segunda-feira, 1 de junho de 2015

A SÍNDROME DE STENDHAL



STENDHAL   ( OLOF   JOHAN   SODERMARCK )

Síndrome ou síndroma, etimologicamente reunião tumultuosa (,corrida, afluência de manifestações), é um conjunto de vários sintomas ou sinais que aparecem em relação a determinado estado (patológico) e que, no seu todo, permite orientar um diagnóstico. Já sintoma é indício, sinal (syn, junto + ptosis, queda; sinais reunidos, algo que cai num determinado lugar ao mesmo tempo). A medicina e a psicologia caracterizam uma síndrome como um conjunto de sinais e sintomas observáveis em vários processos patológicos físicos ou psíquicos diferentes e sem causa específica. Como acontece com os complexos, muitas síndromes são designadas a partir de personagens da mitologia, de histórias e de lendas.

A palavra síndrome também é usada para definir certas manifestações clínicas de uma ou várias doenças independente da etiologia que as diferencia. Várias patologias ou idiopatias podem se esconder numa mesma síndrome. As síndromes, na área médica, geralmente são designadas pelo nome do médico ou cientista que primeiro as descreveu (síndrome de Down, por exemplo). 


IGREJA  DE   SANTA   CROCE

A Síndrome de Stendhal nos fala de viagens, choques culturais, prazer estético, noções de beleza e das bases biológicas e neuronais da sua percepção. De modo mais direto nos coloca diante da seguinte questão: como somos afetados quando visitamos cidades-museus e entramos em contacto com os seus tesouros arquitetônicos e artísticos? Situada, a síndrome de que tratamos pode ser assim descrita: Stendhal, em 1817, em Florença, na Itália, ao visitar a Igreja de Santa Croce, diante das belezas artísticas que detidamente apreciava, se sentiu mal (taquicardia, vertigens, ansiedade). A muito custo, retirou-se do local, só conseguindo se recompor algum tempo depois e de ter recebido cuidados médicos.



INTERIOR  DA  IGREJA   DE   SANTA   CROCE

A Síndrome de Stendhal e o Renascimento italiano são inseparáveis. Importante, para melhor compreensão de tal síndrome, uma referência, ainda que breve, a esse movimento artístico que nasceu na Itália, em Florença, nas primeiras décadas do século XV. No seu todo, o Renascimento foi um movimento político, social, econômico e artístico que mudou o mundo. Visualmente, retomou a tradição clássica greco-romana e a difundiu por toda a Europa. Os seus limites cronológicos variam em cada país. Na Itália, o movimento despiu a arte de preocupações moralizantes e de postulados teológicos, colocando, desde então, o homem como o principal agente da História. Na Itália, artisticamente, o Renascimento vai de 1400 (fim da arte gótica) até, mais ou menos, 1550, data que usamos para fixar o início da arte barroca e de um posterior desdobramento seu, o Rococó (rocaille, concha, motivo predileto da ornamentação artística do séc. XVIII).  

Tal movimento, embora bastante complexo e variado internamente, estabeleceu princípios, métodos e formas que integraram, em termos artísticos, o antigo e o novo. Com base na arte clássica greco-romana, os artistas do Renascimento começaram a aplicar uma técnica revolucionária, a perspectiva. Ou seja, um conjunto de regras de desenho e de matemática que lhes possibilitou reproduzir sobre uma superfície lisa (uma folha de papel, por exemplo), com exatidão, o aspecto real dos objetos.

O segundo elemento posto em circulação, revolucionário também, teve relação com técnicas de execução: pintura a óleo, preparação de afrescos, redescoberta das estátuas equestres, achatamento dos baixos-relevos etc. Nasceu então a ideia de projeto, algo desconhecido, que passou a ser considerado tão importante quanto a execução. Com esta novidade, foi aberto um caminho que permitiu transformar muitos artesãos em artistas. 

