domingo, 3 de julho de 2016

MITOLOGIAS DO CÉU – PLUTÃO (3)

                           
DEUSES    EGÍPCIOS
     
Vários textos foram produzidos para instruir o homem egípcio quanto à viagem que faria depois de sua morte. Essencialmente, estas instruções lembravam que o homem deveria procurar viver na terra da maneira mais justa possível, pois seus atos seriam colocados diante dele num julgamento futuro, perante dos deuses, cerimônia que os gregos chamaram de psicostasia, a pesagem da alma. Dizia um texto: Um homem pode permanecer depois da morte e todos seus atos serão colocados diante dele depois da sua morte. Entretanto, a existência no Além significa vida eterna e ela só será atingida por aquele que não procedeu erradamente. Se assim foi, o homem que assim procedeu existirá no Outro Lado (Duat) como um deus.


OSÍRIS   PRESIDE   A   PSICOSTASIA

A crença era unânime: depois da morte, todos seriam submetidos a um julgamento final, na presença do deus Osíris. Representado por uma múmia, Osíris presidia um tribunal diante do qual o coração do morto seria pesado, isto é, julgado. Na balança do julgamento, enquanto o coração ocupava um prato no outro prato era colocada uma pena de avestruz, emblema da equanimidade, símbolo de Maat, a deusa da justiça. Para os que se dessem mal neste julgamento, um animal feroz, chamado Devorador de Almas, ficava à sua espera. Chamado Ammit ou Aman em egípcio, este monstro, como se disse, era um ser híbrido, composto, na sua forma mais divulgada, por um torso de leão, por um hipopótamo na sua parte traseira e por um crocodilo na parte superior do corpo (cabeça). Era ele o encarregado de comer o coração do morto que não tivesse passado no julgamento. Comido o coração, a morte se tornava definitiva, dissolvendo-se o morto no nada.


AMMIT

Os que eram aprovados, iriam repetir no Outro Lado as agradáveis atividades que haviam desempenhado em vida, ainda que alguns trabalhos lhes fossem devidos (cuidar das terras dos deuses e do seu abastecimento de água, garantindo-lhes fertilidade eterna).  Os ricos e poderosos podiam transferir essas obrigações para os “Respondentes” (ushebits), já mencionados.  



USHEBITS
  
Embora os primitivos cultos divergissem quanto ao que um morto poderia ou não fazer do outro lado, os egípcios, através dos colégios sacerdotais, acabaram por elaborar uma síntese engenhosa das suas principais crenças relacionadas com a vida no Além. Dizia-se que o morto ficava no seu túmulo durante o dia, embora pudesse voltar a visitar os vivos por intermédio do seu alado Ba, entidade imaterial que representava a sobrevivência física do morto. Por intermédio de seu Ba, o morto poderia inclusive voltar aos locais de sua predileção no mundo dos vivos. Ao amanhecer, deveria retornar ao seu túmulo, para se alimentar, beber e repousar, cuidados dos quais até os mortos necessitavam.


BA

Partes importantes do Outro Lado eram reservadas para o fantástico e numeroso panteão egípcio. Cada nomo possuía a sua divindade principal. Ra dominava em Heliópolis, Toth em Hermópolis, Ptah em Menfis, Amon em Tebas etc. Uma espécie de loteamento, enfim, cada grande divindade dona de um pedaço do Outro Lado. No Novo Império, houve uma tentativa de se impor, através dos principais colégios sacerdotais,  uma certa ordem no disputadíssimo mercado religioso do país. Foi possível então se reunir a totalidade do panteão, representar toda a família celestial unida, algo como fazemos com os retratos de grupo. Esta iniciativa foi tomada durante o reinado dos faraós ramesessidas (III ao XI), entre 1220-1085 aC.



