Valerá a pena o esforço de decidir, de escolher, de ir em direção de alguma coisa? Para que, se um dia, mais cedo ou mais tarde, teremos que parar. Pior ainda: embora constatemos que grande parte da humanidade passa seu tempo se alienando através de uma inconsequente agitação e/ou se suicidando sem o saber, a realidade é que a decisão de parar, a data fatal, a que conta realmente, não está em nós. Não será meio idiota cansarmo-nos à toa?
MIRA SCHENDEL |
Depois do A, vem o B, vem o C, vem todo o alfabeto. As sílabas, as palavras, os livros, as mensagens, a obrigação de responder, palavras e mais palavras, algo sem fim. A cada momento uma nova tarefa nos lança em direção de outra mais adiante e desta passamos a outra e mais outra. Nesse sentido, qualquer projeto humano pode nos parecer absurdo, como lembra Camus, pois sempre haverá outros limites além dos limites que fixamos. Será que há um fim? Será que tudo não passa de uma sucessão de acontecimentos sem qualquer importância maior? Um desfile de acontecimentos sem sentido que nos preocupa sem razão alguma.
O fato é que não há gratuidade na existência; queiramos ou não, a obrigação de decidir acaba se impondo e não temos outra alternativa senão a de atribuir um sentido às coisas para que a
Medusa não nos petrifique. Olhamos o monstro, interrogamo-lo a fim de que nos dê um sinal, mas ele devolve o nosso olhar. Somos nós, afinal, que temos de dar um sentido às coisas. Se não o fizermos, ficaremos sob a ameaça da paralisia, da petrificação, do terror das tendências involutivas, de virar matéria passiva, inerte. Um grande terror, sem dúvida, mas sempre uma grande tentação. O paradoxo existencial então se instala: através de nossa posição no mundo podemos nos tornar sujeitos únicos, mas não podemos deixar de compartilhá-la com os outros seres, pois somos também objeto para eles. É essa compreensão que pode levar ao sentimento que damos o nome de solidariedade, uma dependência mútua entre os homens, um fato natural, relacionado com a vida em sociedade.
MEDUSA ( CARAVAGGIO ) |
Não podemos, por outro lado, como a maioria o faz, procurar fora de nós uma garantia de nossa existência. Somos nós que temos de fazer com que surjam no mundo os valores segundo os quais viveremos. A pergunta não é a de se vale a pena viver ou não, se somos úteis, necessários ao mundo ou não. A pergunta que se impõe então é esta: se queremos viver e, se positiva a resposta, em que condições desejaremos viver?
DOSTOIEVSKI |
KANT |
A moral que o homem tem de criar não será, então, obra de uma potência exterior, mas dele, de sua relação com os outros, num determinado momento e lugar, fruto de um convencimento interior, do homem histórica e geograficamente determinado. Seu engajamento será definitivo, assim. Nosso destino só tem sentido se lhe damos um, resultante de nossas escolhas. Nessa perspectiva, as exigências que temos que fazer a nós mesmos serão muito mais rigorosas. O mundo moral não pode ser um mundo dado de antemão, estranho ao homem. A história vem demonstrando que só charlatães e demagogos defendem a ideia de que princípios morais
não podem ser estabelecidos através do jogo das relações humanas. Este ponto de vista, como se vê, para a cultura ocidental, vem de Platão. Ele recomendava aos gregos de sua época que quando quisessem legislar pensassem em Apolo, deus da aristocracia. Por isso, Platão falava do Homem, tendo ódio dos sofistas (tão menosprezados também por nossos filósofos de plantão!), que falavam de homens. A sofística se liga à concreção do imediato e às escolhas, em meio a outros homens, que somos obrigados a fazer, apesar dos inevitáveis riscos dos exageros subjetivistas.
PLATÃO |
O mundo moral não pode ser buscado fora, mas deve nascer de algo que desejamos, que queremos, enquanto expressão de nossa vontade autêntica, a ser exercida num mundo habitado também por outros seres, um mundo de solicitações, pressões, conflitos e apelos. A nossa responsabilidade se torna dessa forma rigorosamente pessoal e não de uma religião, de uma doutrina ou de um partido político. Com isso, estaremos nos desligando dos valores fixados por artigos de fé, rotinas, convenções e filosofias que envelheceram, desapareceram, que perderam seus conteúdos, mas que sobrevivem por interesse pessoal, comodismo ou hipocrisia.