Foi no Renascimento que as artes começaram a ser divididas em maiores (arquitetura, escultura e pintura), menores e aplicadas. Foi também no Renascimento que duas figuras bem distintas também surgiram: o arquiteto e o engenheiro. O primeiro como responsável pela forma de um edifício; o segundo como responsável pelas técnicas construtivas e pela manutenção de grandes estruturas. 




Henri Beyle, que assinou os seus textos mais importantes com o nome de Stendhal, o mais conhecido dentre dezenas de pseudônimos que usou, viveu entre 1783 e 1842. Depois de uma adolescência revoltada contra a família, se apaixonou pelo desenho, pelas matemáticas e pelo teatro, entregando-se também à filosofia e à leitura dos grandes romancistas sentimentais do séc. XVIII. Engajando-se no exército, descobriu a Itália, maravilhando-se, ao mesmo tempo em que começou a redigir o seu Journal (Diário). Fixou-se em Milão de 1814 a 1821, período em que escreve um ensaio com o título Rome, Nápoles e Florence.

Aos poucos, retornando à França, foi publicando a sua obra (muita coisa sobre a Itália), que não alcançou sucesso de público. Voltou à Itália como cônsul, em Trieste e Civitavecchia. Só obteve real consagração postumamente, tornando-se um dos mais importantes escritores da literatura francesa. Seu estilo nervoso, animado por uma rápida ação romanesca, com seus heróis líricos, dissimula sempre uma grande sensibilidade sob um aparente cinismo.

As especulações sobre a Síndrome de Stendhal começaram a aparecer entre os anos 1970 e 1980, na Itália, quando cidades como Florença, Roma, Siena, Milão, Gênova, Veneza e outras, nas quais o Renascimento deixou marcas profundas, transformando-as em verdadeiros museus a céu aberto, começaram a receber um número crescente de turistas. No período apontado, o mundo todo foi atingido por um grande boom turístico. A Itália, a cada ano, recebia grupos cada vez mais numerosos. 




Uma das regiões mais visadas pelos turistas foi a Toscana, principalmente Florença, sua principal cidade. Aos poucos, foram notando os poderes públicos dessa cidade e de outras da região que seus hospitais e centros médicos estavam recebendo um número razoável de visitantes que buscavam socorro, apresentando um distúrbio psiquiátrico de caráter repentino, cujos traços principais eram confusão mental, ansiedade, angústia, vertigens e mesmo desagregação da personalidade. Sem ser alarmantes, os casos, em sua maioria, davam notícias que algumas pessoas, ao visitar tais cidades, Florença, em especial, sentiam uma perda de seus limites, dificuldade para harmonizar as suas funções psíquicas, intelectuais e conativas numa síntese aceitável, só voltando à normalidade depois de dias às vezes. Verificou-se que a maioria dessas pessoas era saudável aparentemente, tinha um bom nível cultural, educação de fundo humanístico, mas livresca, gostava de arte, com um senso estético até bastante refinado quando verbalizava suas preferências artísticas e no geral viajava só. Só que quando tomava um contacto físico com o mundo da Renascença, o trauma se manifestava.

Foi uma psiquiatra e psicanalista italiana (florentina), Graziella Magherini quem, estudando mais a fundo o que acontecia, levantou uma hipótese interessante. Graziella era, entre os anos de 1980-1990, responsável pelo departamento de psiquiatria (saúde mental) do Hospital de Santa Maria Nuova, de Florença. Ela e sua equipe, estudando os casos e ampliando a área do estudo (Roma, Nápoles) chegaram à conclusão que, no geral, os casos que atendiam eram muito semelhantes ao descrito por Stendhal, quando de sua permanência na Itália, na referida visita que fizera à igreja de Santa Croce, em Florença.


