segunda-feira, 28 de maio de 2018

CAPRICÓRNIO (2)

                            
RUÍNAS  NO  PARNASO
Os gregos, por exemplo, “descobriram” o oráculo de Delfos, no alto do Parnaso, devido à grande excitação que tomava as cabras quando se aproximavam do local. Constataram que fortes emanações saíam das entranhas da terra, de cavernas profundas, emanações que punham, também as mulheres, num estado mediúnico que as levava a um transe profético. 


MOISÉS NO MONTE SINAI
(GUSTAVE DORÉ, 1832-1883)
Um outro exemplo muito significativo no qual se reúnem os elementos acima apontados nós o temos, entre os judeus, no episódio em que Javé se manifestou, em meio a trovões e relâmpagos, no monte Sinai a Moisés. Como lembrança deste acontecimento, a cobertura do tabernáculo (santuário portátil que levava a arca da aliança e demais objetos sagrados) era feita com um tecido de pelos de cabra.  

Embora a Bíblia faça muitas referências ao aspecto divino das montanhas (sacrifício de Isaac, monte Carmelo, monte Horeb, Gólgota, monte das Oliveiras, sermão da montanha etc.), elas são consideradas também, segundo várias passagens do seu texto, como símbolos da pretensão dos homens chegar às alturas, do seu desejo de ascensão. Por mais que façam, contudo, quanto a isto, dizem-nos os mesmos textos que nunca poderão escapar à onipotente presença divina. É por esta razão, ainda segundo os textos bíblicos, que o judaísmo e, depois, o cristianismo esperam um desaparecimento das montanhas no sentido de um nivelamento. Para os judeus, quando Deus reunir de novo o seu povo pondo fim ao exílio, as elevações serão suprimidas. O fim do mundo trará como consequência, em primeiro lugar, o desmoronamento das montanhas.

TORRE  DE  BABEL
(P. BRUEGEL, O VELHO, 1525-1569)
Deus, continuam os judeus, se comunica, é certo, nas alturas montanhosas, mas as montanhas que o homem galga apenas para adorar o próprio homem e seus símbolos ascensionais, e não o verdadeiro Deus, não passam de sinais de orgulho e presságio de destruição, cujo maior exemplo está no arquétipo da torre de Babel e nos símbolos que ao longo dos milênios malogradamente tentaram atualizá-lo.


FOGUEIRA DE VALBURGA, SUÉCIA
É preciso lembrar ainda que se o alto das montanhas aparece associado à comunicação com o divino e à pureza (brancura imaculada da neve, geleiras, rarefação do ar) ele é também um lugar muito procurado para a realização de cerimônias sabáticas,
SANTA  VALBURGA, C.710 - C.777
frequentadas, com o intuito de desmerecer as tradições judaico-cristãs, por demônios e feiticeiros. Um exemplo: na noite de 30 de abril para 1º de maio, em Brocken, no alto do maciço chamado Harz (Saxe), se realiza a famosa noite de Walpurgis. Santa Walpurgis ou Valburga era o nome de uma religiosa beneditina inglesa, chamada à Alemanha por São Bonifácio para chefiar a abadia Heldenheim. Do túmulo desta religiosa, milagrosamente, se afirmava, exsudava um líquido maravilhoso, milagroso, que o povo chamava de óleo de Santa Valburga. Na noite que precedia a
NOITE DE WALPURGIS
(GUSTAVE  DORÉ, 1832-1883)
realização da festa da santa, noite de 30 de abril, se realizava, segundo a lenda, a noite de Walpurgis, festa na qual demônios e feiticeiros se reuniam, conforme está em O Fausto, de Goethe. Para os judeus, Sabá (do verbo shabater, cessar de crescer, a Lua) é o dia de descanso obrigatório; vai do anoitecer de sexta-feira ao sábado à noite. É o dia que Deus abençoou, ao descansar do trabalho da criação que realizou em seis dias.

LICORNE
TAPEÇARIA MEDIEVAL
O terceiro nível do signo de Capricórnio, representado pelo Licorne (Lycornu, etimologicamente leão de chifre) aponta para os tipos que desenvolvem, como os do segundo (o tipo cabra montanhesa), uma tendência de caráter ascensional, com a diferença de que a subida não fica exclusivamente voltada para fins materiais, deixando o alto da montanha de ser visto por eles apenas como um lugar de chegada. Será considerado, ao contrário, como um ponto de partida para formas de vida ainda mais elevadas. 

