sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

RÁDIO & CINEMA

Dentre os melhores filmes feitos sobre o rádio, há dois, em especial, para os quais me volto constantemente, pela possibilidade de leituras renovadas que sempre me oferecem. São eles A Era do Rádio (Radio Days) e A Última Noite (A Prairie Home Companion), o primeiro de Woody Allen e o segundo de Robert Altman, realizados, respectivamente, em 1987 e 2006. 

No filme de WA o rádio é considerado do ponto de vista de quem o ouve, dos que recebem a mensagem radiofônica. No de RA, o rádio é abordado pelo lado dos que produzem e emitem a mensagem, no caso um famoso programa chamado A Prairie Home Companion, que há décadas é grande sucesso de público. 

Um parêntese: o rádio fazia parte do que se chamava comunicação de massas (mass communication) há alguns anos. Por influência norte-americana, essa designação foi substituída pelo termo mídia (tradução do inglês media), passando este termo a designar,  tanto entre nós como nos USA, o rádio, o cinema, a TV, a imprensa, os satélites, os meios eletrônicos e telemáticos de comunicação etc. Esta infeliz palavra midia, posta em circulação aqui no Brasil pelos nossos “brilhantes” homens de comunicação e aceita pelos nossos gramáticos, é uma tradução do modo pelo qual os americanos pronunciam palavra media (meios), de origem latina, plural de medium (meio), por eles dicionarizada. Mais uma capitulação, esta no campo da prosódica.  

Da história da radiofusão, na Europa e nos USA, fazem parte os nomes de muitos cientistas e técnicos, ligados a ela direta e indiretamente, Popov, Lodje, Marconi, Hertz, De Forest e outros. No que nos interessa mais de perto, o que temos é a constatação de que, como meio de comunicação de massa, o rádio, logo que terminada a primeira guerra mundial,  passou a fazer parte do cotidiano das pessoas em muitos países. As primeiras transmissões radiofônicas comerciais já eram realidade na década de 1920. Nos USA, nos primeiros anos dessa década, estavam já licenciadas mais de 600 emissoras, sendo adquiridos a partir de então, anualmente, pela população, alguns milhões de aparelhos receptores.

O período compreendido entre os anos 1930-1950 foi, com razão, denominado de a Era de Ouro do rádio. Informações, notícias, esporte,  novelas, música, humorismo, política, programas artísticos, inclusive apresentados em auditórios das emissoras, transformaram a radiofusão no principal meio de comunicação para o grande público. A dinâmica das transmissões, o seu alcance, a diversificação de sua programação e o baixo custo dos aparelhos receptores facilitou bastante a aceitação desse medium  pelo grande público, não só nos meios urbanos como rurais. 

Foi no período acima apontado que a economia norte-americana atingiu grande prosperidade, criando-se o chamado american way of life, situação econômico-social que permitiu que um em cada seis cidadãos, ao final de década de 1920, possuísse o seu automóvel e que praticamente todos tivessem em suas casas, principalmente nos maiores centros urbanos, todos os bens de consumo duráveis e semiduráveis (rádios, geladeiras, fogões, enceradeiras, máquinas de lavar roupa e aparelhos e utensílios domésticos diversos) que a indústria do país punha ao alcance de um público consumidor cada vez maior e ávido de novidades.  

Como toda tecnologia nova, o rádio, desde que lançado no mercado, sempre exerceu um poderoso fascínio sobre o público. A pequena caixa de madeira do aparelho assumiu logo um lugar importante no ambiente familiar. Nas salas onde estava presente, o espaço físico passou a ser organizado de modo a que todos os membros da família, para ouvi-lo, tivessem que vê-lo, como num teatro se procurava ter diante dos olhos o protagonista. De outro lado, tínhamos a dimensão psicológica do espaço criado pelo rádio: estávamos naqueles tempos em que a família ainda podia ser considerada como uma célula natural da sociedade. Era a casa o cenário natural em que as ligações familiares se viam reforçadas  por relações de intimidade e de afetividade que a audição conjunta de programas radiofônicos muito favorecia.




