HÉSTIA |
Nos tipos superiores, o arquétipo aponta para a concentração naquilo que é feito, a sensação do dever cumprido; nunca de olho no relógio, o tipo Héstia mais elevado não tem horários, não tem pressa, não tem dia nem noite. Aspectos patológicos podem e costumam aparecer, contudo, nesse tipo, já que são comuns, mesmo nos tipos superiores, ideias de anonimato, abnegação exagerada, sexualidade reprimida, desvalorização. Ao final da vida, talvez, uma aparência de mulher modesta, sábia, que preferiu sempre a segurança, jamais tendo qualquer ambição. No mais, uma lembrança, algumas referências elogiosas, muitas vezes hipócritas. No geral, Héstia é a mulher que vive fora do seu tempo, uma persona, uma máscara de adaptação social.
Héstia foi representada pelos antigos gregos com um porte muito digno, ereto, as vestes cobrindo-a totalmente, sempre discreta, imóvel. Sentada ou em pé, nenhuma ideia de movimento. Suas imagens irradiam calma, tranquilidade, dignidade, suavidade, benevolência. Embora sua história não seja movimentada, não encontramos na sua crônica aventuras, mudanças, conflitos ou choques com outras divindades, mas ela não pode ser vista como uma deusa menor no panteão olímpico.
Os deuses vivem e sobrevivem, como sabemos, principalmente, pelas inúmeras funções e papéis que podem desempenhar na vida dos que os cultuam. Embora Héstia não tenha nenhum apelido notável, como Apolo, por exemplo, que possuía mais de duzentos (sinal de sua enorme importância e do dinheiro que o seu culto gerava), ocupava uma posição central no culto diário dos antigos gregos, sendo por isso uma de suas mais glorificadas divindades. Ela era A Senhora, aquela que simbolizava o centro, tanto na vida pessoal, como na vida familiar e na vida cívica da polis grega.
De um modo geral, o centro traduz no mito ideias de lugar de onde se irradia a energia universal, o vaivém desta energia, como o fenômeno da sístole e da diástole, isto é, de forças que atuam centrípeta e centrifugamente. Concebido como uma posição estática, o centro é o ponto de onde parte o movimento do uno em direção do múltiplo, do interior para o exterior.
No mito de Héstia o centro que ela simbolizava era representado pela lareira, o próprio lar para todos os gregos. Todo o espaço doméstico se organizava em torno do fogão da casa, lugar de intimidade, que protegia e dava segurança, um abrigo com relação aos tumultos da vida exterior.
HÉSTIA E A LAREIRA |
Quando um estrangeiro era convidado para ir à lareira e participar da comensalidade doméstica dos seus moradores, ele passava a ser considerado como um parente, um membro do círculo familiar. A lareira era um símbolo da vida comunitária, da casa, da união do homem e da mulher, do amor, da conjunção do fogo e de seu receptáculo. Enquanto centro solar a lareira aproximava os seres por seu calor e sua luz, sendo também o lugar onde se preparavam os alimentos, centro da vida que foi dada e que precisa ser mantida e propagada.
A lareira como lugar central da casa sempre foi honrada em todas as tradições, tornando-se inclusive um santuário de onde se pode invocar a proteção de outras divindades. É por estas relações que a lareira passou simbolicamente a representar no corpo humano o plexo solar, o centro (chakra) a que os hindus deram o nome de manipura. O plexo (rede ou interconexão de nervos, vasos sanguíneos ou linfáticos) solar é o maior dos plexos autônomos, situado na frente da artéria aorta e por trás do estômago, enviando ramos a todas as vísceras abdominais. Os japoneses colocam nessa região aquilo que chamam de centro hara (literalmente, barriga), onde se concentra o Ki, força e essência vital, que está presente em todos os seres vivos.
Embora filha primogênita de Cronos e de Reia, quando Zeus libertou os seus irmãos do ventre do pai, Héstia foi a última a sair. Era por isto chamada muitas vezes de A primeira e a última. Em muitas versões, temos registros de que ela cedeu o seu lugar entre as doze divindades olímpicas, em troca da virgindade. Contudo, apesar de não possuir templos específicos, nem ter sido personificada como as demais divindades, mesmo praticamente invisível no plano físico, era a mais presente das deusas enquanto representada pelo fogo e pelo calor, honrada, por isso, em cada casa, em cada cidade, bem como em todos os templos, nos quais lhe era dado um pequeno altar. Sempre que se acendia o fogo da lareira, ela estava implicitamente convidada a comparecer, trazendo as suas bênçãos e iluminação.