  HERMÓPOLIS   E   HELIÓPOLIS   NO   DELTA   DO   NILO

Osíris, o equivalente do Hades grego, teve a sua personalidade, ao longo de milênios, construída por contribuições diversas, até que acabou por se constituir numa divindade extremamente complexa e muito lógica até. O desenvolvimento da personalidade de Osíris  se manteve muito próximo da sensibilidade dos povos semíticos que sempre viveram uma religião de salvação fundada por um homem-deus que conheceu uma “paixão” (aqui sinônimo de sofrimento) no meio de outros homens.


ABUSIR

Foi em Busiris ou Abusir (etimologicamente, cidade e templo de Osíris), capital do nono nomo do Delta, que Osíris apareceu, assumindo as atribuições de um deus-pastor chamado Andity pelas populações locais. Já se levantou várias vezes a hipótese de que Osíris teria sido uma figura
TEXTO   DAS   PIRÂMIDES
histórica que num período obscuro da história do país, período pré-dinástico, teria unificado as tribos da região. As mais antigas referências às gestas osirianas encontram-se no chamado
Texto das Pirâmides ou Livro das Pirâmides, uma coletânea de inscrições gravadas nas cinco pirâmides de Saqara. Estes textos foram depois integrados àqueles produzidos pelo colégio sacerdotal de Heliópolis, centrados na figura do deus Ra. Nas versões heliopolitanas, Osíris é considerado como filho de Geb e de Nut, A Terra e o Céu (algo como Cronos e Reia entre os gregos) tendo como irmãos Hórus, o Antigo, ou Haroeris, o maléfico Seth, Ísis e Nephtys, todos nascidos ao mesmo tempo, nessa ordem. 


GEB   E   NUT

Historicamente, como se disse, o que se sabe é que Osíris havia ocupado o lugar do pai e reinara sobre o país em companhia de sua
RUÍNAS   EM   BIBLOS
irmã e esposa, Ísis. Num certo momento de sua vida, deixara na regência do país sua esposa e partira para divulgar a sua proposta civilizadora pelo mundo. Ao voltar, Seth, em companhia de setenta e dois asseclas, o mataram, encerrando o corpo numa arca, lançando-a ao Nilo. Levado pelas águas, o corpo de Osíris chegou a Biblos, Fenícia.

Chegando a essa cidade em busca do corpo do marido, Ísis o encontrou porque uma árvore crescera sobre a arca em que se encontrava o corpo de Osíris. O rei do Biblos ordenou que se
ISIS   AMAMENTA
HÓRUS
construísse uma coluna e um caixão para conter o corpo, entregando tudo a Ísis. No Egito, na região de Buto, no Delta, Ísis deu à luz a Hórus, um filho póstumo dela e de Osíris. Aproveitando-se da ausência de Ísis, Seth apoderou-se do corpo de Osíris e o despedaçou em catorze pedaços, espalhando-os  de pelo país. Auxiliada por Toth, Anúbis e pela irmã, Ísis recuperará os catorze pedaços (menos o pênis, devorado por um peixe) e reconstituirá, com as artes mágicas de que era detentora, o corpo do marido. Nos lugares em que foram encontrados os pedaços do corpo de Osíris, Ísis fez com se levantasse um templo.

As práticas mágicas operadas sobre o corpo de Osíris começaram pela mumificação. Está prática, entre os egípcios, parte da ideia de que o corpo deve subsistir depois da morte na sua forma material
MORTO   ENVOLTO   EM   PELES
para poder prosseguir sua vida no Outro Lado. Por isso, os egípcios buscaram tanto os meios artificiais para que isto fosse possível. Desde o início do período pré-dinástico (10.000- 8.000 aC?), os egípcios tinham notado que as propriedades do seu solo eram favoráveis a isso. Contando com esse aspecto favorável da natureza, passaram a usar, para aumentar a “vida” do corpo morto, invólucros de peles de animais para inumá-los.  

