sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

SÈNSO - SEDUÇÃO DA CARNE*

  





LUCHINO   VISCONTI
A produção é italiana, de 1954, em cores, com direção de Luchino Visconti, que teve como assistentes de direção Francesco Rossi e Franco Zefirelli. Assinam o roteiro o próprio Visconti mais  Suso Cecchi d'Amico,  Carlo Alianello, Georgio Bassani e Giorgio Prosperi, com base numa novela homônima de Camilo Boito. Os diálogos em inglês são de Tenessee Williams e Paul Bowles. Jean Renoir supervisionou a versão francesa.  A fotografia é de G.R. Aldo e de Robert Krasker. A montagem é de Mario Serandrei; a cenografia é de Ottavio Scotti e Gino Brosio. Costumes de Marcel Scoffier e Piero Tosi. A música é de Giuseppe Verdi (trechos de Il Trovatatore) e de Anton Bruckner (7ª Sinfonia). Elenco: Alida Valli (condessa Livia Serpieri), Farley Granger (Franz Mahler), Massimo Girotti (marquês Roberto Ussoni), Heinz Moog (conde Serpieri), Rina Morello (Laura), Christian Marquand e mais centenas de cavaleiros e milhares de figurantes. 


SUSO   CECCHI   D'AMICO

Para os principais papéis, a intenção inicial de Visconti era a de poder contar com Maria Callas  e com Marlon Brando. Consta que este último chegou inclusive a fazer alguns testes, desistindo depois. Na impossibilidade de Maria Callas aceitar o papel, a preferida de Visconti seria Ingrid Bergman, mas, por questões pessoais (fim de seu casamento com Roberto Rossellini), tornou-se inviável a sua participação.  

Quem produziu o filme foi Ricardo Gualino que, depois de ter patrocinado a montagem teatral de Les Parents Terribles, de Jean Cocteau, sob a direção de Visconti, desejou fazer com ele um filme espetacular, de grande valor artístico, apesar do risco que isso poderia significar por causa das tendências marxistas de Visconti. Gualino, grande industrial italiano, segundo informações de Suso, era uma espécie de mecenas, apaixonado por manifestações artísticas grandiosas. Ainda segundo Suso, os trabalhos de preparação do filme estenderam-se por cerca de um ano, principalmente por causa da pesquisa histórica, conduzida com muito cuidado.


VENEZA

  
TEATRO  LA   FENICE
A história se passa em 1866, numa Veneza noturna e chuvosa no fim do inverno. A Áustria ocupa o Vêneto, no norte da Itália. No teatro La Fenice, uma representação de Il Trovatore, de Verdi, é perturbada por uma manifestação de patriotas. Entre estes está o marquês Ussoni, que provoca para um duelo o tenente austríaco Franz Mahler. A condessa Serpieri, prima do marquês, interfere com o objetivo de salvar este último, cujas ideias políticas compartilha. Mas seu gesto tem como único efeito torná-la apaixonada pelo belo tenente, por quem se sentiu desde o início da confusão muito atraída. 

A condessa chegará mesmo ao extremo de, por ele, trair a sua causa e a comprar a sua isenção do serviço militar. A violência da guerra aumenta, sendo a resistência italiana esmagada. A condessa deixa suas terras para ir ao encontro de Franz, em Verona. Lá, ela o encontra vivendo num vergonhoso desregramento. Cinicamente, ele confessa que nunca a amou e que só se interessou por ela por causa de seu dinheiro. Enlouquecida de dor, ela o denuncia ao comandante da praça, que o manda fuzilar.

O tema, como se pode constatar, ajusta-se perfeitamente ao gênero melodramático, no sentido que os italianos lhe deram originalmente: drama musical em que se misturam acontecimentos históricos e paixões humanas. Melodrama vem de melo, melodia, em grego, e drama, texto em verso ou prosa para ser encenado. O melodrama, lembremos, apareceu no início do séc. XVII (1607), na Itália. A primeira obra-prima no gênero foi o Orfeu, de Claudio Monteverdi, na qual apareciam os elementos que tornariam o gênero um sucesso: uma grande variedade de formas musicais, coros, danças, árias e passagens recitadas. No decorrer dos anos, o melodrama, nas suas versões mais populares, teve os seus enredos muito complicados, caracterizando-se sobretudo o seu desenvolvimentos pelo exagerado número de situações violentas e patéticas, pelo sentimentalismo apelativo, lacrimoso, de baixo nível.

Sedução da Carne (título em português bem cretino) é um filme concebido por seus autores, acima de tudo por Visconti, muito familiarizado com espetáculos dessa natureza, como a ópera, na qual as desordens das paixões amorosas interferem nas convulsões históricas, constituindo-se tudo numa composição pictórica muito refinada.