GILBERT KEITH CHESTERTON |
São inúmeros, nestes dois últimos séculos, nas artes, na literatura, no cinema, no teatro, na própria filosofia mesmo os exemplos desta confusão, desta ambiguidade, entre o Bem e o Mal. Sem dúvida, difícil decidir; difícil nessa confusão que nós, homens comuns, consigamos justificar os nossos atos. A maioria busca, para escapar da angustiante responsabilidade pessoal de escolher, um apoio externo, uma religião, um partido político, uma filosofia, uma estética. É nesse cenário que a aritmética dos prazeres sempre se impõe e, com ela, o valor moral de uma ação passa a ser medido pelo resultado mais ou menos favorável que ela possa proporcionar. Ou seja, nunca pensamos na motivação de nossas ações, mas tão somente nos resultados.
Desde exemplos literários ou dos tomados de nossa vida pessoal ou da vida coletiva, o que se constata é que os metafísicos têm falhado com as suas receitas para justificar o mundo. O problema é que toda a realidade só é acessível a nós pela nossa consciência. Consciência x Mundo, eis a relação. Qualquer opinião, qualquer ponto de vista, qualquer doutrina ou filosofia, mesmo a ideia que façamos de Deus, tudo será sempre um produto de consciências humanas. Isto implica a necessidade de, a cada momento, fazermos escolhas. Essa a nossa liberdade: só nós podemos fazer assim.
Ao invés de enfrentar essa dificuldade de existir, causadora de muita ansiedade, a maioria prefere se fixar numa certa maneira de ser definitiva. Condensa-se ou se imagina. Tornam-se os indivíduos-coisas aos olhos dos outros. Constroem uma
personalidade, um conjunto de convenções, atitudes, tiques, vão montando uma autobiografia que os defina de tal modo que não precisem mais escolher. São os salauds de A Náusea, que sempre têm Deus, a ordem e a polícia ao seu lado. Traços que os definam de uma vez por todas. A tentação da petrificação afeta, sem dúvida, uma grande parte dos seres humanos, a maioria certamente. Os mais poderosos enchem-se de títulos, criam um perfil de ubiquidade confortável que os desobrigue da angústia das escolhas. Posam, não existem, arrastando a sua pompa, sempre seduzidos pelos espelhos, que mais ocultam do que mostram.
A NÁUSEA - JEAN-PAUL SARTRE |
Sartre escreveu uma peça sobre esta questão, Huis Clos (Entre Quatro Paredes). Nessa peça, ele reuniu no inferno três personagens somente para mostrar como cada um deles tem a necessidade do outro para se iludir sobre si mesmo. O inferno é representado por um quarto de hotel de província, sem janelas, sem espelhos, tendo três poltronas, para os três condenados. Estelle, Inês e Garcin são condenados a uma existência falsa, com a qual, nesta vida, se contentam muitos homens. Garcin, no inferno, teme ter morrido como um covarde; queria que assim não fosse, mas o único meio para demonstrar esse critério seria o de provar a sua coragem, o que lhe era impossível, pois, morto, nada mais poderia fazer; tenta escapar, tenta assegurar-se de que não é fraco, construindo uma imagem de homem forte aos olhos de Estelle, procurando não parecer covarde. Em janeiro de 1950, esta peça foi apresentada (com problemas de censura) no saudoso TBC, aqui em São Paulo, com Sérgio Cardoso (Garcin), Cacilda Becker (Inês) e Nidia Lícia (Estelle) nos três papéis.
NÍDIA LÍCIA, SÉRGIO CARDOSO E CACILDA BECKER |
Que imagem nos oferecem os outros? Uma comédia social: temos necessidade deles, eles nos dão segurança. Essa imagem que criamos, no fundo, é uma mentira, uma impostura. Pedimos que eles confirmem a montagem de nossa personalidade, que respondam positivamente ao nosso logro. Se o outro recusa esse papel, ele se torna o nosso carrasco. É a famosa frase de Sartre: Não é necessário grelha, o inferno são os outros.
Garcin: Estelle é verdade que sou um covarde, um fraco?
Estelle: Nada sei disso, meu amor, não estou na sua pele. Isto cabe a você resolver.
Garcin: Estelle é verdade que sou um covarde, um fraco?
Estelle: Nada sei disso, meu amor, não estou na sua pele. Isto cabe a você resolver.
Textos teatrais como esses de Sartre trouxeram um novo modo de encarar não só a literatura, mas a nossa própria existência. Participação, engajamento, porque, para existir realmente, era preciso que nós nos projetássemos em direção de algo adiante. Do contrário, seria a vida falsa, com a qual se contentam muitas pessoas. Ficamos sabendo que uma personalidade não era algo que se herdava, mas algo a ser construído continuamente. Era preciso abandonar esse fascínio, a opinião dos outros. Abandonar o outro e a sua opinião, a opinião que nos dispensaria de sermos nós mesmos.
