quinta-feira, 6 de abril de 2017

CÂNCER (1)

               
                                                

Quando o Sol, no mês de junho, ingressa na constelação de Câncer começa no hemisfério norte o verão. A essa data dá-se o nome de solstício de verão, atingindo o Sol o maior grau de afastamento angular do equador, no seu aparente movimento no céu.  Solstitium, em latim, quer dizer parada do Sol (stat, parada). Tem-se a impressão, ao se tornarem os dias cada vez mais longos, que o Sol permanecerá para sempre brilhando com tal intensidade.  Estamos no momento em que a luz se prepara para atingir a sua plenitude máxima no ciclo anual, o que ocorrerá quando do ingresso solar na constelação seguinte, de Leão, o signo do esplendor luminoso. Em dezembro, no hemisfério norte, ao ingressar o Sol na constelação de Capricórnio, teremos o início do inverno (solstício de inverno).




A estas datas solsticiais, que marcam no hemisfério norte o início do verão (junho) e do inverno (dezembro), devemos acrescentar as equinociais, que, em março e setembro, marcam, respectivamente, o início da primavera (ingresso do Sol na constelação de Áries) e do outono (ingresso do Sol na constelação de Libra). Equinócio vem de aequinotium, de nox, noctis, noite, e aequae, igualmente. Nas datas equinociais, os dias e as noites têm a mesma duração. 

Os antigos romanos consideravam o seu deus Janus como

do
no das portas solsticiais. Esta divindade, no panteão romano, fazia parte de um grupo chamado de indigetes, divindades consideradas autenticamente nacionais, por oposição ao grupo dos novensiles, divindades importadas, na maioria da Grécia. Os indigetes relacionavam-se na sua origem com os espíritos muito presentes nos cultos da natureza dos povos que ocupavam a península itálica antes do domínio romano, etruscos, sabinos, latinos e outros, povos que Vergílio homenageia nas suas Geórgicas




Os chamados indigetes, no mundo romano, pelo menos nos primeiros séculos da formação da grande urbs, conservavam uma estreita ligação de dependência com os  espíritos protetores da natureza, que encarnavam as forças  nela presentes. É desse mundo que vem Janus, um espírito que vivia em todas as portas, tanto nos grandes portões das cidades como nas portas das casas. Com o tempo, Janus acabou por adquirir poder sobre tudo o que significasse a ultrapassagem de um limiar,  inclusive sobre tudo o que viesse a ser iniciado pelos homens, uma ação, uma atividade,  um culto, uma cerimônia,  pela celebração das principais datas do calendário. É por essa razão que os romanos deram o nome de janeiro (januarius), numa homenagem a Janus, ao primeiro mês do ano. 

Por outro lado, é bom lembrar que a porta é um elemento importante como símbolo da passagem de um lugar a outro, de um estado a outro, das trevas à luz, se quisermos. São de Janus os portões das vias de acesso que permitem o ingresso nos lugares
GÁRGULAS ( NOTRE-DAME, PARIS )
santificados, sejam templos, catedrais, capelas, inclusive florestas, grutas ou cavernas. Lugares que são, desde sempre, um convite para que participemos dos mistérios que encerram. Geralmente protegidos na sua entrada e paredes laterais por animais fantásticos, dragões, leões,
O  OUTRO  LADO
( G. DE CHIRICO ) 
touros, por cenas de sexo, gárgulas etc., as entradas e os portões desses edifícios, uma vez ultrapassados, nos propõem a abstração de nossa personalidade e de nossos apegos materiais para que um novo eu possa nascer. Ultrapassar portas sempre significou em antigas tradições o abandono de velhos conceitos, ideias, esquemas, afetos. Abertas, as portas  significarão acolhida, convite a se descobrir o que existe no interior do edifício. Fechadas significarão isolamento, aprisionamento, rejeição, exclusão e também proteção. 


Com o tempo, Janus, como se disse, adquiriu poder sobre ao que os romanos deram  o nome de initium. No plural, initia, palavra que designava o princípio de uma ciência, de uma religião de mistério, os objetos nela usados, suas cerimônias, bem como os sacrifícios e os auspícios a elas referentes. A etimologia mais remota de Janus está numa raiz indo-europeia, ya, que quer dizer passar, transitar. O signo de Câncer era, nesse sentido, uma porta de passagem, de um subciclo (primavera) para outro (verão), no ciclo anual. No mundo romano, passagens abertas eram chamadas de iani, nome que, depois, virou sobrenome, como Otaviani.