A lareira como lugar central da casa sempre foi honrada em todas as tradições, tornando-se inclusive um santuário de onde se pode invocar a proteção de outras divindades. É por estas relações que a lareira passou simbolicamente a representar no corpo humano o plexo solar, o centro (chakra) a que os hindus deram o nome de manipura. O plexo (rede ou interconexão de nervos, vasos sanguíneos ou linfáticos) solar é o maior dos plexos autônomos, situado na frente da artéria aorta e por trás do estômago, enviando ramos a todas as vísceras abdominais. Os japoneses colocam nessa região aquilo que chamam de centro hara (literalmente, barriga), onde se concentra o Ki, força e essência vital, que está presente em todos os seres vivos.
REIA E CRONOS |
Embora filha primogênita de Cronos e de Reia, quando Zeus libertou os seus irmãos do ventre do pai, Héstia foi a última a sair. Era por isto chamada muitas vezes de A primeira e a última. Em muitas versões, temos registros de que ela cedeu o seu lugar entre as doze divindades olímpicas, em troca da virgindade. Contudo, apesar de não possuir templos específicos, nem ter sido personificada como as demais divindades, mesmo praticamente invisível no plano físico, era a mais presente das deusas enquanto representada pelo fogo e pelo calor, honrada, por isso, em cada casa, em cada cidade, bem como em todos os templos, nos quais lhe era dado um pequeno altar. Sempre que se acendia o fogo da lareira, ela estava implicitamente convidada a comparecer, trazendo as suas bênçãos e iluminação.
Há poucos escritos sobre Héstia, sendo a fonte principal de informações o que Homero nos deixou. Além das oferendas que recebia a cada manhã ou antes de cada refeição, era sempre invocada como protetora da unidade familiar, do seu fortalecimento. Ao casar, toda mulher levava para a sua nova morada uma tocha acesa no fogo da lareira da sua casa paterna, consagrando-se assim o lar dos recém-casados.
Como continuação da família, o Estado, na sede de sua administração, possuía um pequeno e singelo santuário (Prytantis) no qual era mantida permanentemente uma chama acesa por sacerdotisas da deusa, chamadas prytantes. No Prytaneu, além de se manter o fogo sagrado da deusa, fornecia-se alimentação para os hóspedes que visitavam a pátria e os pensionistas do Estado.
É de se lembrar que na Astrologia o asteroide Vesta (nome latino da deusa) é consultado para se avaliar a capacidade de focalização e concentração de alguém (homem ou mulher) num determinado objetivo que exija desprendimento pessoal, prática do silêncio, introspecção e anonimato. Neste sentido, Vesta é um dos corregentes do signo de Virgem, da casa seis astrológica, portanto, juntamente com Mercúrio (planeta regente) e com Ceres (Deméter), corregente também.
O lugar de Héstia na casa significava intimidade, segurança, abrigo com relação ao tumulto “lá de fora”. Seu templo, nas cidades, preenchia as mesmas funções da lareira doméstica. Aquele que nele se refugiasse passava a gozar de imunidade política e social, como no caso de um hóspede que se aproximasse da lareira. Disputas, conflitos, brigas eram evitados no espaço da lareira.
Os gregos, com o tempo, pela ligação de Héstia com a lareira e consequentemente com a alimentação, atribuíram-lhe a tutela do Tesouro Público. Assim, todos os impostos recolhidos pelo Estado deviam ser levados ao “caldeirão” desta deusa para a preparação do “alimento”, em forma de serviços, que seriam distribuídos à população, dando-se mais a quem tivesse mais fome, a quem precisasse mais.
GINECEU |
Os gregos, com o tempo, pela ligação de Héstia com a lareira e consequentemente com a alimentação, atribuíram-lhe a tutela do Tesouro Público. Assim, todos os impostos recolhidos pelo Estado deviam ser levados ao “caldeirão” desta deusa para a preparação do “alimento”, em forma de serviços, que seriam distribuídos à população, dando-se mais a quem tivesse mais fome, a quem precisasse mais.