Esta condição seria perdida quando depois da segunda guerra mundial profundas mudanças econômicas, sociais e políticas alteraram a organização familiar. Foi durante esse período pós-guerra, no mundo ocidental, que as mulheres começaram a sair mais de casa para trabalhar, participar mais ativamente do mercado de trabalho, fato que provocou grandes mudanças na configuração e no arranjo da organização familiar, até chegarmos hoje a modelos como o da chamada família monoparental ou mesmo à sua abolição.  

Mudanças como as apontadas sempre tiveram a sua contrapartida em outros aspectos da vida do homem;  vieram sempre acompanhadas, por exemplo, de tecnologias novas que iriam afetar não só a vida social, mas também a sua vida física e mental. O homem, àquele tempo, estava saindo de uma era mecanizada e dando os seus primeiros passos para ingressar numa nova era, a eletrônica, toda ela voltada para o imediatismo, uma era que iria afetar profundamente a visão que ele tinha de si mesmo e dos outros.

Conceitos como os de material permanente, de material de consumo, de validade, de consumptibilidade, de durabilidade, de fragilidade e de perecibilidade, antes restritos ao mundo econômico-contábil, começaram, com outros nomes inventados pela Psicologia, a se impor no mundo das relações humanas. Foi neste cenário de perda-e-ganho que, no plano do psiquismo do homem, se instalou e cresceu epidemicamente a chamada “depressão reacional”, um acontecimento traumático produzido pela perda de bens e valores significativos, que davam segurança e que, apesar dos inevitáveis conflitos, ajudavam a manter as pessoas unidas em casa. Logo se constatou nos “novos tempos”, ao final da Era do Rádio, que a  rápida obsolescência dos utensílios e máquinas era uma realidade com a qual todos deviam se acostumar, que a perda de um emprego, que o rompimento de uma união ou que a morte de um ente querido eram acontecimentos que, embora causassem sofrimento, poderiam ser remediados: comprava-se uma nova máquina, um novo bem, mesmo no caso daquele que julgávamos insubstituível; percebeu-se,  com espanto, que obtido um novo emprego ou encontrado um novo amor, o que se foi poderia ser substituído até com certa facilidade ou mesmo vantajosamente, pois o mercado nunca deixava, nos novos tempos, de oferecer soluções para isso. No universo do consumo que se impunha havia sempre um substituto para tudo, um refill que acomodava logo as coisas.  
  
A Era de Ouro do rádio durou pouco tempo, cerca de trinta anos, se
RADINHO   DE   PILHA
muito. A partir dos anos 1950, chegamos rapidamente, com a invenção do transistor, à era da portabilidade. Os japoneses puseram ao alcance de milhões, em todo o mundo, os rádios portáteis. Conceitos como os de descarte e instantaneidade  logo foram eleitos como valores pela pressão midiática a serviço do mercado e passaram a organizar a vida moderna. Não foi por acaso que os telefones celulares, a última modo em tecnologia da comunicação,  logo foram chamados de mobiles e de portables em inglês e francês. Há muito sabemos que pessoas também podem ser descartadas de nossas vidas como o fazemos com os “maravilhosos” aparelhos que a tecnologia nos oferece, rapidamente tornados obsoletos por exigência do mercado, para que prevaleça a lógica de que o progresso tem que se assentar no tripé que o sustenta: consumismo, destruição e lucro.


É com base nestas considerações que destaco a importância de filmes como A Era do Rádio e A Última Noite, sobretudo pelas relações que estabelecem com a História do nosso quotidiano, reconstituindo uma época que afinal não está tão longe assim e explicam porque nos sentimos tão nostálgicos diante deles. 

Em A Era do Rádio,  WA nos põe em contacto com a sua história pessoal  e suas ramificações com a sociedade do bairro, com a escola, com a sinagoga, com a  cidade. No outro filme, o foco de RA se concentra no ocaso de uma época, lá pelos fins dos anos 1950, através da “última noite” do programa de uma emissora, quando o rádio já começava a perder a sua condição, o seu prestígio, de veículo de comunicação de massas mais importante. 


