terça-feira, 9 de dezembro de 2014

EGITO - LITERATURA EGÍPCIA: O DIÁLOGO DE UM DESESPERADO COM SUA ALMA



A história do antigo Egito costuma ser dividida em três grandes eras, representadas pelos Impérios Antigo, Médio e Novo, separados por períodos intermediários de grande confusão política e social. O Antigo Império foi precedido por um período chamado pré-dinástico, que, sabe-se hoje, por recentes pesquisas arqueológicas, na realidade se estendeu entre, mais ou menos, 10000 aC (passagem do paleolítico para o neolítico) e 4300 aC (unificação do Alto e do Baixo Egito), e não como supunha a Egiptologia tradicional, entre 5000 e 2700 aC.

Foi durante o Antigo Império, com base em estruturas sociais já estabelecidas no período pré-dinástico, que um sistema de governo teocrático, muito organizado e centralizado, foi implantado. O acontecimento religioso mais importante dessa fase foi o do desenvolvimento do culto solar centralizado em Ra, deus Sol, o Criador, a partir da cidade de Iun, chamada de Heliópolis pelos gregos (na Bíblia foi chamada de On), associado a outras divindades. As principais bases desse culto estão definidas nos Textos das Pirâmides.

PTHA
A cosmogonia heliopolitana, para explicar a criação, origem da vida universal, adotava a tese segundo a qual a matéria procedia de uma fonte (unidade primordial) e se transformava gradativamente em múltiplas e diversas formas. Estas transformações, segundo a teologia menfita, se concretizavam através da palavra falada, sendo Ptha a grande divindade desta demiurgia. 

Por volta de 2700 aC e pelos quinhentos anos seguintes, o Egito entrou numa fase de grande prosperidade. As fronteiras
CANAIS DE IRRIGAÇÃO
controladas, o país produzindo, os faraós da quarta dinastia governavam com os olhos postos na eternidade. Construíram-se grandes monumentos, grandes edificações e esculturas em pedra. Canais e diques foram abertos e levantados para controlar melhor as águas do Nilo, para tornar o país ainda mais fértil.  Heliópolis cresceu suntuosamente em importância. A sensação era a de um progresso que jamais teria fim. O rei-deus era supremo, todos se considerando seus servos, inclusive a aristocracia, de onde saíam os quadros para a administração do país. 


Quando a quinta dinastia desse período (2494-2345 aC) subiu ao poder, um clima de intranquilidade, porém, foi aos pouco se espalhando pelo país. As relações entre o poder central, o faraó, e a classe sacerdotal começaram a se deteriorar, afetando bastante a vida de toda a população. Quando da passagem da quarta para a quinta dinastia, o faraó, até então considerado como uma divindade encarnada, suprema, começou a sofrer uma capitis diminutio. A classe sacerdotal de Heliópolis, cujo poder crescia em importância e riqueza, promoveu uma espécie de rebaixamento da figura real. De divindade suprema, absoluta, como um Ra, ele passara a ser considerado como seu filho.


RA

Além deste problema, outro, de natureza bem material, começou a intranquilizar bastante o governo central: a economia estava ameaçada de colapso. Constatou-se que os grandes gastos que haviam sido feitos na dinastia anterior, para celebrar as glórias de Ra e do poder faraônico, haviam praticamente esvaziado o Tesouro real.

Mas os problemas não se resumiam só a estes. Graves acontecimentos de ordem administrativa, provocados por atitudes de rebeldia da burocracia que administrava o país, nas mãos da aristocracia, antes submissa ao poder real, estavam servindo de exemplo para manifestações de desobediência popular. Os nobres, que nas províncias do império atuavam como governadores, começaram a se mostrar descontentes com o poder central, que o faraó representava, alguns até questionando abertamente a sua onipotência.

Durante toda quinta dinastia as tensões foram se avolumando até que no reinado do seu último faraó do período, chamado Pepi, que reinou por quase noventa anos, elas se tornaram incontroláveis. A agitação tomou conta do país, os senhores feudais, isoladamente ou através de alianças regionais, opuseram-se ao poder faraônico. Uma demonstração explícita dessa rebeldia foi quando muitos deles passaram a construir os seus túmulos nos seus domínios, uma afronta máxima.