Se seu fogo se apagasse no lar ou na cidade, os presságios não eram bons, trágicos muitas vezes. Acendê-lo de novo era operação que exigia ritual complexo. Quando os persas, depois de sitiarem Atenas, apagaram a chama da cidade, o sentimento da derrota foi imenso. Vencidos os persas, reacendê-lo só com o fogo de Delfos, onde Héstia tinha um lugar perto do oráculo de Apolo.
RUÍNAS DO SANTUÁRIO DE DELFOS |
Somente em ocasiões especiais este fogo era apagado, sempre, porém, com muito sofrimento e dor. Quando o luto significasse o fim de um lar, a extinção de uma família, a dispersão de seus membros, por exemplo, justificar-se-ia o seu apagamento. Não se devia ficar numa casa em que o fogo não permanecesse constantemente aceso. Seu apagamento sempre significava também uma morte psicológica, um desligamento do grupo, depressão, isolamento, esquizofrenia.
DIODORO DA SICILIA |
Héstia deve ser encontrada onde a família descobre o seu centro, pois tem a ver com aquilo que é o núcleo da afeição, das necessidades, das preocupações e da atividade familiar. Ela nos coloca no sentido do coletivo, interessando-se por nós, pela familiaridade, pela comensalidade. Hoje, a televisão e o computador ocupam o seu lugar, sendo considerados os seus nichos como os altares da família.
Normalmente, era Héstia (ou Vesta, em Roma) quem, apesar de tudo, presidia às festividades que consolidavam a vida familiar, sendo uma das mais importantes as refeições tomadas em conjunto, não tanto pelo alimento mas pelo seu aspecto comunitário. Enquanto Hera se interessa mais pelas estruturas de poder, pelo lado oficial da família, pelo seu aspecto legal, Héstia está mais preocupada com a reunião e a comensalidade. Era a velha sentença da deusa: “Ser da mesma família é respirar a mesma fumaça”.
Normalmente, era Héstia (ou Vesta, em Roma) quem, apesar de tudo, presidia às festividades que consolidavam a vida familiar, sendo uma das mais importantes as refeições tomadas em conjunto, não tanto pelo alimento mas pelo seu aspecto comunitário. Enquanto Hera se interessa mais pelas estruturas de poder, pelo lado oficial da família, pelo seu aspecto legal, Héstia está mais preocupada com a reunião e a comensalidade. Era a velha sentença da deusa: “Ser da mesma família é respirar a mesma fumaça”.
REFEIÇÃO NA GRÉCIA ANTIGA ( ANDROCEU ) |
A deusa está particularmente ativa também como arquétipo quando nos dispomos a conservar móveis e objetos familiares, que se constituem muitas vezes num culto inconsciente à deusa. Uma chaleira de prata, uma cadeira de balanço, uma caixa de
ferramentas, um relógio, uma caneta, uma cômoda, elos com a ancestralidade, com a tradição, de algum modo preservação de um centro... É neste sentido que o centro e o círculo se completam. Se o primeiro é o ponto de onde parte o movimento e, por extensão, a vida, o segundo é o desenvolvimento deste ponto central, do qual ele é um prolongamento em vários sentidos. É isto que nos permite entender que Héstia representa também os círculos que simbolizam o retorno constante do tempo, o movimento perpétuo de tudo o que se move, desde a ronda dos planetas às suas projeções nas ideias de tempo e movimentos circulares (danças, circunvoluções etc.) que representam em inúmeras tradições religiosas sempre uma forma de participação nos ritmos universais.
RELÓGIO ANTIGO |
AS MUSAS E APOLO |
O machismo da Grécia antiga sempre viu um conflito entre Héstia e Hermes, pois o território da primeira, quando muito, podia ir até onde começava o reino do outro, ou seja, a porta da rua. Hermes era da rua, das praças, dos mercados, da agora (praça). Héstia era de dentro da casa, do interior. No geral, o seu espaço ficava circunscrito, porém, ao gineceu; raramente chegava à porta de entrada. As mulheres gregas não frequentavam o androceu, reduto absolutamente masculino, lugar, dentre outras cerimônias, nos meios cultos, do simpósio. Evidentemente, o padrão de comportamento que a deusa representava, pouco prestigiado de fato nos meios machistas, nos inclina a vê-la, na maioria dos casos, como uma figura do clã, vinculada primeiro à sua casa paterna e só então, depois, à casa do marido.