ASSUNÇÃO - GIOTTO -  CAPELA   PERUZZI ,  IGREJA  DE  SANTA  CROCE

Santa Croce, lembre-se, é uma das principais basílicas italianas, perto de outra, também muito importante, a de Santa Maria del Fiore. A lenda diz que a igreja foi fundada por São Francisco, datando de 1224 o início de sua construção. É a maior igreja franciscana do mundo e, ao longo dos anos, na sua construção esteve envolvido Filippo Bruneleschi, o maior arquiteto do Renascimento. Tem 16 capelas, muitas delas decoradas com afrescos de Giotto. Seu museu está situado no refeitório, fora do claustro. Na Basílica, dentre outras, destacam-se obras de Canova, Cimabue, Andrea della Robbia, Donatello, Gaddi, Vasari. Nela estão os túmulos de Michelangelo, Galileu Galilei, Machiavelli, Ugo Foscolo, Lanzi, Rossini, Gentili e outros. Sempre considerada como o panteão dos homens ilustres italianos, registre-se que, além dos túmulos das personalidades citadas, encontramos nela também o cenotáfio de Dante. 





Apesar de todas as contribuições da arte do Renascimento para tornar Florença um dos grandes centros culturais da Itália, não podemos esquecer (como Stendhal também não esqueceu) que ela sempre foi, desde o século XIII, um lugar de encontro de grandes artistas, teólogos, escritores, humanistas e políticos. A identidade florentina vinha sendo construída desde o começo da Baixa-Idade Média. Os conventos da cidade eram famosos por sua hospitalidade e nomes importantes do cristianismo aparecem a eles ligados: São Francisco, São Boaventura, Santo Antônio de Pádua, São Bernardino de Siena e outros. Lugar de repouso de muitos papas, Florença, com a sua arte gótica, seus maravilhosos afrescos, preciosos vitrais, esculturas e, sobretudo, com a soberba arquitetura de Santa Croce, constitui-se sempre como um dos mais importantes centros da arte italiana. A tudo isso Stendhal certamente não pode resistir: absorvido na contemplação da beleza sublime, eu a via de perto, eu a tocava, por assim dizer, foram as suas palavras.



GRAZIELLA   MAGHERINI

Afirmam alguns estudiosos da síndrome que Stendhal, diante do que sentia, também proferiu estas palavras: será que podemos morrer de arte? Segundo Graziella Magherini, as causas do trauma são uma personalidade impressionável, o stress da viagem e o encontro com Florença, uma cidade possuída por “gigantes”. A psicanalista italiana parece estar convencida de que qualquer pessoa pode se tornar vítima do trauma que estudou quando diz que todos temos a síndrome potencialmente em nós e que o fenômeno permanece para a maior parte das pessoas difuso. Em certas condições de intimidade, conclui, uma obra de arte pode deflagrar o trauma quando a olhamos como símbolo de um drama interior. 



DAVID , DE  MICHELANGELO
As conclusões do estudo de Graziella Margherini e de sua equipe estão reunidas num livro, A Síndrome de Stendhal, e nele se descrevem vários casos. Um, clássico, não ocorrido na Itália, mas como o de Stendhal, é o de Dostoievski, depois de ter visto O Cristo Morto, de Hans Holbein, na Basileia. Dentre os artistas que estão por trás de casos também notáveis dessa síndrome, além dos já citados, temos os “ingênuos” Giotto e Fra Angelico, embora outros, mais “agressivos”, digamos, como Caravaggio, também engrossem bastante as estatísticas. Um caso especial é o de uma escultura, o David, de Michelangelo, considerada há muito como um símbolo máximo da harmonia e da beleza masculinas. David é uma obra de arte das mais perturbadoras, tendo atraído sempre, além de candidatos à síndrome, muitos vândalos que pretenderam destruí-la. Diante de David, muitos experimentam, conforme depoimentos obtidos, desejos inconscientes de identificação erótica, o que costuma trazer à tona da vida consciente uma problemática sexual nem sempre agradável.


