domingo, 24 de maio de 2015

DALVA, ESSE É O NOME (CONTO)



ILUSTRAÇÃO   DE   LÚCIO   MENEZES

Tudo ficou mais claro quando começamos a falar do bairro: já não importa o tempo. Resumo de tempo. Primeiro, vieram perfumes e sons, quintais com cajás-mangas e carambolas, coisas que a gente via, vagas lembranças noturnas, indecifráveis então. Depois, só depois, você. Dalva é o nome. Dalva e não esse, de puta, que te deram aqui no cabaré, que a vida te deu. Dalva como antigamente, na incompreensão, nos gritos, nos olhos assustados, na rua onde juntos moramos um dia. 

— Dalva, já pra dentro! Menina não brinca com moleque.

A casa, pinturas e jardim de cimento não conseguiram mudá-la. Está como você a viu. O sol ainda lambuza de mel os telhados (os telhados que você queria derreter para fazer uma grande bala de mel). E o mesmo luar encharca as noites: e encostando o ouvido nas velhas paredes, nos muros, nos portões, isso bem tarde, quando o bairro está imóvel e em silêncio, a gente pode ouvir lá dentro as nossas vozes de um dia, rumor de passos, risos, barulhos de guindaste, corridas, apitos, segredo meu, Dalva, nosso.

— Assim não vale, assim não vale, o pegador é o Lelé.

— Não grita, que o seu Juca fez noitada, deixa ele dormir. 

Agora à minha frente. Não sei quanto você ganha por cada copo meu. Sou um freguês, desses que aos sábados anda pelos cabarés. O que fazer numa noite de sábado? A gente trabalha a semana inteira e no sábado vem aqui conversar, conversas casuais, mãos descansando sobre as mesas, a toalha encardida apesar de limpa, as mulheres passando. Não adianta, acabamos sempre por aqui. Só quando o corpo está bem cansado, voltamos, mania de andar, esticando os caminhos, chutando latas, falando alto, parando no bar do Alfredo pra tomar a última cerveja, com aquela sensação de alguém que perdeu o bonde e que todos ficam olhando, eu, o Sílvio, o Armando, o pessoal lá do bairro que vem pra cá. 

Que vida, desde que um dia. Quem foi, Dalva? Gente do bairro? O pai e o irmão mandaram você embora, esses eu sei. Geraldo, principalmente, quando se fez homem em cima de um caminhão de café. Precisava do respeito dos companheiros de peitos largos e braços grossos, me contaram. A mãe, coitada, é bom você saber hoje, nunca poderia ter sido. Chorava e esperou por você até não aguentar mais. 

— A minha, dona Maria, anda por aí, e era tão bonita. Acaba voltando, acaba. Casa é sempre casa, dona Maria. 

Criança, você não se lembra quantas noites não a vi, tarde da noite, correndo ruas, o chale preto na cabeça. Seu Júlio, aposentado depois que o gelo e os peixes lhe estropiaram o corpo. Seu Júlio, de cara balofa, aquilo era a bebida, de cara balofa picada de bexigas. E o Luizinho, vocês não viram o Luizinho? Se ele aparecer mando avisar, dona Justina, ele anda numas companhias, obrigado.

Ela está cumprindo ordens, Dalva. Pra que brigar com ela? Quem manda, você sabe, é a gorda, lá da caixa. Sim, já reparei. Nunca vi dona de cabaré que fosse bonita, uns bofes. Ela acha que você está me incomodando. O que me incomoda é aquela cara, redonda, enorme. Um sapo fumando, você acertou. Pode deixar, Dalva, falo com ela. Arranjo uma desculpa, de que você me agrada mesmo assim, por exemplo. Você que falava tanto, tagarelava, a Dalva fala um bocado, cabelos loiros e olhos azuis, ainda me lembro. 

No quarto ao lado, fingindo dormir, as brigas que escutávamos. A rua ainda girando na cabeça, Senhora dona Sancha coberta de ouro e prata, disso não, de pegador ou de  mana mula é que eu quero brincar, as brigas que escutávamos com o coração pulando dentro do peito. Pias fedorentas gorgolejando, a mãe lavando os pratos no tanque, choros, torneiras abertas, rádios fanhosos, a voz do Brasil, aí então a gente dormia, lavando antes os pés. E seu Júlio sempre bêbado, o que não vai dizer a vizinhança. A vida naqueles porões, faces cavadas, cores terrosas. O cheiro dos porões, Dalva, ficou para sempre na pele. Como aqueles caiçaras lá na rampa, trazendo a marca e o cheiro de marés podres, óleo e maresia.

Cabelos loiros e olhos mais cinzentos que azuis, diferente dessa pasta que hoje cobre o seu rosto. Cinco anos aqui estragam bastante. Igual à vida nos porões. Seu corpo deve estar todo manchado, essa mancha no seu braço. Se você não se largasse tanto... Enquanto falamos, o pior são essas meninas. A noite toda servindo, beliscadas por tudo que é marinheiro e gringo. E elas dão risada, pensam no soldo deles. É, você ganha mais. Mas o que é que você ganha, Dalva? Se não é o amigo ou a polícia, a vida se encarrega de tirar, de você, da gente dos porões.

Você com certeza não se lembra de mais ninguém. Eu podia dizer que o Armando e o Sílvio vieram comigo. Aquele que está dançando com a mulata é o Armando, o Charuto, como a gente chamava. Morava perto de você. Sim, estou escutando. Você brincou muito com ele, ajudou até, de catimbau e vassoura na porta dos armazéns de café. Lá naquela mesa está o Sílvio, meio alto já. Se não me engano, foi o seu primeiro namorado nas matinês de domingo, quando você vinha de vestido branco e ele não passava o braço pelas suas costas porque a gente estava na fileira de trás.