LARES
Janus, no panteão romano, é citado (cultuado), via de regra, juntamente com os Lares, os Manes e os Penates, divindades que tinham sido espíritos dos antepassados que perseguiam os vivos, tudo fazendo parte, como fica fácil perceber para quem tem cultura astrológica, do signo de Câncer.  Os Lares, de origem etrusca, com o tempo, devidamente doutrinados através de cerimônias apropriadas, foram transformados em entidades protetoras das famílias e
PENATES
das casas, tendo muito a ver, nesse sentido, com os valores do mundo familiar e cívico e com os seus espaços fisicamente considerados. Os romanos sempre consideraram a sua vida cívica com um prolongamento da sua vida familiar. Os Lares, com o nome de Lares Compitales (comptium, encruzilhada) protegiam as encruzilhadas das principais vias públicas das cidades. Já os Lares Familiaris protegiam as residências e moradias de um modo geral. 



ESTELA  FUNERÁRIA  ( DI  MANES )
Os Manes eram, a rigor, antepassados divinizados, muito encontrados também em todas as tradições. A palavra vem do verbo manare, que significa sair em direção do mundo de cima, isto é, sair do mundo infernal e subir ao mundo dos vivos. Eram antepassados mortos que não tinham se conformado com a morte e que vinham atormentar os vivos, demonstrar a sua insatisfação, sempre queixosos. A queixa, normalmente, era a de que lhes faltara ou fora incompleto o enterro ritual, que a família não cuidara de despachá-los para o Outro Lado adequadamente, costume herdado dos gregos.  Ou, então, o que era pior, as queixas se referiam ao fato de que embora tivessem mudado de condição, consideravam-se ainda presos ao mundo dos vivos. Eram mortos-vivos, gente que havia morrido com ódio no coração, gente tomada por obsessões, ideias fixas, mágoas, remorsos, desejos de vingança. 

LES  FANTÔMES
( LOUIS BOULANGER, 1829 )
Eram pessoas que permaneciam entre a vida e a morte, não conseguindo alcançar o Outro Lado. Manifestavam-se geralmente à noite, fazendo ruídos, abrindo portas, jogando objetos no chão, abrindo ou fechando janelas. A sua doutrinação para que se conformassem com o seu "destino", indo para o mundo dos mortos, do deus Dite, o grande pai do mundo subterrâneo, incluía a oferta de presentes, geralmente mel, vinho e flores. 

Uma distinção: com o tempo, às almas "boas", conformadas, os romanos deram o nome de Lares. Já às almas "ruins" deram o nome de Lêmures, sempre maléficas e inquietas. Costumavam os Lêmures aparecer sob a forma de fantasmas e tinham o prazer perverso de assustar e incomodar os vivos. Essa tradição é encontrada em muitos países. No Brasil, por exemplo, dá-se a essas almas "ruins" o nome de aparição, assombração. São figuras que aparecem e desaparecem inesperadamente, em meio a rumores, a vozes, sons misteriosos, luzes inexplicáveis.


LÊMUR
Uma observação: os nossos zoólogos deram o nome de lêmur a um animal arborícola, muito semelhante aos símios, encontrado na ilha de Madagascar. Difere dos macacos por possuir um focinho parecido com o da raposa, grandes olhos, pelo lanoso e cauda longa e peluda. Os lêmures, que vivem em sociedades matriarcais,  são esbranquiçados, e como espíritos da noite, principalmente os de menor porte, são noctívagos, gostam de fazer diabruras e produzem sons como se estivessem a chamar por alguém. 

Janus tinha caráter nacional e era uma das mais antigas divindades do panteão romano, sempre representado de modo bifronte, uma cabeça com dupla face, voltadas para direções opostas. "Vivia" sempre fixado no alto de colunas ou na parte superior dos portões e das portas, dominando sempre a entrada e a saída dos lugares de passagem. Ainda hoje, em visitas à Itália, podemos encontrar Janus em galerias, corredores de passagem, pátios etc. Janiculum foi o nome dado a uma cidade que os romanos levantaram numa das sete colinas de Roma. Relativamente próxima, perto de Janiculum, ficava a imagem de outra importante divindade do panteão romano, chamada Saturnia, em homenagem ao deus Sator, antiga divindade das sementeiras de povos itálicos. Assimilado depois ao deus Cronos dos gregos, Sator passou a ser chamado de Saturno, inventando-se a história de que Cronos, vencido na Titanomaquia (batalha em que os futuros deuses olímpicos, comandados por Zeus, venceram os titãs), expulso da Grécia, escondeu-se na Itália, no Lácio (etimologicamente do verbo latino latere, estar escondido), onde foi acolhido por Janus.    

