assim acima das sensações de prazer e de dor graças às asas da alma (tema da sublimação alquímica que foi parar na Psicologia). Guardavam elas seus cinco sentidos intactos para Cristo, que elas encontrariam como esposo no dia da ressurreição. Esse era o casamento místico. O refrão dos hinos que as virgens cantavam dizia: Por Ti eu me conservo pura! Com meu archote radiante firme na mão, Esposo, venho a Teu encontro. Por Ti me conservo pura!

No século XI, na Europa, aparece uma seita religiosa cujos ensinamentos se propagaram pela Itália (Lombardia até o centro),
ALBI  -  FRANÇA
pela Renania, pela Catalunha e pelo Midi francês (Albi, Toulouse, Carcassone). Era o Catarismo (do grego, katharos, puro). Tem a doutrina cátara inspiração bogomilista, principalmente, e suas propostas de austeridade contrastavam fortemente com a opulência do Cristianismo oficial. O Catarismo foi muito reprimido não só pela pregação (São Bernardo, Pedro, o Venerável e São Domingos) como pelas armas (cruzada albigense e Inquisição). O movimento cátaro parece ter recebido

BOGOMIL 
forte influência de uma seita herética cristã que pregava a austeridade, surgida na Bulgária no século XII e, depois, difundida pela Europa ocidental. O fundador da seita chamava-se Bogomil (Bog, Deus, e mil, amado), um pope búlgaro. Para outros, Bogomil era, em búlgaro, a tradução do nome grego Teófilo. A cosmologia bogomilista era dualista e segundo ela o mundo material teria sido criado por Lúcifer, filho rebelde de Deus. Jesus, o outro filho, teria vindo ao mundo para lutar contra o reino do irmão. 

A busca mística proposta pelo Judaísmo, pelo Cristianismo e pelo Islamismo oficiais torna-se muito mais difícil que no Oriente, já que neles a transcendência está atrelada a dogmas que negam toda possibilidade de interpretações contraditórias da questão religiosa, como é permitido no Hinduísmo, por exemplo. E, pior, negam qualquer escolha segundo a diversidade da sensibilidade religiosa de cada um. O que podemos deixar aqui, como mensagem final, é uma pequena história ouvida na Índia: Certo dia, um jovem, muito entusiasmado, decidiu tornar-se um sannyasin (o que busca a vida

monástica da renúncia). Comprou uma roupa de tecido grosseiro, foi para o ashram e dirigiu-se ao mestre, dizendo que sua vida anterior tinha acabado, que daquele momento em diante seria um monge. O mestre (Ramana), vendo-o, disse que, de fato, o corpo parecia o de um monge, mas, observou, será que o coração também fizera o mesmo? 


Lição: não podemos simplesmente substituir um ego profano por um ego religioso, eis a primeira falácia da renúncia...