A ideia acima exposta nos leva a entender que em Capricórnio o poder que o homem tem de criar materialmente termina, entendimento que nos faz pensar no signo como uma porta de saída para algo maior, para o coletivo, para o transpessoal, e, no caso dos tipos mais espiritualizados, para o que os hindus chamam de moksha, para a retirada do mundo.

As alturas das montanhas nos explicam também dois conceitos presentes no signo, a crucificação e a transfiguração. Para o capricorniano que sobe, que procura se elevar na vida só materialmente, a tendência à transfiguração  não está presente; ficará ele preso, crucificado, no plano da matéria. A cruz, como está em todas as representações simbólicas, tem relação com o número quatro e com o quadrado, imagens da coagulação, da condensação, do imobilismo, antíteses da transfiguração, da transformação, da transcendência. Cristo foi crucificado no alto de um monte, operação alquímica que teve por finalidade a destruição do seu aspecto material. A crucificatio e a putrefactio são variantes da mortificatio, a mais radical operação alquímica, associada sempre à mutilação, à morte e ao apodrecimento. É uma operação sempre vista negativamente, pois sua cor é o negro; positivamente considerada, porém, leva à ressurreição, ao renascimento. A putrefactio, realizada no alto da montanha, anula e destrói o velho ego, transmuta as coisas, gerando algo novo. Em algumas imagens que os egípcios nos deixaram esculpidas nas pedras essa representação chegou simbolicamente até nós: grãos nascendo do cadáver de Osíris. São Paulo, na epístola aos coríntios, nos traduz tudo isto de outro modo: Semeia-se o corpo em corrupção; ressuscitarão em incorrupção. Semeia-se em desonra; ressuscitará em glória. Semeia-se em fraqueza; ressuscitará em vigor. Semeia-se o corpo natural; ressuscitará o corpo espiritual.”     

O símbolo deste terceiro tipo capricorniano, como se disse, é o Licorne (nada a ver com o Unicórnio, uma besta mítica de características lunares). Raro, mas não impossível encontrar este
AQUÁRIO ( W. HONE, 1780-1842 )
tipo que trabalha normalmente com as expressões mais elevadas do signo. Ainda que saiba converter em capital as coisas valiosas e de qualidade, este tipo, embora ligado ao passado, tem os olhos voltados para o futuro, para o alto, tendo sempre uma clara noção da futilidade da maior parte dos desejos, das ações e das ambições do homem. É neste sentido que temos a lição astrológica ao nos indicar que Saturno é regente noturno do signo de Aquário, o signo do futuro. 

Ele, o capricorniano, sabe que, embora possa ter conquistado posições de autoridade e de influência, ele tem consciência de que sempre há algo mais elevado, poderes maiores, aos quais ele saberá se ligar. O zênite capricorniano do tipo simbolizado pelo licorne tem características mais públicas, mais universais, do que sociais. É por isso que o homem superior de Capricórnio mostra a tendência de se ocupar, de algum modo, com uma atividade pública, atividade que lhe permitirá aplicar as suas aptidões em benefício da humanidade. Os tipos mais bem logrados do signo sabem que toda verdadeira ascensão só se torna possível através de uma comunhão com o universo. A ajuda mais poderosa que este tipo encontra estará na sua capacidade de ultrapassar continuamente toda etapa conquistada, entendendo que onde quer que esteja ele não é mais que uma parte do todo. 

LEÃO
Muito ao contrário do que a tradição cristã propagou, o licorne é um símbolo da penetração do espírito no plano da matéria, como indicado pelo chifre na cabeça do leão, dando-se ao ego leonino um sentido de elevação, transcendência, de eminência. Este entendimento ficará mais claro se considerarmos que o número do signo do Leão é cinco e que o de Capricórnio é dez. 