EIXO  CÂNCER - CAPRICÓRNIO
O eixo astrológico Câncer-Capricórnio aparece na história de Janus quando recolhemos a versão de que ele, Janus, em tempos remotíssimos havia sido um herói que, emigrado da Tessália (Grécia) para a Itália, recebeu do rei Câmeses uma parte do seu reino. Pelo processo de evemerização (mitificação de personagens históricos), este herói foi transformado no deus Janus. Morrendo o rei Câmeses, Janus passou a governar sozinho. Foi nessa condição que Janus acolheu o deus Cronos, expulso da Hélade pelos olímpicos. Essa história revela, por outro, o que chamo de imperialismo retroativo da mitologia grega, ou seja, os gregos, para marcar a sua ascendência sobre todas civilizações mediterrâneas, costumavam colocar as suas divindades nas origens de civilizações que eram anteriores à sua, como aconteceu, por exemplo, com o Egito e Creta. 


CRONOS
Cronos na Itália, como Saturno, tornou-se uma divindade civilizadora, responsável pela chamada Aetas Aurea (Idade do Ouro) no mundo romano. Esta idade (tema encontrado na mitologia de outras civilizações) é descrita historicamente como um período em que os deuses e os mortais viviam muito próximos, período em que havia respeito, honra à palavra dada,  as colheitas eram fartas, praticamente nenhuma dor, nada de doenças, catástrofes, pestes ou fome. O que diferenciava os mortais dos deuses era a morte, à qual os primeiro chegavam placidamente, sem sofrimento algum; chegada a sua hora, deitavam-se e dormiam, uma espécie de sono eterno.  

LAREIRA
Já os Penates eram divindades que guardavam o interior da casa, sendo responsáveis pela lareira doméstica, espaço cuja tutela dividiam com a deusa Vesta, a Héstia dos gregos. Eram também responsáveis os Penates pela despensa da casa, lugar onde se guardavam as provisões (penus). Os Penates gostavam muito de "brincar" com as fagulhas que escapavam da lareira ou mesmo de pequenas achas incandescentes que dela saltavam. 

Desde esses tempos áureos, entretanto, a grande contradição, quando pensamos em Cronos (Saturno), já estava instalada inexoravelmente entre os mortais. Se, de um lado, Saturno era o instaurador da aetas aurea, de outro, como Cronos, era o tempo que tudo devorava, o tempo cujo fluir não parava nunca. A lei de Saturno-Cronos, o senhor do tempo, impunha de modo irrevogável uma imagem móvel da imóvel eternidade. Foi a partir da instauração dessa lei que todo movimento tomou o sentido circular e mensurável, dele fazendo parte um começo e um fim. É neste sentido que Cronos-Saturno acabou por se tornar, com o nome Cosmocrator,  o mestre do tempo universal e de seus ritmos. 


SATURNALIA  ( ANTOINE - FRANÇOIS  CALLET )

O reino de Saturno no Lácio chamava-se Satúrnia. Na Roma antiga, celebravam-se, entre 17 e 23 de dezembro, em sua homenagem as Saturnálias, para relembrar a distante aetas aurea, uma idade de abundância, paz e liberdade. Lembre-se que nos primeiros tempos do cristianismo, aproveitando-se da forte mobilização popular que as Saturnálias provocavam, os cristãos,  para uma melhor aceitação da nova religião que pregavam,  escolheram para celebrar a festa do Natal, a data do nascimento de Cristo, o período em que as Saturnálias eram realizadas. 


JANUS
O reinado de Janus acabou se confundindo com a referida aetas aurea, instaurada por Saturno. No decorrer dos séculos, diversas e maravilhosas histórias foram incorporadas à crônica do deus bifronte. Para o povo, entretanto, Janus foi sempre o senhor das passagens, sendo-lhe não só consagrado o mensis januarius como a ele atribuída a tutela de todos os começos, sendo ele invocado, nessa condição, como Janus matutinus, antes de qualquer outra divindade. A primeira prece do latino, ao acordar, era para ele, que abria as portas do dia. 

A festa de Janus era celebrada no dia 9 de janeiro, nele se sacrificando, numa cerimônia que tinha o nome de agonium, um carneiro-guia de rebanho. Evidente, neste cenário, de inspiração astrológica, a relação entre Janus e o carneiro, este sempre entendido como suporte simbólico de muitos mitos, onde entra sempre como representante das forças irrefreáveis e criadoras da natureza, inclusive do instinto de procriação que garante a continuidade da vida.