RONDA   DA   NOITE  ( REMBRANDT )

Por isso, faz parte também dos estudos ligados à Síndrome de Stendhal a questão da destruição de obras de arte. A mais atacada, por motivos ainda não satisfatoriamente explicados até hoje, é a Ronda Noturna, de Rembrandt, exposta num museu da Holanda (se não der para V. ir a Amsterdam ver esta obra-prima, veja o excepcional filme Night Watching que sobre ela fez Peter
FILME DE GREENAWAY
Greenaway, de 2007). As obras do Renascimento, como é fácil perceber, têm uma grande carga de sensualidade, tornando-se muito perturbadoras para certas pessoas. As vítimas que se enquadram neste caso vêm de culturas bem diferentes das mediterrâneas (greco-romana), como a nórdica e a germânica, ou de tradições religiosas mais fechadas, muito conservadoras, como a judaica, a islâmica, a luterana, a protestante, a anglicana, a ortodoxa grega, a evangélica etc. Mesmo de razoável cultura e informadas, mas, no geral, educadas segundo uma moral rígida, muitas pessoas, oriundas dessas tradições, não estão preparadas para choques como os provocados pela arte renascentista italiana.

O fascínio que Stendhal sentiu pela Itália era tanto motivado pela sua exuberante arte como pela paisagem das suas cidades e pelos tipos humanos que encontrou nas suas viagens. Ele descobriu a Itália muito jovem. No ano de 1800, com 17 anos, atravessou os
TÚMULO   STENDHAL
Alpes e, em junho, chegou a Milão, uma cidade que, para ele, além de radicalmente diferente de Paris, lhe oferecia a possibilidade da concretização de seus sonhos: um lugar para viver devido à beleza de sua paisagem urbana, as suas lindíssimas mulheres e, naturalmente, as esplêndidas música e pintura que nela encontrou. Essa fidelidade à Itália e a Milão, especialmente, lembre-se, Stendhal a manteve até o fim de sua vida. Seu túmulo, no cemitério de Montmartre, em Paris, tem, em italiano, como epitáfio os seguintes dizeres: Arrigo Beyle Milanese Scrisse Amo Visse (Henri Beyle Milanês escreveu amou viveu).



LA   SCALA

Stendhal considerava o Scala de Milão como o primeiro teatro do mundo. Falando com fluência o dialeto milanês, Stendhal, como os da elite milanesa, gostava, antes dos espetáculos, de parader, isto é, de desfilar, a pé ou a cavalo, pelas ruas e praças vizinhas ao teatro, onde encontrava os comerciantes de arte e, naturalmente, as belas mulheres.  




Foi por essa e por outras razões que a ópera ocupou um lugar de grande destaque na sua vida. Na sua obra Souvenirs d´Egotisme ele nos deixou este registro: Os mais doces momentos de minha vida foram passados em salas de espetáculos. A força de ter sido feliz no Scala, tornei-me uma espécie de connoisseur. Com efeito, a ópera abriu para Stendhal um mundo de encantos do qual faziam parte disparatadas figuras que iam do sublime ao ridículo, mas sempre movidas, segundo ele, por um fogo que as habitava.

A reação de Stendhal diante do que viu em Santa Maria, em Florença, pode ser melhor entendida quando tomamos conhecimento de suas digressões sobre a arte. Já se disse que um dos encantos dos escritos de Stendhal sobre a arte se deve à sua prosa livre, nada universitária, sempre cheia de derivações e espontaneidade (detestava, por isso, as naturezas mortas). Para Stendhal, uma tela, uma escultura ou um romance só se “realizavam” pela sua capacidade de agir poderosamente sobre a alma do espectador ou do leitor.

A ideia de atravessar a Toscana, com as suas colinas e jardins cultivados, para chegar a Florença, punha Stendhal em êxtase. Ele considerava o povo florentino como o mais educado e civilizado da Itália. Em termos de prazer estético, nada se comparava para ele como, depois de percorrer as belas igrejas da cidade, a visita que fazia à sua mais bela praça para ver o Palazzo Vecchio e ouvir alguns contadores de histórias que às noites lá se reuniam. 