O número cinco, como sabemos, é o “número do homem”, representando a totalidade do mundo sensível, os cinco sentidos e as cinco formas sensíveis da matéria. Em todas as tradições cinco é o número de saída do quatro (signo de Câncer) e, num segundo momento, da aquisição de uma luz própria (signo de Leão); é o número daquele que é o seu próprio centro, daquele que se auto-determinou. Na China, lembremos, o cinco era o número do
DESENHOS  DE  MING TANG
imperador, daquele que saiu da multiplicidade, dos quatro cantos do quadrado, ao vencer o dragão da dispersão, e foi ocupar o trono no centro deste quadrado (ming tang). Astrologicamente, tudo isto quer dizer que o fogo que o leonino conquista é de natureza racional, fogo que lhe permite apenas vitórias no plano da vida material. A caminhada deste ego, que a partir da casa cinco adquiriu autonomia, pode ter, segundo a ordem zodiacal, um sentido evolutivo no plano da vida material ou da vida espiritual. Em Virgo (sexta casa) é feita esta escolha, num sentido ou noutro, sendo as demais casas, até a décima (meio do céu), ajustadas segundo o que se decidiu na referida sexta casa. 

Se o número cinco já indica uma tendência totalizante, o número dez, o duplo do cinco, indica mais ainda, revelando-nos que o poder do homem criar materialmente termina, isto é, o poder de agir com as duas mãos. Evidentemente, a maior parte das pessoas vê Capricórnio tão somente como um ponto de chegada sob o ponto de vista material, o topo da montanha alcançado a partir da conquista de um ego na quinta casa. Tudo isto sempre terá uma inspiração material, mundana,  podendo ser alcançado com sacrifício, ambição, perseverança e disciplina, ou, o mais comum hoje, de modo aético, amoral e, sobretudo, ilegal. Ao prevalecer em Capricórnio esta tendência puramente material é que o signo pode ser considerado como o das possibilidades inversas, evolutivas ou involutivas, topo da montanha ou abismo, tensão permanente sempre a rondar os capricornianos que tentam chegar às alturas presos somente a objetivos materiais.

AQUÁRIO
( MUCHA, 1860 - 1939 ) 
O licorne, como, acredito, já deu para se depreender do exposto, será o símbolo daquele capricorniano que entendeu que o signo (casa dez) que marca o solstício de inverno corresponde não só à possibilidade máxima que o homem tem de criar materialmente (o poder dos dez dedos) como pode ser também o começo de um novo ciclo, o das realizações impessoais em direção do grande Todo, que leva a Aquário, signo que nos fala do coletivo, da humanidade, das gerações futuras, e a Peixes, o signo da sabedoria, onde temos de pôr em prática, como doação, tudo o que adquirimos ou não nos onze signos e casas precedentes. 


O chifre (unicórnio), em todas as tradições míticas e religiosas, sempre foi visto como um símbolo de poder, imagem retirada de certos animais vigorosos, poderosos, touros, carneiros, rinocerontes etc. Passaram os chifres, por isso, a ornar a fronte de deuses e de poderosos, Amon no Egito, Dioniso, da Grécia, Júpiter em Roma, Alexandre, o Grande, Moisés etc. É de se notar, porém, que os chifres apresentam como símbolos uma certa ambivalência. Não só nos falam de poder, mas podem nos apontar também para forças regressivas (uma forma fálica alterada), como é o caso do deus Pã, dos sátiros, dos faunos, dos egipãs,  dos demônios etc. 

Há dois tipos de cornos a considerar quando discutimos este símbolo, o único e o par. Relacionados com a geometria, o primeiro
RUÍNAS  EM  DELOS
corresponde ao triângulo com o vértice para cima, o segundo tem relação com o triângulo invertido, chamado dent (dente) em heráldica. A relação do corno com o triângulo direito é confirmada pelo radical krn, que quer dizer alto lugar, no sentido de polar, de montanha sagrada. Entre os celtas, o túmulo de pedra que apontava para o alto, tinha relação com a palavra corno (cairn). Numerosos altares antigos tinham cornos como emblemas, com o Keraton apolíneo de Delos, feito inteiramente de chifres. 