Quando realizou Sènso, Luchino Visconti tinha acabado de dirigir La Vestale, de Spontini, no Teatro Scala, de Milão, tendo retirado desse espetáculo muitas sugestões para seu filme. Foi com esta ópera que Visconti, com Maria Callas no papel-título, iniciou a sua carreira como um dos maiores diretores do gênero. 

Com Sènso, Visconti começaria a se afastar do neorrealismo, movimento cinematográfico surgido na Itália, ao fim da segunda guerra mundial, movido por preocupações sociais e pela simpatia pelas classes trabalhadoras, e cuja influência foi marcante inclusive na literatura. Este afastamento nunca significou, porém, o abandono de suas ideias marxistas, presentes, mais ou menos, em toda a sua filmografia. O próprio título do filme joga com uma ambiguidade linguística, pois Sènso tanto pode significar sentimento, sensualidade, os amargos prazeres dos sentidos, como o sentido da História, os caminhos que ela toma. O próprio Visconti declarou a este respeito: Jogo os sentimentos expressos em Il Trovatore (o tema da cigana condenada à morte por bruxaria) por cima da ribalta numa história de guerra e rebelião.


FRANZ  MAHLER   E   CONDESSA   LIVIA   SERPIERI

Os personagens principais, a condessa e o tenente, são figuras de um grande pathos. Franz Mahler, o belo e pervertido jovem tenente, tomado por um sentimento de auto-repulsa, anuncia personagens viscontianos que virão, como o Tancredo (Alain Delon) de O Leopardo (1962), o nazista devasso de Os Deuses Malditos (1969) e Ludwig, de Ludwig, a Paixão de Um Rei (1972), outros personagens da galeria iniciada com o tenente. Com estes

heróis nos distanciamos bastante do ingênuo e infeliz Mario (Marcello Mastroianni), do belo
Noites Brancas (1957) e do trágico Rocco (Alain Delon) de Rocco e seus Irmãos.  Bem mais distante, quase encoberto inteiramente, ficava o vagabundo Gino (Massimo Girotti), de Obsessão, filme que dividiu com os de Rosselini a paternidade do movimento neorrealista do cinema italiano.

Paixão e loucura são os polos entre os quais oscila a condessa. Alida Valli (1921-2006) foi uma das grandes divas do cinema e do teatro italianos, tendo trabalhado inclusive na TV. Seu mundo familiar era formado por nobres e políticos. Recebeu títulos universitários importantes em arte, tendo iniciado sua carreira no cinema em 1934. David Selznick, em 1947, a atraiu para o cinema americano com a pretensão de fazer dela uma segunda Ingrid Bergman. Em 1950, por não ter se encaixado no american way, voltou à Itália. Dentre seus melhores filmes, além de Sènso, destacamos: O Amor mais Belo, A Primeira Noite de Tranquilidade, Novecentos, O Grito, O Diálogo das Carmelitas. Deixou o cinema em 1995. 

Alida Valli, lindíssima, culta, refinada, fazia parte da alta sociedade romana. Seu nome foi citado com o de outras figuras importantes desse mundo num escândalo que chegou a abalar politicamente o

governo italiano: a morte de Wilma Montesi, famosa modelo, cujo corpo foi encontrado na praia de Ostia, local de orgias, droga e sexo desse mundo. Entre os acusados (todos liberados depois) estava seu amante, Piero Piccioni, músico de jazz, filho de um ministro. Alida Valli morreu em 2006. Seu falecimento foi anunciado, com grande pesar, tanto pelo prefeito de Roma como pelo próprio presidente da república. Alida foi casada (de 1944 a 1952) com Oscar de Mejo, artista plástico,  com quem teve dois filhos.


A equipe técnica com a qual Visconti contou para filmar Sènso, – Piero Tosi, Marcel Scoffier e Mario Sarandei, dentre outros, já o acompanhava desde Ossessione. O único problema, superado como se constatou, foi que Visconti queria inicialmente para os principais papéis Ingrid Bergman e Marlon Brando. Quanto a Suso, nome maior na elaboração de roteiros na Itália, sabe-se que a sugestão para filmar Sènso, com base na obra de Camillo Boito, partiu dela. 

Sènso, o filme mais amado e odiado de Visconti por razões políticas, é considerado um marco divisor na sua obra, pois, ao realizá-lo, ele passará a se concentrar, em boa parte de sua obra, no desmoronamento da aristocracia de sangue do país, ainda sobrevivente, através de muitos valores da cultura italiana, ao seu tempo. Sènso é um filme que historicamente trata do período denominado Risorgimento (unificação da península italiana).