ROBERT   ALTMAN  

Tanto Altman, nascido em 1925, e Allen, nascido em 1935, viveram a sua infância nos anos dourados da era do rádio. Para fazer os filmes que fizeram, estabeleceram certamente laços muito afetivos com as transmissões radiofônicas e os programas então produzidos e apresentados. Há uma ideia de família em ambos, a família do garoto Joe e a de Garrison Keilor, os artistas, a family que ele reunia no Fitzgerald Theatre para fazer o seu programa.


FITZGERALD   THEATER

O aparelho receptor ocupava uma posição central nas chamadas salas de visita das casas (os arquitetos de interiores ainda não haviam criado o living); era em torno dele que a família, principalmente à noite (horário nobre), se reunia para ouvir a transmissão dos programas mais importantes, aqueles que “realmente ninguém poderia perder”. Durante o dia, como se sabe, porque os “homens da casa” estavam trabalhando, as transmissões radiofônicas se voltavam quase que exclusivamente para o público feminino (o mercado ainda não havia atingido o público infantil). O fascínio que o rádio continua exercendo até hoje sobre as pessoas cuja infância transcorreu no período apontado é muito poderoso. Os filmes de WA e de RA são, segundo este enfoque, exemplares.

WOODY    ALLEN
Radio Days apareceu em 1987. Dirigido por Woody Allen, que se encarregou também do roteiro, o filme nos leva ao passado, à vida de uma família americana, durante a Idade de Ouro do rádio. Allen narra as histórias de sua família através de um personagem infantil, ele próprio, representado na tela por Seth Green (Joe). Ao realizar esse filme, com muita delicadeza e sensibilidade, Allen, diga-se logo de início, incluiu definitivamente seu nome na galeria dos grandes memorialistas do cinema. Está em companhia, dentre outros, de Fellini, com Amarcord; de Bergman, com os Morangos Silvestres (Smultronstället); de François Truffaut, com Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups); de Alain Resnais, com Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima, Mon Amour); de Ettore Scola, com Nós que nos amávamos tanto (C'eravamo tanto amati); de Terence Davies, com Vozes do Passado (Distant Voices) e alguns outros

O narrador do filme (Allen), ao nos falar da importância do rádio para a sua família, dos programas favoritos de cada um, fala, por extensão, de como esse medium estava presente na vida de todas as famílias da época, nos tempos anteriores à chegada da TV. Tudo transcorre no filme em Nova York, na virada da década de 1930 para a de 1940,  estendendo-se a ação até o início do ano de 1944, quando das festas de ano novo. 


CARMEN   MIRANDA
O filme nos apresenta o dia-a-dia de uma família de origem judaica que vive modestamente perto de Queens, na vizinhança de Rockaway Beach. Cada membro da família encontra no rádio, através de um programa preferido, uma forma de escapismo da realidade em que vive. Tudo servia no rádio para preencher os dias e as noites das famílias de então, alimentando sobretudo o seu imaginário,
DENISE   DUMONT
complemento do que ouviam, do que consumiam, os gossips das celebridades, as histórias dos heróis do esporte, o programa
A Guerra dos Mundos (Orson Wells), os crooners, as baladas, a música latino-americana, representada, no que se refere à brasileira, pela voz de Carmen Miranda e por Denise Dumont (filha de Humberto Teixeira e produtora do filme O Homem que Engarrafava Nuvens, sobre seu pai), os blues, o Vingador mascarado (Wallace Shawn), os comerciais etc.


SETH,   TIA   BEA   E   SEU   NAMORADO   

Histórias paralelas, dentre outras, que nos falam do deslumbramento do menino ao entrar no Radio City Music Hall, ao passar uma tarde em Coney Island, histórias que nos falam dos peixes do tio Abe (Josh Mostel) , das crianças angariando fundos para a criação de um estado judaico na Palestina, do pai motorista
A   CIGARETTE  GIRL  ( MIA   FARROW ) 
de taxi (Michael Tucker), das esperanças de uma
cigarette girl (Mia Farrow), personagem marcante dos night clubs, que queria se transformar numa estrela,  da vida amorosa da tia Bea (a grande Dianne Wiest), que acorda o menino (Allan) para ver o espetáculo da noite de Ano Novo de 1944. É nessa sequência, já no final do filme, que WA faz Diane Keaton emprestar a sua fascinante presença para que possamos ouvir uma grande interpretação de You´d Be So Nice To Come Home To (Cole Porter). Um reconhecimento do que ela, sem dúvida, sempre significou para ele, desde Sonhos de Um Sedutor (dirigido por Herbert Ross, 1972, roteiro de WA), no qual ele assumiu a personalidade de Ricky (Humphrey Bogart) e ela de Ilsa (Ingrid Bergman), uma fantástica homenagem prestada por WA a um dos clássicos do cinema, Casablanca.  