APOLO   KARNEIOS
Relacionado com o sentido de elevação e de eminência, o corno sempre representou também o poder (Apolo Karneios) como princípio ativo, penetrante. Nas tradições judaica e cristã, o corno aparece muito associado ao raio, à luz que vem do céu. Quando Moisés desceu do monte Sinai seu rosto irradiava luzes. É por essa razão que os artistas, desde o início da Idade Média, sempre representaram
SHIVA
Moisés com chifres. Os dois chifres que ostentava eram, no caso, um aspecto do crescente lunar. Lembremos que a Lua tem tradicionalmente o nome de cornuda, símbolo da fertilidade; é a Lua que forma o chamado corno perfeito na fronte do deus Shiva. É neste sentido lunar, na forma de crescente, que o chifre também pode ser visto como um símbolo da mudança, pois é fechado e aberto, concentração e expansão ao mesmo tempo, representando a ressurreição para os muçulmanos. 

Em algum período da Idade Média a imagem do leão se “perdeu”, passando-se a dar o nome de unicórnio ou de licorne à figura de um animal ambíguo, ora cabra, ora cavalo, acabando por se fixar o símbolo numa forma eqüina, de um pequeno potro. A iconografia cristã se apoderou desta forma para representar a penetração do divino na Virgem Maria, isto é, a virgem fecundada pelo Espírito Santo. Afastaram-se com isto a figura do leão cornudo e a lógica astrológica que dava suporte ao símbolo, ou seja, a da espiritualização da matéria, a ideia de que Capricórnio era a “porta dos deuses”, signo de ingresso numa vida superior, transpessoal.

A imagem do unicórnio como um potrinho delicado, azulado, algumas vezes, dócil, poderia ser admitida, contudo, literariamente digamos, como uma representação do controle da vida instintiva e da sexualidade.  Enquanto a imagem do licorne esteve presa ao leão, esta explicação me parece plausível. Ao início da baixa Idade Média, período em que o ímpeto guerreiro se atenuou, em que a cavalaria teve a sua importância diminuída, em que a virilidade guerreira precisou ser domesticada, em que militares se viram obrigados a frequentar a vida palaciana, em que a poesia cortês entrou em moda, o forte componente marciano do mundo masculino medieval foi contido. A vida na corte exigia “boas maneiras”. 


AMOR  CORTÊS ,  ILUMINURA  MEDIEVAL

Papel importante nesse contexto tiveram as mulheres, inspiradoras do chamado amor cortês, sentimento amoroso que floresceu na Idade Média e que se caracterizou por uma espécie de vassalagem amorosa em que o cavaleiro deveria ser fiel à dama eleita, servindo-a com cortesia e respeito. Apareceu largamente na literatura medieval, especialmente ao fim da Idade Média, caracterizando um amor profano, em contraste com o amor à Virgem Maria, incentivado pela Igreja católica.

A maior contribuição para a fixação do licorne como um potrinho veio de um conjunto de seis tapeçarias fabricadas entre 1.484 e 1.500 por Jean Le Viste com base em desenhos de um artista cujo nome se perdeu. Em cada pano, sobre um fundo ornado de millefleurs e de animais, uma mesma jovem é representada, envolvendo-a emblemas heráldicos, especialmente um leão e um licorne (potrinho). O conjunto forma uma alegoria dos cinco sentidos. O sexto panô ostenta uma inscrição: À mon seul désir, isto é, segundo o meu livre-arbítrio, sem nenhuma sujeição aos sentidos. Essa fantástica tapeçaria se encontra no Museu Nacional da Idade Média, nas termas de Cluny, desde o ano de 1.882.  
   
TAPEÇARIA ( MUSEU  NACIONAL  DA  IDADE  MÉDIA )


CHIFRE
(ABADIA DE SAINT DENIS)
O chifre como símbolo extraído desde contexto tem naturalmente um sentido fálico ao evocar, associado ao raio, solar ou não, uma ideia de fecundação espiritual, de intuição, de luz divina que penetra o espírito do homem. Na Idade Média, a tradição cristã aceitava a existência do licorne e afirmava que o animal só poderia ser capturado por uma virgem, pois simbolizava a pureza e a religião. O chifre, segundo a mesma afirmação, tinha o poder de revelar e de neutralizar venenos, fazendo parte dos tesouros da Igreja (da abadia de Saint Denis, por exemplo). Na mitologia chinesa, o licorne fazia parte, com o dragão, a fênix e a tartaruga, do conjunto de quatro animais fabulosos que significavam bondade, bom augúrio e felicidade com relação ao nascimento de crianças.