O livro O Muro, contos, de Sartre (1939), é constituído por várias histórias sobre esse fascínio pelo qual tentamos escapar do nosso destino ao pedir a opinião alheia. Isto é, eximirmo-nos de criar autenticamente as justificativas interiores de nossas ações, sempre difíceis, para assumir uma imagem que seja agradável aos outros. Em troca, esperamos deles o reconhecimento, que nos levem em alta conta, que sejam bons para nós.
Há muito, os escritores do destino, os chamados existencialistas ou não, já atacavam essa praga dos nossos tempos, a de que o essencial era ser visto, parecer para não ter que ser. Se nos acreditássemos tocados por Deus ou por um figurino político, pelos modelos que os meios de comunicação impunham, se adotássemos a moda em vigor, poderíamos então nos aceitar dessa maneira e não nos interrogaríamos mais. Eliminávamos a nossa interioridade. Estaríamos em todos os lugares, nunca, porém, em nós mesmos. A tecnologia, atualmente, veio resolver esse problema, colocando-nos na web para sermos vistos e consumidos. Os poucos que têm consciência dessa alienação pedem apenas que os que se entregam a esse estilo (tudo é uma questão de styling, afinal!), que não emitam opiniões faladas ou escritas.
Para não nos enfrentarmos como um projeto constantemente renovado, nós, covardemente, nos transformamos na nossa própria estátua. Isto é, conformamo-nos com os papéis que os outros esperam de nós. Representamos quase sempre; socialmente, isso é muito cômodo. As pequenas comédias são úteis, nos dispensam de existir. Quando algumas pessoas lutam para escapar da tentação da Medusa, surgem expressões como: ele não é um médico como os outros, ele é diferente… essas pessoas são novas diante de cada circunstância, não estão apegadas a hábitos, a atavismos, a modelos aceitos. Stendhal, lembro, chamava-as de naturezas generosas.
O que se questiona aqui, quanto ao nosso dia-a-dia é a segurança convencional, os gestos estudados, as atitudes preparadas, automatismos, justificativas de antemão. Uma espécie de pilotagem automática. Álibis, hábitos, conformismos, preguiça. No mais, são as máscaras que a sociedade cria para encobrir manobras ilegais, a falta de ética, a amoralidade, o crime. E, para isso, criamos uma literatura que absolutamente não diverge. Hoje, nem isso. Toda a produção da chamada comunicação de massas (mídia), com as raríssimas exceções de praxe, que já está nesse caminho há muito tempo, vem se encarregando de sacramentar tudo isso. Em termos
literários, a magia do olhar alheio, a perda da fluidez e a entrada no viscoso, como dizia Sartre, foram temas que nos colocaram contra a parede e ainda nos colocam. Um exemplo histórico disso é o teatro de Jean Anouilh (quem sabe dele hoje?). A vida como inautenticidade. Os exemplos, muitos dolorosos, patéticos, estão por aí, mais do que nunca, nos jornais, na TV, na Internet.
A Prostituta Respeitosa, de Sartre, explorou essa questão. A história se passa nos Estados Unidos. Uma mulher, prostituta, sincera, espontânea, foi vítima de agressão por parte de um rapaz de boa família. Socialmente não se podia admitir que um jovem rico, futuro líder e sustentáculo social, pudesse assumir a culpa, que era lançada sobre um jovem negro e inocente. A prostituta, entretanto queria testemunhar corretamente.. As pessoas, advogados, e a própria Justiça tentaram persuadi-la de que a verdade e a justiça estavam sempre ao lado das pessoas respeitáveis e que o filho da boa família devia ser inocentado. O Senador: você crê que uma cidade inteira possa se enganar? Uma cidade inteira, com seus pastores, padres, médicos, advogados, seu prefeito, adjuntos, suas associações de beneficência? O Senador chega a reconhecer os fatos, mas para falseá-los invoca a utilidade social. O negro não é ninguém, não serve para nada (há pouco, tivemos uma professora de Direito da maior universidade do país falando algo semelhante sobre bolivianos). O branco cometeu um crime, agrediu, arrebentou a mulher, é culpado, mas temos necessidade dele. É um americano 100%, descendente de uma de nossas melhores famílias, estudou em Harvard, é um chefe, sua família dá muitos empregos… Podemos achar que Sartre carregou demais a mão nessa peça, mas nunca poderemos acusá-lo de falsear a realidade.