As concepções funerárias egípcias, desde os tempos pré-dinásticos, observadas no Antigo Império, embora jamais tenham sido claramente estruturadas, revelaram sempre uma crença inabalável na sobrevivência no Outro Lado. Era costume, por isso, que os nobres procurassem ser enterrados nas proximidades dos túmulos reais, para melhor acompanhar o faraó no seu destino de imortalidade.

A rebeldia dos senhores feudais acabou gerando a anarquia, o caos social e político. As desordens e as crises eram constantes, perdendo-se o controle real sobre as águas do Nilo, vital para o bom desempenho da economia do país. As colheitas foram grandemente prejudicadas, a escassez de alimentos logo passou a fazer parte do quotidiano das pessoas, quando não mesmo a fome, em extensas regiões. Foi por esta época também, para piorar a situação, que nômades asiáticos atingiram a região do delta do Nilo, uma região rica, trazendo muito sofrimento para a vida de grandes contingentes populacionais. Aceleradamente, o Antigo Império se desintegrou, entrando o país num período histórico a que se deu o nome Primeiro Período Intermediário. 

Durante esse período, o Egito foi governado por sete dinastias, da sétima à décima primeira. Foi durante as sétima e oitava dinastias, cujos governantes duraram muito pouco no poder, que a guerra civil se tornou generalizada entre os governadores das províncias, com seus exércitos de mercenários. A fome, a miséria e a doença tomaram conta do país. Os túmulos foram saqueados, principalmente os mais ricos, da realeza e da aristocracia. Desrespeitadas as instituições do poder político, as pessoas adotaram atitudes individualistas, colocando os seus interesses pessoais acima de qualquer engajamento religioso ou social. Os tempos eram de agnosticismo, de pessimismo, de desespero. A morte, inclusive, se “desvalorizou”. As pessoas deixaram de investir na eternidade.

Os registros literários que nos chegaram desse período dão testemunhos da crise. Sua característica maior estava na excessiva valorização do individualismo como uma espécie de réplica à deterioração da figura do faraó. Um admirável texto desse período (autor anônimo), denominado por alguns estudiosos de O Debate sobre o Suicídio, é um diálogo entre um homem atormentado pelo desespero e sua alma (ba). O homem tenta convencer a sua alma de que o suicídio é algo bom, positivo, diante do mundo, assim descrito: Os irmãos são maus, os companheiros de ontem não se amam... Os corações estão ávidos, cada um desejando os bens de seu vizinho... Não há mais justos. O país está abandonado aos que só cultivam iniquidades... O pecado que ronda a Terra não tem fim. Mais: A morte está hoje diante de mim como a cura para um doente. A alma, numa certa passagem do texto, embora tente sempre demovê-lo, garante que ficará junto dele, mesmo que ele decida pôr fim à própria vida. 

Os textos literários produzidos nos anos do período intermediário de que trato aqui foram reunidos sob o nome de Literatura Pessimista. Esses textos refletem, dentre outras coisas, uma nova atitude com relação à morte e o questionamento sobre expectativa que todo egípcio tinha de alcançar a vida eterna no Outro Lado. Um dos mais antigos textos dessa literatura tem o nome de A Profecia de Nefertiti: um sábio é conduzido à presença do faraó (Sneferu, da quarta dinastia) e lhe fez revelações catastróficas sobre a vida futura do país, com destaque para os conflitos internos e para a invasão estrangeira. Maiores

informações sobre tão antiga literatura, para os quiserem ir mais fundo, poderão ser obtidas num dos mais completos livros até hoje publicado sobre ela, de nome Ancient Egyptian Literature, de Miriam Lichtheim, em 3 vols, publicados em 1973, l976 e 1980, pela University Califórnia Press. Mais informações poderão ser obtidas também em obra sobre o mesmo assunto, de Sir Alan Gardiner, publicada em 1914. Dentre outros textos pessimistas muito curiosos, trazidos por esses historiadores à luz, produzidos na agonia do Antigo Império, cite-se As Admoestações de um Profeta e o diálogo de um desesperado com a sua alma, acima designado pelo nome de O debate sobre o Suicídio. 

Não se pense, contudo, que a literatura pessimista tenha sido uma característica de períodos de decadência, como o foi o Primeiro Período Intermediário. No Médio Império, embora os tempos fossem diferentes, mais amenos, a desconfiança com relação à vida no Outro Lado marcava a sua presença no ideário que dava origem à literatura então produzida. O texto mais representativo dessa nova mentalidade é o Canto de Intef, que reflete uma nova postura da elite intelectual diante do fim último do homem. Poemas como os aqui mencionados foram provavelmente cantados também nos banquetes mortuários, ao lado das celebrações de praxe, em honra aos mortos, que ritualmente se realizavam.