Os rituais que cercavam Héstia na antiguidade greco-romana simbolizavam, por isso, no geral, a ordem patriarcal. Os poderes que eram conferidos à mulher, ao casar-se, se estendiam ao espaço do gineceu, onde a lareira ocupava o centro, dele fazendo parte as crianças, os animais, alguns móveis e utensílios, escravos e a chave da despensa (esta nem sempre se dela a adega fizesse parte).
A virgindade de Héstia pode ser vista também, em muitos casos, mais como uma recusa aos transtornos do casamento e da vida a dois do que uma não aceitação de relações sociais. O arquétipo, neste caso, “toma” conta de uma mulher sempre que ela se apega ao “seu” espaço, rejeitando a ideia de dividi-lo com alguém, mesmo que seja com uma amiga ou colega, como ocorre muitas vezes.
Uma das imagens mais negativas de Héstia é (era) a chamada solteirona, a donzela que envelheceu e não casou, mantendo-se virgem, por oposição à dona, a mulher iniciada sexualmente, casada ou não. A solteirona, em muitas tradições, tornou-se sinônimo de amargura e de solidão, de desvalorização. Será sempre filha, irmã, cunhada, tia, prima, jamais esposa ou mãe. Às vezes, lá atrás, um noivo que sumiu, morreu, sobre o qual todos evitam falar diante dela. Este tipo se confunde com o da “tia velha”, aquela que, como se dizia, “encalhou” e que na maioria dos casos assumia espontaneamente ou era escalada (voluntariamente coagida) pela família para cuidar dos velhos, das crianças, dos sobrinhos ou dos afilhados, funções que exercia diligentemente, vigilante e atenta, costumando fiscalizar também a moral das crianças.
TECENDO |
A solteirona na Inglaterra, sob o ponto de vista legal, era a mulher
PAUL MCCARTNEY |
ELEANOR RIGBY ( FOTO DE TCV ) |
Uma das mais belas histórias sobre este tipo de Héstia nos
WILLIAM FAULKNER |
A ROSE FOR EMILY |
Por falar em Liverpool, não podemos esquecer que um dos mais hestianos autores do cinema é Terence Davies, nascido e fazendo filmes sobre a cidade. Seus filmes, excepcionais na maioria, nunca deixaram, a meu ver, de se colocar sob uma forte inspiração da deusa, principalmente o grande Distant Voices.
Positivamente, nos vem de mundos já extintos uma das imagens mais interessantes da deusa, a chamada Héstia das Provisões, a Héstia Tamia dos gregos. Nos tempos modernos essa figura desapareceu. Nosso estilo de vida não é propício a ela. Héstia Tamia é honrada quando pensamos em abastecer, prover, quando pensamos em guardar e conservar alimentos para, sobretudo, distribuí-los adequadamente. Tamia, em grego, quer dizer a mulher encarregada das provisões; a função de intendente. Tameia pede pensamento previsor, lembra hábitos de economia, administração de bens. Tameion era lugar onde, entre os gregos antigos, estava depositado o tesouro público.
Quando numa casa há muita gente, mas faltam provisões, as relações humanas são precárias, sempre presente um sentimento de insegurança. A Héstia Tamia trabalhava com ideias de vigilância, previsão, acumulação, cuidado, orçamento, o que não excluía necessariamente a generosidade e a disposição de receber e alimentar. Nada tão demodé atualmente como Héstia Tamia, principalmente diante da lógica consumista, da sedução do efêmero, do frívolo, da febre do “novo” e da generalização do processo da moda.
Héstia está hoje ausente do mundo familiar e, da vida comunitária. Quando um grupo humano, já diziam os antigos gregos, não a honra, esse meio tem grande probabilidade de não se manter. Uma outra expressão era usada para nos falar da deusa: “É preciso sacrificar a Héstia”. Isto queria dizer como era importante, mesmo que levado em conta o machismo da sociedade grega, a ideia de centro e o cultivo do cerimonial das refeições familiares.
Uma breve descrição da real situação da mulher grega, acredito, permitirá que situemos melhor o tema de Héstia na sociedade em que o modelo tomou forma como arquétipo. Mesmo na Grécia clássica, mais culta, digamos, as elites consideravam a estratificação social como algo normal, sendo inevitáveis e até necessárias as discriminações. A finalidade do casamento, por exemplo, era a procriação de filhos legítimos destinados a herdar os
bens paternos. Como instituição, estava o casamento estreitamente ligado ao regime da propriedade e à sucessão de bens patrimoniais. Por parte da mulher, nenhuma escolha. Era o pai ou o tutor legítimo que escolhiam a casa onde a jovem, pelo casamento, ia viver. Esta escolha era ainda mais estreita no caso da filha epiclera (veja a história de Antígona), pois esta tinha que desposar obrigatoriamente o parente mais próximo na linhagem paterna.