DIANE   KEATON

Como pontos altos de A Era do Rádio, além do excepcional conjunto de atores, referências especiais à sua música, à fotografia
DICK   HYMAN
e ao desenho de produção, respectivamente sob a responsabilidade de Dick Hyman, Carlo Di Palma e Santo Loquasto. Muito ligado à chamada música clássica (tornaram-se--lhe familiares, através de Anton Rovinsky, pianista,  seu tio,  Beethoven, Chopin, Charles Ives e outros),  Hyman logo passou ao jazz, participando de vários conjuntos como pianista, inclusive do de Benny Goodman. Construiu a sua vida como compositor, pesquisador, professor e diretor artístico de espetáculos e festivais de jazz, obtendo sempre  grande reconhecimento, inclusive dos meios universitários, que lhe conferiram honorificamente títulos de doutorado. Allen-Hyman colocaram no filme A Era do Rádio, ao todo, 43 composições, todas fazendo parte do que há de melhor na música popular norte-americana, com inesquecíveis interpretações de cantores e orquestras, como Frank Sinatra, Tommy Dorsey, Glenn Miller e outros. 


CARLO  DI  PALMA
Sem Hyman, Di Palma ou Loquasto, os filmes de WA certamente seriam diferentes. Di Palma (1925-2004), quando se mudou para os USA (1983) já era nome importante como diretor de fotografia de filmes; tinha trabalhado bastante com Michelangelo Antonioni na Itália. E com WA fez mais de dez filmes. Neste particular (direção de fotografia), não se pode esquecer do grande cuidado que WA sempre demonstrou com relação aos seus colaboradores nesta área: cite-se, por exemplo, dois outros fotógrafos, importantíssimos, Gordon Willis e Sven Nykvist, chamados por ele para participar também de seus filmes.

Santo Richard Loquasto é outro que faz parte do Woody´s People.
SANTO  RICHARD  LOQUASTO
Nascido em 1944, formado em Literatura, tendo trabalhado na Broadway, veio para o cinema para exercer as funções de cenógrafo e de desenhista de figurinos. Encarregou-se da excepcional concepção cênica de muitos dos filmes de WA. Loquasto, dentre os cenógrafos em atividade no cinema, talvez seja aquele que melhor tenha demonstrado como a arquitetura de interiores (cenografia, mobília, objetos etc.) pode dialogar bem com os modelos e as cores dos figurinos dos personagens e do ambiente fílmico.   


O rádio, nos seus anos de glória, lembremos, entrava diariamente nas casas, era levado para os quartos, onde ficava ao lado das camas, em cima de criados-mudos ou de pequenas mesas de cabeceira. Ele trazia vozes, tornava familiar o nome de comentaristas, locutores (speakers), que mantinham a vivacidade da comunicação entre a programação musical, inundando nosso espaço sonoro com comerciais, avisos, propaganda, política, arte. Em cada cidade,  tivemos vozes que se fixaram, timbres identificadores, marcas próprias,  gente que falou a milhares, milhões de ouvintes, transmitindo-lhes sofrimentos, alegrias, esperanças, narrando tragédias. Programas que consolaram, instruíram e também desinformaram e corromperam. 