ESTELA COM O CANTO DE INTEF
O Canto de Intef, embora não se oponha abertamente à ideia de uma vida eterna, a ser conquistada durante a vida terrena através do cumprimento irrepreensível de todas as obrigações religiosas e sociais que um egípcio deveria observar, esse canto procurava encorajar o gozo da vida terrena. Essa literatura, aliás, era muito semelhante àquela que muitos séculos mais tarde Horácio, entre os romanos, no início da era cristã, resumiria na expressão Carpe Diem: colhe o teu dia, aproveita o momento, evita perder tempo com coisas inúteis. O poeta egípcio era bastante explícito: mesmo uma tumba repleta de provisões não garantiria uma vida eterna. Aliás, até hoje, completava ele, ninguém voltou do Duat, o Outro Lado, o reino subterrâneo de Osíris, para nos contar alguma coisa sobre ele.

OSÍRIS
Inegavelmente, porém, o texto mais bem acabado da literatura pessimista que nos chegou do antigo Egito, tanto sob o ponto de vista filosófico como literário, foi o do diálogo do desesperado com a sua alma. Semelhante a ele, igualmente expressivo, embora referente a um outro contexto, é o que encontramos no Livro dos Mortos, entre os cantos 26 e 30.Neste, o defunto, ao se apresentar no tribunal de Osíris, para ser julgado, pedia ao seu coração que não depusesse contra ele.


TEXTO  DO  LIVRO  DOS  MORTOS

Entenda-se: para os egípcios, o coração físico (hati) era considerado como sede da vida instintiva, subconsciente. A ele se opunha o ib, o chamado coração consciente, ativo, onde se manifestavam os impulsos evolutivos, os desejos e as aspirações elevadas, nele atuando a vontade lúcida, que devia alimentar a vida moral. O coração, na religião egípcia, era a parte mais importante do ser humano, base do seu destino individual. Era em ib que estavam as possibilidades futuras do ser humano, o que ainda poderia ser realizado. Em hati estava depositado o passado, algo assim como aquilo que os hindus chamavam de sanchita karma. Por isso, o defunto, cheio de angústia, temia a interferência de hati, ou melhor, temia que ele o desmentisse quando estivesse fazendo a sua confissão, sempre negativa: não fiz, não permiti, não provoquei, não usurpei, não causei isto ou aquilo etc.

Para os egípcios, a personalidade humana era composta de quatro
BA,   CEGONHA 
partes: Khet, o corpo físico destinado à morte; chut, a sombra; e dois elementos não percebidos pelos sentidos, ba e ka. O primeiro destes dois últimos era representado por uma cegonha, talvez tanto por razões de ordem homofônicas como analógicas. A partir da 18ª dinastia, ba tomará a forma de um pássaro (cegonha) com cabeça humana que, por ocasião da morte, escapava em direção das regiões etéreas.


O homem existia através de seu corpo (khet), de seu nome (ren), de sua imagem ideal (ka), de sua alma (ba) e de sua sombra (chut). Estas dimensões físicas e espirituais, ressalte-se, não podem ser avaliadas com base nas concepções judaico-cristãs às quais estamos habituados nem segundo certas concepções da Psicanálise moderna, principalmente as de alguns freudianos, que chegam mesmo a considerar o sentimento religioso como um fenômeno patológico. 


CADÁVER   MUMIFICADO

No mundo egípcio, as categorias do concreto e do imaginário mais se imbricam do que se superpõem. Assim, o ser humano, depois de sua morte e de se ter beneficiado dos ritos funerários se reintegra no Outro Lado. O corpo (khet), pelo cadáver mumificado, é colocado numa espécie de cova para permanecer ligado à terra, enquanto seu ka, sob a forma de uma imagem, vai receber oferendas na capela do túmulo. 

O conhecimento do nome (ren) de cada ser humano era indispensável quando da realização dos ritos de passagem por ocasião da morte porque ele guardava uma identidade secreta, sendo o morto por ele convocado. O ka fornecia a força psico-vital, força que permitia que o nome existisse. Aplicava-se o nome ka também à faculdade que tinha um deus, uma pessoa ou um animal de realizar seus atos.