Como já se disse, Osíris preferiu descer ao Duat, o mundo dos
RA
mortos, para nele reinar. Ao assumir o reino dos mortos, Osíris, com isso, “promoveu” um grande enfraquecimento dos cultos que se prestavam a Ra, deus solar. Nos primeiros tempos do período dinástico, entre 4.000 e 3.000 aC, o processo de mumificação era muito primitivo; ele consistia apenas na impregnação da mortalha que envolvia o corpo com natrão ou resinas. 



EXTRAÇÃO   DAS   VÍSCERAS

O aperfeiçoamento dos métodos de mumificação só ocorreu no início do Antigo Império (quarta dinastia), quando incisões começaram a ser feitas para a extração das vísceras. Na sexta dinastia já havia uma classe de embalsamadores profissionais. A mumificação, contudo, era privilégio da família imperial e de alguns outros aristocratas mais chegados ao faraó.


MUMIFICAÇÃO

No Médio Império, a mumificação já estava bastante aperfeiçoada e se vulgarizara. A perfeição do processo, porém, só foi atingida no Novo Império (séc. XVI, 18ª dinastia). Neste período, a grande novidade era habilidade demonstrada por alguns profissionais que conseguiam preservar, na múmia, a expressão do rosto, como se o morto estivesse vivo, assim se dizia. 


MÚMIA  

A partir da quinta dinastia é introduzida uma grande modificação na arte funerária egípcia. As pirâmides, até então ”mudas”, começaram a “falar”, isto é, inscrições começaram a ser feitas, textos que constituiriam o chamado Livro dos Mortos mais tarde, uma coletânea de fórmulas destinadas a proporcionar ao morto (o faraó sobretudo) uma caminhada para o Outro Lado isenta de perigos. 


LIVRO   DOS   MORTOS

Quando um faraó tomava providências para construir a sua pirâmide, ele designava também um certo número de pessoas que, depois do enterro, deveriam assumir seu culto. Ligar-se a uma atividade dessas era uma honra; todos os cortesãos desejavam fazer parte desse privilegiado grupo. A exemplo do faraó, os aristocratas também procuravam assegurar que nada faltaria ao seu túmulo, de modo especial as provisões, a serem constantemente renovadas.



SACERDOTES   

No Médio Império, os ritos funerários sofreram nova mudança. Não havia mais um só “servidor do ka”, o filho mais velho geralmente, uma espécie de executor testamentário. Uma parte dos recursos do morto passa a ser destinada aos membros de colégios sacerdotais que assumem o encargo de “guardar” a lembrança do morto em todas as solenidades e cerimônias do templo. Os sacerdotes irão doravante, entoando cantos, aos túmulos e lá depositarão alimentos, cerveja e pão, principalmente. Aos poucos, as famílias deixam de cuidar do túmulo e “vida” do morto no Outro Lado. Os colégios sacerdotais passam a se encarregar dessas tarefas, que lhes proporcionavam vultosas rendas extraordinárias.



MÚMIAS

Todos estes cuidados tinham obviamente a intenção de facilitar ao máximo a caminhada do morto para o Outro Lado, deixando-o inclusive “tranquilo”. O que se desejava é que o morto chegasse “bem” à Sala das Duas Verdades. Assim, ele poderia, recebido por Anúbis, ser conduzido à presença de Osíris  e saudar os seus quarenta e dois assistentes que presenciariam o julgamento. 

OSÍRIS
O tribunal era infalível e incorruptível; a sentença proferida, com base na pesagem do coração, significaria uma eternidade de felicidade ou um mergulho no nada. Introduzido na sala das Duas Verdades, o morto, já qualificado perante Osíris, saudava os assistentes, os demais deuses presentes, e começava a prestar declarações, inspiradas diretamente pelo seu coração. A sua confissão era basicamente negativa. Ele deveria fazer a sua confissão usando trinta e seis frases negativas (este número era imutável). Seu discurso se encerrava com a frase Eu sou puro. O morto poderia ser interpelado pelos presentes, se suas declarações fossem julgadas insuficientes. Ao final, o morto fazia um elogio dos juízes.