A FILHA EPICLERA |
Da Grécia arcaica nos vem a máxima tantas vezes proclamada: “As cortesãs para o prazer, as concubinas para o sexo, as esposas para uma descendência legítima e para os cuidados do lar, como guardiã perfeita.” Esta máxima praticamente não mudou no período clássico da história grega. Assim, toda mulher grega (evidentemente mulher de um cidadão, de um aristocrata) era tanto a guardiã do oikos como aquela através de quem se assegurava a transmissão dos bens familiares. A ateniense de “boa família” permanecia em casa, cercada de escravos e de crianças, só saindo para cumprir com seus deveres religiosos, como se disse.
Onde encontrar Héstia hoje? Por razões várias e complexas, as mulheres, com raras exceções, não ficam mais em casa, não cuidam mais quotidianamente dos afazeres domésticos. As lareiras não são mais o centro da casa, a chama doméstica deixou de arder há muito. Mulher alguma aceita, observada a ressalva acima, com facilidade, títulos tão desgastados como “dona-de-casa”, “dama do lar”, “patroa” etc. Estes qualificativos são quase sempre motivo de chacota, de gozações, quando não ofensivos. No mais, a spinster, a solteirona, hoje parece ter perdido o seu ar compungido de Héstia e, pelo seu comportamento mais aberto, com uma imagem mais “produzida”, passou a ser chamada de mulherona, gostosona, bonitona, trintona, quarentona, cinquentona e, em alguns meios televisivos, de cachorrona, doidona, safadona... O sufixo ona, um aumentativo vindo de “ão”, lembre-se, denota na maioria dos casos uma afetividade pejorativa.
Há ainda a acrescentar ao tema da solteirona moderna aquilo que no Brasil tomou o nome de “idade da loba”. Esta expressão foi cunhada em cima de uma teoria de Freud, a de que o homem quando chegava aos 40 anos estava na “idade do lobo”, uma idade de plenitude sexual, de autoafirmação e de virilidade. A expressão “idade da loba” foi, ao que parece, posta em circulação por uma jornalista, Regina Lemos, então na revista Marie Claire, servindo de título depois para uma novela de TV. A expressão se aplicaria às mulheres que não mais aceitariam uma posição submissa diante do mundo masculino nem a solidão. Tais mulheres, muitas delas solteironas, deveriam assumir uma postura lupina, isto é, a de que não só os lobos (machos) podem fazer as suas presas, elas o poderiam também.
Com o esfacelamento da família patriarcal a partir do início do século XX, as mulheres começaram a deixar os lares, sem que novos valores fossem associados ao arquétipo. Uma renovação, talvez, aquilo que Betty Friedan chamou de “segundo estágio do
feminismo contemporâneo”, nunca chegou porém a tomar forma. As casas não são mais lugares onde famílias se reúnem para fazer refeições ou passar horas felizes. As elites e as classes mais favorecidas economicamente nos grandes centros urbanos parecem detestar os lugares onde têm aquilo que juridicamente chamamos de domicílio, isto é, o local onde uma pessoa se considera estabelecida para os efeitos legais, onde se encontra para cumprir certos atos ou onde centraliza seus negócios, atividades etc. Em inúmeros casos, separamos o domicílio da residência, este o lugar onde apenas dormimos. Residir, lembramos, etimologicamente, é assentar-se, deter-se, ficar, morar, com o sentido de enraizar-se, viver com determinação.
FEMINISMO CONTEMPORÂNEO |
O desaparecimento da Héstia da lareira significou também a perda daquilo que na arquiterura se chama(va) “unidade de vizinhança”, uma etapa urbanística representada pelo bairro, como resultado de várias unidades residenciais, uma configuração urbana que propiciasse a convivência e os contactos sociais. Ou seja, a Héstia da vida cívica também foi atingida pela dissolução do seu modelo clássico.