KNUM
Quando o deus oleiro Knum fabricou com barro o primeiro corpo humano, ele criou também o ka, o duplo psico-energético do corpo físico, uma espécie de matriz invisível. Quando o ser humano morria, seu ka se separava de seu corpo físico. Este fazia parte do mundo visível, enquanto o outro participava tanto deste mundo quanto do invisível. O mundo visível, terrestre, era assim uma espécie de “cópia animada” do céu graças ao ka, que era o depósito das forças vitais do qual procedia a vida e que subsistia depois da morte. O ka era uma espécie de reservatório de forças vitais, um duplo imaterial do corpo, modelado ao mesmo tempo que ele. Quando um ser humano morria, era o ka que se “ocupava” das oferendas depositadas quando do culto funerário. O ka de um faraó tinha nele uma parcela do divino. Na arte egípcia, estátuas colossais são sempre usadas para representar o ka real.

Quando nos aproximamos do conceito egípcio do ka não há como não se pensar em Platão, nas suas ideias, provavelmente retiradas, do pensamento religioso egípcio.  Com efeito, para Platão, os múltiplos e sensíveis objetos do mundo físico, composto por uma
PLATÃO
matéria mutável e acidental e por uma forma pela qual são o que são, têm um substrato, uma essência, que existe eternamente. O mundo sensível era para Platão formado assim por elementos ideais e por elementos materiais, constituído pelo ser e pelo não-ser. Todos os seres e objetos do mundo, precários e perecíveis, mais ou menos segundo a espécie a que pertençam, têm em si um reflexo de uma Ideia única correspondente a essa espécie. Assim, os diferentes seres e objetos sensíveis, múltiplos e destinados à morte, como se disse, como não podem ter a perfeição da sua Ideia matriz, já que matéria é sinônimo de imperfeição, resistente sempre à forma, não passam de uma cópia dessa matriz ideal.  


O ba é a noção que mais se aproxima da nossa, de alma. Primitivamente, o ba parece ter sido o poder que os deuses tinham de se movimentar e de tomar formas diferentes. Assim, uma forma ligava-se a cada ba, podendo os deuses ter muitos ba, segundo a forma que quisessem assumir. O ba  correspondia mais a uma capacidade do que a uma entidade. Quando um ser humano morria, o ba retomava a sua liberdade mas permanecendo ligado ao morto enquanto este, graças à mumificação, conservava uma forma humana. 

Quanto aos deuses, o ba habitava a sua estátua de culto. Essa entidade  tinha assim necessidade de um suporte para se manter, uma imagem, uma estátua. No caso de Ra, por exemplo, dizia-se que seu ba era o Sol. Dizer que alguma coisa era o ba de um deus equivalia a dizer que esta coisa era a manifestação do deus no mundo sensível. 

Negra e furtiva, a sombra, chut, depois da morte, e uma vez “aberta” a porta da tumba, escapava em direção da luz juntamente com a alma. Como fiel companheira do homem durante a sua vida, a sombra, ao escapar, adquiria autonomia. Ela era considerada como um duplo do ser humano com a função de lhe oferecer proteção.      

Depois da morte de uma pessoa, o ka podia permanecer no corpo mumificado ou em alguma estátua que o representasse. Comida e alimentos deviam ser oferecidos para que essa ligação se mantivesse. Quando se trocavam brindes entre amigos, era ao ka que se faziam votos de boa saúde: erguiam-se as taças e se dizia ao teu ka! No momento da morte, esse corpo imaterial, representado sob a forma de um falcão com cabeça humana, deixava o corpo e podia se deslocar por vários lugares, inclusive viajando pelos céus, mas com a obrigação de, à noite, voltar ao túmulo.


TEXTO   DAS   PIRÂMIDES  -  A   BARCA   DO  CÉU

Os livros religiosos que nos informam sobre os costumes funerários egípcios, os Textos das Pirâmides, os Textos dos Sarcófagos e o Livro dos Mortos, nos esclarecem também sobre um princípio espiritual chamado akh, representado por um íbis com um penacho na cabeça. A palavra tem relação com o que é eficaz, benéfico e glorioso. Opondo-se ao corpo, que é da terra, o akh pertencia ao céu. Em tempos muito remotos, ao que parece, só os deuses e os faraós enquanto seres divinos, participavam deste princípio.