O morto, antes de iniciar a sua confissão, pedia ao seu coração que não prestasse depoimentos que lhe fossem desfavoráveis, que não se voltasse contra ele no tribunal para que o prato da balança não pendesse desfavoravelmente, condenando-o. Ao declarar que o seu coração se confundia com o seu próprio ka, pedia que ele não mentisse e que fosse assim em direção do bem desejado, o ingresso nos reinos de Osíris.

Depois destas palavras, a corte se mantinha em silêncio. Anubis parava as oscilações dos pratos da balança para constatar se eles se equilibrariam. O morto seria salvo e conquistaria a vida eterna se o prato da balança onde estivesse uma pena da deusa Maat fosse mais pesado que o outro, onde estava a sua consciência. Do contrário, seria a condenação inapelável.

Lembro que na Idade Média a prova da balança, com o nome de
BALANÇA   EM   OUDEWATER
bibliomancia, era muito usada para o julgamento dos acusados de feitiçaria pela Igreja católica. Fazia-se o acusado subir num prato da balança e no outro se colocava uma Bíblia; se o acusado fosse mais pesado que a Bíblia, a condenação era inevitável. Na Inglaterra e nos Países Baixos a bibliomancia foi usada até 1707. Na Holanda, na cidade de Oudewater, por privilégio papal, estava um dos mais  importantes centros desta prova. 

Plutarco, sempre tão bem informado sobre o Egito, nos conta que Ísis, não desejando que o drama osiriano caísse no esquecimento, instituiu os chamados santos Mistérios de Ísis em honra ao marido, para que eles servisse de exemplo e de consolação para os seres humanos. O capítulo XVIII do Livro dos Mortos dá uma lista das cidades em que estes Mistérios se realizavam. Conforme inscrições encontradas, são inúmeros os depoimentos de pessoas que participaram destes Mistérios nos quais encontramos registros do quanto se sentiram confortadas e em paz. Os Mistérios que mais tarde se realizariam na Grécia, em Elêusis, instituídos pela deusa Deméter, lembram bastante os egípcios.   

O que os mystai (iniciados) egípcios ressaltavam nos seus depoimentos é que eles se sentiam como que participantes da natureza dos deuses. Osíris nunca foi como os outros deuses egípcios, senhor de um ou de vários territórios. Benfeitor, nenhum outro deus pode ser chamado como ele de Ounophres, o  Ser Bom por excelência, pois ele forneceu aos egípcios um meio de salvação. 

Em que pesem as circunstâncias de tempo e espaço e algumas breves defecções,  o Egito sempre permaneceu fiel ao programa religioso instituído desde os tempos pré-dinásticos. O culto dos mortos implicava também grandes demonstrações de piedade com relação aos ancestrais. O povo egípcio, desde tempos remotíssimos, entendeu a necessidade de preservar pela mumificação os cadáveres (literalmente, corpos tombados) da corrupção e a necessidade de alojá-los convenientemente. Um destino glorioso esperava o morto que escapasse completamente das servidões da condição humana, pois continuava a se “alimentar” e a “viver” eternamente no Outro Lado, leve, livre e solto.


ISIS

A ideia era a de que, como se viu, o morto pudesse gozar, perpetuamente, no Outro Lado, inclusive em companhia de sua família e de seus servidores, os “momentos felizes” que vivera na terra, desde que tivesse levado uma vida justa e respeitosa, sobretudo obediente politicamente. Mesmo o egípcio da mais humilde condição poderia levar para o Outro Lado seus “bons momentos”. Sabe-se que em muitos períodos da história egípcia, nos momentos de crise política e social, estas concepções se enfraqueceram um pouco. Sabe-se que nesses momentos muitos egípcios recorreram a magos-feiticeiros para forçar o tribunal a absolvê-los quando da psicostasia.