—O Sílvio é bobo, se fosse eu, a Dalva aí do lado e ele não faz nada.

Não, não quero dançar. Agora vem o show. O magriça do pistão está tirando uns agudos. Olha, Dalva, é o momento de glória do homem. Jogaram o foco de luz em cima dele, lá no canto. E ele parece outro dentro daquela fantasia desengonçada. De mexicano, cubano, não sei bem, mas o que ele é, isso sim, é barbeiro durante o dia, trabalha à tarde no salão do seu Nicola. Mora lá no bairro e de vez em quando apanha da mulher, uma bonitona que sai muito. São duas horas, Dalva. Hora de você parar um pouco. Duas horas falando, falando. Não digo, mas gostaria que você calasse a boca. CALA A BOCA, DALVA! Desculpe, Dalva, quero ver a rumbeira. Não, não é o meu tipo, muita carne. 

Não precisava também ficar assim, que nem estátua, de boca aberta, com esses olhos parados. Aliás, os seus olhos agora, o mesmo brilho que você tinha em frente das vitrines da infância. Sempre vidros entre você e a vida, essas lantejoulas de rumbeira, vidros, Dalva... 

— Também essa menina só vive querendo as coisas.

Mas você era tão pequena, não sentia ou não sabia. Ou sentíamos todos à nossa maneira. Só os olhos vivendo em nós. Olhar deslumbrado, pregado nas vitrines dos bares e das lojinhas do bairro. O mesmo olhar quando íamos de bonde à cidade, uma festa. Havia cores, Dalva, mas logo continuávamos a correr. E esquecíamos. Mais quando as janelas punham o frio e a umidade dentro dos porões.

— Onde já se viu! Isso é pra criança rica, menina. 

Ou no filho. É nele que você está pensando? Que ele fica em casa dormindo. A vizinha do quarto do lado, você não gosta muito dela, dá uma espiada de vez em quando porque você paga. Mas no fundo ela não vai. Quantas vezes você aqui chorou sorrindo e ele chorou, Dalva? O pai, se aparece, vem pra fazer barulho, sei. Na semana passada, isso depois de quase dois meses, deu uma surra em você e levou o dinheiro. Não precisava levantar a saia pra eu ver essas marcas na sua coxa. Acredito, foi na quina da mesa. Um escândalo, quase veio a polícia. 

Escândalo fazia seu Júlio quando bebia. Era só a mãe falar, ele começava a quebrar tudo e a xingar. Então a mãe chorava, você também, embora não entendesse, e a vizinhança, gente de muro baixo, vinha olhar, porque o pobre, dona Justina, esta vida não presta mesmo, tem de mostrar tudo. O meu Júlio até que não é mau, dona Maria, são aqueles botequins lá do mercado, seu guarda, só por esta vez. E, na porta, o carro de presos encostado, havia uns que riam, outros que diziam pra largar seu Júlio, que polícia devia andar atrás de ladrão e não de um velho que de vez em quando ficava bêbado. Mas sempre levavam seu Júlio, é melhor para a senhora, dona Justina, uns dois dias e ele volta mansinho. Nessa hora, quedê Geraldo? Ninguém sabia do Geraldo nessa noite e no outro dia, que ele não se importava, e a mãe dizia então para você vir dormir com ela e até bem tarde, olhos com poeira de sono, João Pestana está chegando, chegando, chegando, você ouvia ela chorar.

— A minha acaba voltando, acaba, dona Maria. Casa é sempre casa. 

E ninguém voltou pra dona Justina, você, seu Júlio, Luizinho, Geraldo, e muitos anos se passaram. O velho morreu numa noite de bebedeira, afogado lá na rampa, entre restos de peixes e cascas de banana, e o Luizinho, dizem até que está preso, desapareceu do bairro. Geraldo não. Geraldo mudou, casado com uma italiana barulhenta. Macho respeitado pelo braço, abriu caminho na vida, fazendo muitos filhos, mas parece que deu hoje pra beber, ainda acaba como o pai. 

A velha então ficou sozinha e se desesperou, vivendo do que os outros davam, os vizinhos mais antigos. Às vezes fala em você andando de noite pelas ruas, umas palavras sem sentido, e a molecada nova do bairro, eles não sabem brincar como nós, Dalva, chama dona Justina de doida, lá vem a doida, olha a doida. Ela não liga, ri, fala alto, chamando todos de meu filho, mas quando está com raiva, xinga e levanta a saia, ela que era tão quieta, fechada em casa, vivendo só pra vocês.   
                                   
Agora, Dalva, estamos aqui, um em frente ao outro, mais calados do que nunca, esperando que a noite acabe. Eu com uma vontade danada de ir embora, querendo, não sei por que, que você não existisse, que você sumisse da minha frente, melhor até nunca a gente tivesse se encontrado. O máximo que eu posso fazer, Dalva, é dizer que levo você pra casa, de carro, num táxi, se eu conseguir um. São três e meia. A esta hora você não arranja mesmo mais ninguém, tanto tempo perdido aqui comigo, lembrando coisas. Os dois perdemos tempo, e de tudo o que falamos não sobra agora mais pra mim que um gosto de fumo e bebida na boca, gosto amargo neste fim de noite, eu meio bêbado, madrugada lá fora, nas ruas, no bairro onde juntos moramos um dia, manhãs com cheiro forte de café e gritos que punham a gente fora da cama. Boa noite, Dalva! Vamos?