TEMPLO  DE  JANUS ,
EM  AUTUN , FRANÇA
O principal santuário do deus tinha o nome de Janus Germinus ou Quirinus (palavra que lembra a lança, como arma de guerra) e estava situado ao norte do Forum, diante do templo da deusa Vesta, divindade extremamente importante para a vida cívica e familiar. Vesta, como para os gregos, era a dona do interior da casa, principalmente da lareira, lugar de refeições conjuntas. O templo de Janus permanecia sempre aberto em tempos de guerra, fechando-se-o em tempos de paz.

A principal estátua de Janus estava colocada sob um arco nos grandes portões das cidades de modo a permitir que ele "olhasse" os que nelas entrassem e saíssem, posição que lhe possibilitava exercer a sua função maior, a de porteiro. Como deus dos porteiros, tinha o nome de Janitor e carregava sempre uma chave, seu atributo, levando nas mãos um bastão (virga) para afastar as intromissões molestas como cães, pedintes, bêbados etc. Nessa função, acrescentavam-se ao seu nome os sobrenomes Clusivius (o que fecha) e Patulcius (o que abre). Deus ambivalente, deus dos deuses de Roma, Janus controlava as passagens e as transições, marcando a evolução do passado em direção do futuro, permitindo que se passasse de um estado a outro, de um mundo a outro. Para o povo, era mais importante que Júpiter e, mesmo, que Marte. 


TEMPLO  JANUS  QUADRIFONS,
COLINA  DE JANÍCULA
Simbolicamente, Janus é a encarnação do princípio da vigilância. O imperialismo romano encontrou nele uma de suas melhores imagens na medida em que ele via tudo, observava  tudo, controlava tudo, o que estava atrás e o que vinha pela frente. Algumas vezes, o deus aparecia com o nome de Janus Quadrifons, o de quatro faces, capaz de guardar as quatro direções do espaço, sendo, como tal, símbolo da prepotência e do totalitarismo. Este aspecto de Janus o aproxima
THOMAS  HOBBES
bastante de Cronos, na medida em que este dá e concede tudo, como grande provedor, como sua história nos conta, mas, por outro lado, como Grande Pai é ele quem impede as mudanças e afasta ou elimina possíveis sucessores. Uma tentação na qual caíram e cairão todos os que, conforme a História vem comprovando ao longo dos séculos, ignoram ou teimam em não reconhecer que a natureza do ser humano se explica muito mais por Hobbes do que por Rousseau.

A cabeça de Janus em algumas culturas passou a ser considerada como um símbolo da ambiguidade, algo assim como uma faca de dois gumes. Positivamente, a cabeça do deus pode ser considerada como união de contrários, do positivo e do negativo, qualidades que estão presentes no universo tanto no ser humano e sua situação como nas suas ações. A expressão "ter olhos na nuca", ou seja, ver o que está atrás e na frente, vem da história desse deus. Aos poucos esse sentido se perdeu ou se atenuou para dar lugar ao de falsidade, como no caso da "pessoa que tem duas caras", pessoa não digna de confiança, que oculta o seu verdadeiro eu. 

SÃO  JOÃO  BAPTISTA
 ( RAFAEL  DI  SANZIO )
No cristianismo, os dois santos de nome João podem ser associados a Janus, na medida em que abrem as portas solsticiais. Um deles, ligado ao verão, é João Baptista (festa a 24 de junho), chamado de arauto de Cristo. O outro é João Evangelista (festa a 27 de dezembro), ligado ao inverno. No Evangelho de São João, encontramos referências astrológicas sobre esta questão solsticial a partir do versículo 27 do 3º capítulo quando João Baptista se "apaga" (abertura da fase descendente do Sol) numa atitude de espera de
SÃO JOÃO EVANGELISTA
( EL  GRECO )
alguém, maior que ele, que virá (Câncer, como sabemos, é o signo do "eu que virá"). No versículo 30, encontramos: Ele deve crescer e eu diminuir. Quando o Sol chega a Capricórnio, 21 dezembro (a noite mais longa do ano), ele atinge a declinação sul máxima com relação ao hemisfério norte, mas também esse é o momento em que ele começa a "subir" de novo. Ou seja, quando o Sol na sua marcha anual entra em Capricórnio começa o solstício de inverno no hemisfério norte e o solstício de verão no hemisfério sul.