Embora a TV tenha assumido hoje o papel de meio de comunicação mais eficaz, o rádio vem conseguindo sobreviver, dividindo com ela a sua condição de veículo também indispensável ao quotidiano das pessoas. A TV exige imobilidade, nos prende, nos imobiliza como o olhar da Medusa; o rádio, ao contrário, é móvel, permite que nos movimentemos e solicita a imaginação de quem o ouve. Podemos ouvi-lo fazendo outras coisas, trabalhando, cozinhando, lendo, passeando, guiando o automóvel. Desde a sua invenção, no início do séc. XX, apesar dos “ataques” da TV e da Internet atualmente, ele se mantém sobretudo porque, ouvindo-o, tornamo-nos de certo modo também coautores do que ele transmite.  


OUVINDO   RÁDIO

Sendo um veículo exclusivamente auditivo, o rádio é em certo sentido abstrato. Ele possibilitou, além disso, a extraordinária expansão do jornalismo oral, através de programas noticiosos, interpretativos e opinativos. Muito importantes nesses anos de glória do rádio foram, além do chamado radioteatro, os programas de auditório (grande tema de Altman), as grandes estações mantendo orquestras voltadas tanto para o clássico como para o popular, cantores, um corpo fixo de atores, estruturas enormes. O rádio foi além ao criar programas (mostrados por WA no filme) que representavam a chamada miscelânia, programas em torno dos quais as famílias se uniam: o cotidiano das pessoas, as efemérides, as previsões meteorológicas, os avisos úteis, notícias breves, conselhos de saúde, objetos e animais perdidos e achados à disposição de seus donos, pessoas em trânsito pela cidade e que queriam localizar parentes ou amigos. Tal programação, impossível à TV, que o filme destaca, se constituiu numa espécie de almanaque radiofônico, com programas movimentados desde as primeiras horas do dia, com uma espetacular e atraente sonoplastia, com música, buzinas, gongos, com cortinas e faixas musicais, jingles que, pela repetição, acabaram se integrando à cultura popular. Lembre-se aqui, a propósito, de Re-lax Jingle, cantado por Mia Farrow em A Era do Rádio.


WOODY   ALLEN

Allan Stewart Königsberg, Woody Allen, nasceu em Nova York, a 1º de dezembro de 1935, de família judaica. É cineasta, roteirista, escritor, ator e músico. Aos quinze anos já escrevia para colunas de jornais e programas de rádio. Frequentava ao mesmo tempo a universidade de NY, mas nunca chegou a se formar. Em 1964 já era um nome conhecido nacionalmente como produtor e ator de programas humorísticos. 

Sua primeira experiência cinematográfica aconteceu em 1965, quando foi chamado para escrever o roteiro e estrelar O que é que há, gatinha? Como diretor, sua estreia ocorreu em 1969, com Um assaltante bem trapalhão. Daí para frente, muitas obras-primas, sendo a primeira e  mais fascinante Annie Hall, premiada nos USA e na Europa. Nova York é invariavelmente o cenário de seus filmes até o final dos anos de 1990. Ultimamente tem feito seus filmes na Europa (Inglaterra, Espanha, Itália e França). 

Além do que se possa falar dele, WA tem uma qualidade que poucos diretores têm:  faz parte de um grupo restrito de cineastas que tanto é cinéfilo como curte a boa literatura e artes plásticas, advindo desse fato a sua proclamada admiração por realizadores como Bergman, Groucho Marx, Fellini, Visconti,  Dreyer, por escritores como Dostoievski e Kafka e por pintores como Caravaggio. WA escreve, dirige e participa como ator da maioria dos seus filmes. Os personagens que representa nos seus filmes e mesmo, eventualmente, nos de outros diretores, são, de um modo geral, os tipos que na vida social americana são conhecidos como loosers (perdedores), por oposição aos winners,
DIANNE   WIEST
(vencedores). Apresentando-os muitas vezes como neuróticos e fracassados, inadaptados, com muito humor, WA é, sem dúvida, o maior “humanista” do cinema americano ao nos remeter a ideias de que na vida há outros e importantes valores que não só os do dinheiro e do consumo. Outra notável característica de WA é o “faro” que ele tem para lançar figuras femininas nos seus filmes, transformando-as em grandes atrizes, Diane Keaton, Mia Farrow, Dianne Wiest, Judith Malina, Mira Sorvino, Scarlett Johanson e muitas outras. 