Os trabalhos de filmagem de Sènso se prolongaram por nove meses. Inicialmente, o filme foi apoiado pelo exército italiano (cenas de batalha). Logo, porém, a censura interferiu e muitas cenas se perderam, por isso, para sempre, tendo sido destruídas. A censura italiana, além do mais, forçou Visconti a filmar novamente o final do filme sob a alegação que, se apresentado daquela forma (a heroína maltratada pelos soldados), aquela sequência seria um grande insulto ao exército italiano. Por razões de mercado, o filme, fora da Itália (Inglaterra e USA), foi exibido em versões reduzidas. Grande defensor do bom cinema italiano, Martin Scorsese, através da sua Fundação, encantando pelo belíssimo technicolor de Sènso, pagou a restauração do filme, lançada em fevereiro de 2011, pela Criterion Collection, em primorosa edição, como sempre.


Sabe-se (Cahiers du Cinéma) que Visconti pretendeu dar o nome de Custoza ao filme, por causa da derrota italiana, uma guerra fracassada. A censura não permitiu. Visconti optou pela saída operística: o cenário histórico e o drama pessoal da condessa Livia Serpieri. Ela e o tenente acabam se transformando em símbolos da decadência e da decomposição de duas classes sociais, a aristocracia vêneta e a casta guerreira austríaca. 

CAMILO    BOITO


A história que deu origem ao filme é de Camilo Boito (1836-1914), arquiteto, desenhista, restaurador e escritor de histórias curtas. Sènso apareceu em 1914, como uma história de decadência sexual. 



ARRIGO   BOITO
Registre-se que o irmão mais novo de Camilo é Arrigo Boito, notável poeta, compositor e libretista de Giuseppe Verdi em duas grandes óperas, Otello e Falstaff. Quem transformou a história de Boito em roteiro foi a excepcional Suso Cecchi d`Amico (1914-2010), que trabalhou sempre com grandes diretores, Fellini, Flaiano, Zavattini, Monicelli, Visconti, Michelangelo Antonioni, Francesco Rosi e outros. 

Sènso é um filme que apresenta muitos pontos de contacto com Il Gattopardo (1963), já que ambos se situam cronologicamente nos anos 1860 e têm relação com a decadência do mundo aristocrático. A única figura positiva do filme é a de Roberto Ussoni, que luta com o exército de Garibaldi pela unificação da Itália e por reformas agrárias. Esse personagem não aparece na novela original de Boito, tendo sido inventado por Visconti e desenvolvido por Suso para permitir que a aristocracia fosse mostrada no filme com traidora da revolução garibaldina.


GIUSEPPE    VERDI






Visconti, sempre de apuradíssimo gosto musical, escolheu, para enfatizar o estilo operístico do filme, Il Trovatore, de Verdi, e a Sinfonia, de Anton Bruckner (1824-1896), uma personalidade complicada, cuja vida é cheia de lances obsessivos e de colapsos nervosos. Visconti, longe do convencionalismo costumeiro quando pensamos em trilhas sonoras para filmes, usa a música de Bruckner para amplificar magistralmente as emoções postas em circulação pelos personagens. 


ALIDA    VALLI

As cores e as tonalidades do filme (fotografia de R. R. Aldo e de Robert Krasker), no plano plástico, permitem-nos encontrar nele reminiscências da pintura do Quatrocènto, de mestres venezianos (Ticiano, Tintoretto e Francesco Guardi), nos cinzas e dourados de Delacroix e Manet, tudo projetado, por exemplo, nas roupas que a condessa (Alida Valli) usa, desenhadas pelo grande Piero Tosi, companheiro de Visconti em outras soberbas aventuras (O Leopardo e Morte em Veneza). Não é por acaso, aliás, que as artes plásticas estão presentes de modo tão acentuado na obra de Visconti. Boa parte de sua formação cinematográfica, não esqueçamos, foi produto, em grande parte, de sua convivência, nos anos 30, com Jean Renoir.

No papel do tenente Mahler, temos Farley Granger (1925-2011), que já era um ator requisitado em Hollywood, de vida pessoal bastante complicada. Passou nove meses na Itália, filmando com Visconti. Conforme nos deixou em seu livro de memórias (Include Me Out), era bissexual e amou durante toda a sua vida indistintamente homens e mulheres. Começou no cinema em 1943, destacando-se na sua filmografia: A História de Três Amores, Pacto Sinistro, Festim Diabólico, Amarga Esperança. Dentre as mulheres que amou, duas se destacam em especial, Shelley Winters e Ava Gardner. 




Ciclo de Cinema – MUBE – 2011-2013 – Lita Projetos Culturais