Quando fazemos uma escolha e assumimos a responsabilidade dela decorrente, um mundo novo se ordena à nossa volta, o mundo se torna real. Mas como escolher? Há razões para nossas escolhas, para comprometermos nossa liberdade num projeto? Um ativismo estabanado, inconsequente, como a maioria o faz? Mas a escolha que temos de fazer é algo que se impõe porque há o mundo e as pessoas que nele vivem. Mesmo que tentemos ignorá-los, não conseguiremos. Há uma solidariedade entre nós, as pessoas e o mundo, não podemos nos evadir desse contexto.
Quer abstendo-nos ou não, o fato é que estamos envolvidos de tal modo que não podemos cair fora do jogo. Queiramos ou não, estamos ligados aos acontecimentos de nossa época. Nossos atos e nossas omissões repercutem sobre o todo, tudo é interdependente. Estamos comprometidos, ainda que não o desejemos. O que está aí acontecendo no mundo acaba nos atingindo de uma forma ou de outra. O que temos que fazer é tomar consciência disso e decidir, o que dá muito trabalho, realmente. Muitos desistem, preferindo basear as suas opiniões nos cortes da realidade que lhes são oferecidos pelas grandes redes de TV e pelos grandes jornais. A vida moral aparece exatamente aqui, embora possamos querer virar as costas para tudo o que acontece, a pretexto de que as coisas não são como idealmente queremos. Ou virarmos as costas sob o pretexto de que dá muito trabalho tomar conhecimento do que acontece.
O Bem e o Mal são valores móveis, relacionados com cada situação particular, sendo impossível fixá-los de antemão. Por isso, muitos se espantam com as enormes diferenças que há entre o que chamo de eu teórico e eu prático quando intelectuais ou pessoas letradas conversam ou discutem. O primeiro costuma ser exibido ostensivamente nas cátedras, nas conferências, nos salões e reuniões sociais, é invariavelmente um servidor da personalidade que muitos montam para ser consumida pelos outros. Seu conceito de Bem é, como tal, também teórico. Quando vamos, porém, à vida prática, quanta diferença!, pois o bem prático terá sempre que ser definido em situação segundo as circunstâncias. Sentimo-nos decepcionados, traídos por gente na qual acreditávamos tanto.
O Bem e o Mal não podem ser congelados. Se pensarmos desse modo, nosso Bem será o único e, agindo em nome dele, faremos muito mal. A História está aí para nos demonstrar o quanto se matou e mata em nome de Deus e de belas palavras como Democracia, Liberdade, Fraternidade e Igualdade. É, sem dúvida, muito mais fácil argumentar com o nosso eu teórico do que com o nosso eu prático. Isto nos leva a reconhecer, sem dúvida, que o pensamento mais rico para a vida humana não é certamente o lógico-formal, baseado nos princípios que Aristóteles nos deixou na sua lógica, principalmente no da não-contradição. A multiplicidade da vida, da qual faz parte o infinito jogo das relações humanas, deve se alimentar do princípio dialético, a arte de integrar as contradições.
É na peça As Moscas que Sartre põe essa ideia de Bem petrificado na figura de Júpiter. Essa ideia no teatro, aliás, não era nova, está esplendidamente exposta numa peça de Tirso de Molina, El Condenado por Desconfiado, século XVII. Um eremita e um bandoleiro vivem nas montanhas. O primeiro acredita numa noção fixa de Bem, vive na solidão, em meio a jejuns e mortificações. Mas não o faz por amor a Deus, mas sim por ter medo de ser condenado; ao invés de viver, deixa que essa ideia se interponha entre ele e a vida. Seu vizinho, o bandoleiro, vive de pilhagens. Faz o Mal, mas pensa em Deus. Luta para ter uma fé. O eremita acaba por aprisionar o bandoleiro, pergunta se ele não teme pela sua salvação. Ao final, o eremita acaba por perceber que o bandoleiro era mais autêntico que ele.
O concreto e o abstrato, o vivo e o convencional, a vida como ambiguidade. O ato moral deve ser uma escolha e não obediência. Muita gente usa a Beleza e a Arte como desculpa para não se ligar aos problemas de seu tempo, como o Roquentin, de A Náusea. Obviamente, a estética é importante, mas ela não pode vir antes; se assim for, ficaremos acima dos acontecimentos, voaremos tão alto que perderemos o contato com o nosso chão, desligados do momento em que vivemos.
*Para o meu amigo Oswaldo Mello.