Quanto a Robert Altman, fica aqui inicialmente o registro de suas
ROBERT   ALTMAN
primeiras tentativas no cinema: em 1955, realizou o seu primeiro longa-metragem, The Delinquents, e no, ano seguinte, o seu famoso documentário sobre James Dean, comentado por Stewart Stem. Depois de muita atividade na TV, enfrentou o cinema comercial para ir se fixando, isoladamente, como pioneiro de uma  nova maneira de fazer filmes, fora dos padrões hollywoodianos. Tornou-se logo um arguto e ferino crítico do american way of life e de alguns dos lugares-comuns mais prezados pela indústria cinematográfica oficial. Desconstruiu heróis do western, do filme policial, do filme de guerra e da própria indústria cinematográfica. Sua mais espetacular realização, neste particular, foi M.A.S.H., seguido, num mesmo nível, de Nashville e de Short Cuts, nos quais demonstrou o seu gosto pelos pequenos quadros de histórias paralelas de vários personagens. Essa maneira fragmentária de narrar, com um padrão rítmico sincopado  e elíptico às vezes, deliberadamente descontínuo, anti-linear se quisermos,  caleidoscópico em muitos sentidos a meu ver,  incomoda bastante, reconheço, algumas pessoas,  mesmo críticos,  que se aproximam descuidadamente da sua obra. Sua maneira de narrar é única no cinema, um estilo que lhe permitiu construir grandes painéis de aspectos da sociedade norte-americana na qual sempre procurou  intervir.    


Depois de temporadas na Europa, que não lhe satisfizeram, RA alcançou grande sucesso de crítica e de público a partir de 1992, com The Player, Short Cuts, Prêt à Porter e Kansas City. Seguiram-se, talvez não à altura dos retrocitados, mas sempre muito bons, Jazz´34, The Gingerbread man, Cookie´s Fortune, Dr. T. and the Women, Gosford Park, Company (a vida de uma troupe de balé) e, finalmente, em 2006, The Last Show (A Prairie Home Copanion), que no Brasil recebeu o título de A Última Noite. 


NIGHTAWKS    ( HOPPER )

Somos transportados neste último filme para a cidade de Saint-Paul, Minnesota, num chuvoso sábado à noite. A primeira imagem a encher a tela é a de um all-night diner (Restaurante do Mickey), que parece saído de uma tela de Edward Hopper, de Nightawks (aves da noite? gaviões da noite?), a mesma precisão gélida e impessoal na visão das pequenas cidades americanas, as cenas mais banais da sua vida urbana, tudo banhado por uma doentia luz amarelada (a famosa strange sad light, como o próprio Hopper a chamava) algo icônico e kitschy ao mesmo tempo. Não podemos deixar também, vendo essa abertura do filme, de pensar em Nightshadows, outra tela de Hopper. Aos poucos, a rua antes deserta, vai se enchendo dos frequentadores que nas noites de sábado lotam o auditório do Fitzgerald Theatre (homenagem ao escritor F.Scott Fitzgerald, nascido em Saint-Paul) para assistir A Prairie Home Copanion.

O criador desse programa hebdomadário é o grande “homem do
GARRISON   KEILOR
rádio” Garrison Keilor, conhecido por GK, que há quase quarenta anos o mantém, com uma audiência de cerca de 4 milhões de pessoas, transmitido por centenas de emissoras nos USA, com retransmissão para a Europa, a partir de Saint-Paul, invariavelmente com o bordão de que a transmissão estava sendo feita a partir de Saint-Paul, near lake Wobegon, where all the women are strong, all the men are good-looking and all the children are above average.  


Na noite do filme, o último programa estava sendo transmitido. Comandava-o GK (produtor e apresentador), dele participando vedetes do soul e do country, uma verdadeira família. O prédio onde funcionava a emissora fora vendido para um grupo religioso texano que iria transformar o terreno num estacionamento ou num
GUY    NOIR   ( KEVIN   KLINE )
supermercado, segundo alguns. Durante a transmissão, os artistas do programa, a Family é visitada por uma estranha e misteriosa figura feminina que desnorteia totalmente Guy Noir (achado fantástico, o nome dado a Kevin Kline), chefe da segurança da emissora, antigo detetive particular desempregado, uma figura em cuja composição não podemos deixar de reconhecer traços de um Peter Sellers e de um esquecido Darry Cowl, do cinema francês.  