O akh estava no começo de qualquer gênese. A imagem para explicá-lo era a da luz saindo das trevas. Os egípcios diziam que Ra saindo de Nut era o akh por excelência. No mito, Nut, deusa do céu noturno, dava nascimento aos astros e os devorava ao fim do dia. Era por isto representada algumas vezes por uma porca, animal que tinha a reputação de devorar as suas próprias crias. O akh, o ba e o ka formavam uma espécie de trindade, três estados espirituais, interdependentes, algo assim como as três faces de um triângulo equilátero. 


NUT

Quando nos aproximamos um pouco mais da literatura egípcia, impossível não se tentar investigar como ela apareceu. Sabe-se que desde o Antigo Império, logo abaixo do faraó, de sua família e da aristocracia, se situava a poderosa classe que fazia o Egito faraônico funcionar de fato. Era a classe dos funcionários públicos, sendo obrigatoriamente escribas os que a ela pertenciam.

A rigor, no Antigo Império, quanto às classes sociais, havia primeiramente o faraó, de origem divina, que assumia uma atitude paternal com relação aos seus dependentes diretos. Mais ou menos numeroso, mais ou menos próximo, esse grupo constituía a nobreza, que costumava às vezes interferir até bastante nos negócios reais. Esse grupo, mais as pessoas da corte, amigos do soberano, chamados imakhu, e os servidores próximos  formavam uma classe privilegiada que foi se afastando e isolando cada vez mais do grosso da população. 

Todo escriba era funcionário do Estado, gozando de grandes regalias em todos os períodos da civilização egípcia. O aprendizado dos candidatos a essa atividade profissional, à qual tinham acesso inclusive crianças de níveis sociais inferiores, começava aos cinco anos, estendendo-se os cursos até os quinze, dezesseis anos ou mais. Era nas escolas, junto dos templos, que os meninos aprendiam, sob uma rigorosa supervisão, a traçar os elegantes signos hieroglíficos e hieráticos. Depois dessa formação, todos acabavam se encaminhando para os vários postos na administração pública. 

Com o tempo, a classe dos escribas, com exceção da dos nobres, foi se colocando acima das demais, adquirindo muitos de seus
ESCRIBA
representantes a condição de sábios. Os instrumentos que usavam e os rolos de papiro que carregavam davam-lhes consideração e prestígio. Era pela cultura que iam adquirindo e pelos meios sociais que passavam a frequentar que os escriba esperavam atingir os postos mais elevados na administração pública, inclusive o de vizir. No Antigo Império, eles gozaram de tanto prestígio que só podiam ter acesso à carreira as crianças da família real e da nobreza. É à classe dos escribas que devemos, sem dúvida, a produção literária que nos chegou do antigo Egito.


Os textos literários desses antigos tempos foram registrados em pedras, óstracos , tabuinhas de madeira e em papiros. Muita coisa foi destruída pelo tempo e pelo próprio homem. Em 1848, um egiptólogo alemão adquiriu um papiro que fazia parte da coleção de um diplomata inglês. Estudos realizados possibilitaram identificá-lo como um texto produzido ao final do Antigo Império, no chamado Primeiro Período Intermediário. Estava escrito na forma de um diálogo (perdeu-se o seu início): um homem desesperado dialogava com o seu ba, obra sem igual na antiga literatura egípcia. 

Inicialmente, a alma declara que se o homem pusesse fim à sua vida, como pretendia, ela não o acompanharia. Ele desapareceria totalmente no nada. Os discursos do homem e da alma vão se alternando, definindo-se bem as suas posições: para o homem, o suicídio era uma solução; para o seu ba, sua consciência, se quisermos, uma derrota vergonhosa, inapelável. 

O homem expressa não só um grande desgosto com relação a si mesmo como com relação aos outros homens. Ele diz que não encontra ninguém com quem possa falar, ninguém em quem possa confiar. E continua: A morte está hoje diante da minha face como o odor da mirra, como se eu estivesse sentado sob a vela num dia de vento. A alma, ao final, assume a palavra num tom mais duro, contundente até, e pede que, embora reconhecidas as dificuldades dos míseros tempos do seu presente, o homem deixasse de pensar no Ocidente (lugar onde ficavam os cemitérios no antigo Egito, sinônimo aqui de morte) e que ele realizasse os ritos que lhe permitiriam esperar serenamente pela sua hora. A alma, encerrando o diálogo, pede que, considerado tudo que o que lhe falta, homem, num primeiro momento, aprenda a amá-la, pois ambos, juntos, saberiam encontrar o caminho do cais.