Nesta linha de raciocínio que procuramos, relacionar Héstia com a arquitetura, os equipamentos urbanos deveriam estar sempre próximos das habitações e a localização destas não deveria ser interrompida por vias de trânsito de passagem, mas apenas tangenciadas, preservando-se a vida comunitária e dando segurança às crianças. Estas poderiam ir à escola sozinhas, já que os caminhos seriam seguros e a distância ideal para não cansá-las. As casas viraram uma espécie de “hotel”, ou melhor “motel” (sentido antigo), tornando-se impossível honrar Héstia em lugares assim. O fast food, o delivery, a mcdonaldização da alimentação nos grandes centros urbanos do mundo todo acabou com o arquétipo. O que temos é uma grande dispersão, as relações humanas tornaram-se superficiais, não temos mais vizinhança.
A título de trazer mais alguns subsídios para o que discutimos,
inspirado por conversas com minha mulher, faço referência a dois textos que encontrei, por sugestão dela, desde que, há muito, me lancei nestas cogitações que chamo de hestianas. Em 1903, um novelista e sociólogo francês, André Lichtenberger (1870-1940) nos deu um retrato de uma Héstia francesa, Mme. Honorine, princesse des casseroles, reine des poêlons, imperatrice des fourneaux, na sua obra Portraits des aïeules (Retratos dos Antepassados). Outro texto, de um gênio
do conto, é uma pequena-obra do gênero, de grande sensibilidade e delicadeza, Mademoiselle Perle, de Guy de Maupassant. Para os não muitos afeitos à leitura, permito-me sugerir um filme, exibido recentemente, Julie & Julia, de Nora Ephron, de 2009, com Maryl Streep no papel principal, bastante aceitável para o que nos propomos, encontrável em DVD.
ANDRÉ LICHTENBERGER |
Na década de 1980, foi publicado um livro, The Yin and Yang of
Organizations, de Nancy Foy Cameron (editora, pesquisadora, artista têxtil, falecida recentemente), que, certamente desconhecido pelos estudiosos dos mitos e das ciências humanas, contém ideias interessantes sobre o tema que abordamos. Essa autora retoma os mitos de Hermes e de Héstia, aproximando-os. Ela dá o nome de “aranha” à pessoa que numa organização se situa no centro, partindo desse lugar as teias que formarão o tecido social. Essa pessoa é também chamada de âncora em muitas organizações. Na TV, por exemplo, é o profissional de jornalismo televisivo que centraliza a emissão dos noticiários, cuidando pessoalmente ou participando da elaboração do texto e apresentando-as, frequentemente com comentários opinativos. Em shopping centers, é loja de grande porte, geralmente de departamentos, que serve para atrair consumidores para outros pontos de venda. A âncora, desde a antiguidade, foi considerada como um símbolo de estabilidade e de segurança, a própria imagem da confiança.
Esta função de âncora é representada miticamente por Héstia, simbolizada pela aranha. Foy deixa de lado a visão negativa da aranha, como ela aparece numa passagem da história de Palas Athena, para atribuir-lhe um sentido positivo, valorizando-a como centro a partir do qual todo um cosmos se organiza. Por outro lado, as relações externas, as atividades dirigidas para o exterior, que são da alçada de Hermes têm como signo a borboleta. A aranha e a borboleta seriam assim os dois tipos de função, essenciais a qualquer organização.
Há vários milênios que as teses heliocêntricas começaram a substituir o geocentrismo de Geia e de Héstia. Nos séculos que se seguiram ao Renascimento, as ideias de que um dia teríamos que abandonar Geia e Héstia para explorar outros mundos começaram a circular com intensidade. Com a influência crescente de Zeus (Poder), Apolo (Colonialismo de todos os tipos), Marte (Guerra) e agora Hefesto (Tecnologia), deixamos de reverenciar Geia e Héstia. Tratamo-las muito mal. O planeta e as relações humanas se degradam cada vez mais.
OFICINA DE HEFESTO , DEUS DA TECNOLOGIA |
A ilusão das religiões monoteístas, a de irmos para o céu depois da morte, vem sendo substituída pela das propostas tecnológicas, a de irmos para outros mundos. Fixados dessa maneira num pensamento centrífugo, esquecemos do seu complemento, o pensamento centrípeto, ou seja, que vida é compensação. Num e noutro caso, perdemos o nosso centro, de onde parte o movimento de vaivém em direção do múltiplo. O centro que, num sentido superior, é o princípio das leis de organização em torno do qual deve se ajustar a nossa evolução biológica, social e espiritual.