O roteiro do filme foi escrito por GK e RA, perfeitamente afinados. Foi o último filme deste último, falecido poucos meses depois de tê-lo concluído. Sabe-se que já bastante doente, Altman manteve, durante as filmagens, como diretor reserva, Paul Thomas Anderson, para a eventualidade de não poder concluí-las. Delicado, sensível e natural, A Última Noite é uma das mais perfeitas demonstrações do que se pode chamar de humor (radiofônico) do meio-oeste americano, perceptível não só através dos seus afiados diálogos como pelo imenso talento e criatividade de GK, responsável inclusive pela música e maior parte dos jingles apresentados no programa,  pontos altos do filme.

Tudo o que vemos está impregnado de um tom tanático desde a sua abertura, como a referida imagem hopperiana já anuncia. Este tom
ASPHODEL   ( VIRGINIA   MADSEN )
é marcado no transcorrer da ação por um personagem, Asphodel, construído magistralmente. Asphodel, no filme, é uma espécie de daimon, uma entidade intermediária entre os deuses e os mortais, uma das formas tomadas por Thanatos, o deus da morte da mitologia grega. A rigor, Thanatos nunca foi no mito grego um causador da morte. Sua presença sugere mais uma ideia de cessação e de descontinuidade. Os poetas o tratam como uma espécie de anjo benevolente que se aproximava dos moribundos para ajudá-los, acariciando-os, fechando-lhes os olhos, distendendo os seus membros, como Asphodel faz com o velho roqueiro Chuck Akers. 


ASFÓDELO
Esse aspecto amoroso de Thanatos-Asphodel (este o nome de uma flor do Hades, o inferno dos gregos, de perfume perturbador), foi bem captado por RA através de Virginia Madsen. Nos USA, na Europa e no Brasil, nos textos que conheço sobre o filme, esse aspecto não foi alcançado. De um modo geral, a crítica oficial viu Asphodel apenas como “uma mulher má, perigosa”, não lhe dando maior importância. Para não chocar talvez, RA “traduziu” para os desinformados o personagem Asphodel, reduzindo-o a um espírito encarnado (que ela não era): uma mulher que teria morrido ouvindo o A Prairie Home Companion. O máximo a que chegou a crítica mais “informada” foi aproximar Asphodel de um poema de Tennyson sobre as deusas Perséfone e Deméter (veja neste blog, em Das Flores II, matéria sobre o asfódelo, a flor infernal).  


RHONDA,   YOLANDA    E   LOLA

Com A Última Noite confirma-se também uma das mais notáveis características do cinema de RA, a do grande nível dos atores por ele escolhidos. Como sempre, RA nos faz aceitar (eis a sua magia como diretor!) que ninguém mais, a não os atores por ele escolhidos, poderia desempenhar “aqueles” papéis no seu filme. Os números musicais de Yolanda e de Rhonda (Meryl Streep e Lily
DUSTY    E    LEFTY
Tomlin), os do grupo
country, os cantores caubóis Dusty e Lefty (Woody Herrelson e John Reilly), mais os jingles de GK, são para mim uma comprovação da característica que mencionei, tudo muito bem registrado pela competente câmara de Edward Lachman. Destaque, neste particular, para Lindsay Lohan (Lola, a filha de Meryl Streep no filme, que escreve poemas sobre o suicídio) que, como grande cantora que é, além de atriz,  no fechamento do filme, literalmente surpreende a todos com a sua participação. Lindsay é cantora pop de talento e, ao que consta, entre os anos 2010 e 2012, adotou um comportamento bastante autodestrutivo ao se envolver com drogas, álcool e cleptomania. Condenada pela Justiça, passou um bom tempo a trabalhar como faxineira num necrotério, além de participar de sessões de psicoterapia judicial. Libertada, voltou ao seu trabalho no cinema e às gravações, transformando-se, como diz, numa pessoa diferente, do bem.