PALAZZO  VECCHIO ,  PIAZZA  DELLA  SIGNORIA

Stendhal, sem assumir a condições de um crítico de arte, sentia-se habilitado a discorrer sobre o que via na Itália. Não era um simples comentarista, mas, sim, um autor que criava. Baseava-se nisto para afirmar a autoridade de sua opinião. Sabia, bem mais do que qualquer crítico, o que era a dificuldade real para se abordar este ou aquele tema pictórico ou romanesco e de se juntar os recursos técnicos para esse fim. 

Para uma melhor ilustração do que vimos falando sobre a Síndrome de Stendhal, não há como deixar de fazer referência a importantes figuras da cultura ocidental que foram também “vitimados” pela Itália e/ou por sua arte. Um dos casos mais notáveis foi, sem dúvida, o de Nietzsche (1844-1900), ainda que ele não se enquadre exatamente nos pressupostos da referida síndrome, ou sejam, viagem, Itália e arte renascentista. Explicando: depois de uma educação luterana, num meio exclusivamente feminino, e de ter estudado filologia, filosofia e a cultura grega, Nietzsche se tornou professor universitário. Influenciado por Schopenhauer, ligado por amizade a Richard Wagner e a sua mulher, Cosima, a quem admirava, escreveu teses filosóficas que questionavam a cultura alemã, que desejava reformar, e o sistema científico vigente. Em 1878, doente, abandonou o ensino universitário e em companhia de amigos foi para o exterior, passando a viver entre a Suíça, a Itália e o Midi da França. 

De capital importância foi a sua viagem à Itália. Embora não tivesse mantido contacto direto com a arte renascentista, bastaram-lhe, para que sua vida se transformasse bastante, os contatos que manteve com a paisagem e com as pessoas com quem conviveu, principalmente em Gênova, Nápoles e Sorrento. O choque cultural, melhor diríamos o choque de vida que o atingiu, causador de muita ansiedade, a princípio, foi tal que, depois dele, já ajustado à paisagem, à luz e à sociabilidade alegre dos italianos, sua visão de mundo mudou completamente. 



Foi depois desse choque que Nietzsche que escreveu Humano, demasiado Humano, rompeu com Wagner e adotou o aforismo como forma para exposição de suas ideias (para aqueles que desejarem mais, recomendo o interessante livro Nietzsche na Itália, de Paolo D´Iorio). 



Um dos casos mais bem definidos de alguém tomado pela Síndrome de Stendhal nós encontramos na biografia de Freud. Sabe-se que ele, entre 1876 e 1923, visitou a Itália cerca de vinte vezes. Roma, Florença, Orvietto e Pompeia parecem ter sido as cidades mais visitadas. Interessavam-lhe não só a antiguidade romana como, sobretudo, a arte do Renascimento.


Conforme se pode ler em Moisés e o Monoteísmo , obra-prima da literatura psicanalítica, Freud sempre se impressionara muito a com figura do profeta, que arrancara seu povo da apatia. Em 1909, visitou a Igreja de S. Pietro in Vincoli, em Roma, onde se encontra a estátua do profeta esculpida por Michelangelo, para o túmulo do papa Júlio II. Escreveu depois da visita: nenhuma obra produziu em mim um efeito tão intenso. O que depreendemos dessa visita é que ela mudou para sempre a psicologia e, de certo modo, a cultura ocidental. Freud, em 1913, não só rompeu com Jung como passou a escrever textos que os separaram cada vez mais. Jung, por seu lado, também fazia o mesmo. Freud viu na estátua de Moisés uma descrição da sua própria situação. Ele, como Moisés, salvaria o povo judeu (humanidade), tirando-o da ignorância (vida inconsciente, apatia), conduzindo-o pelo deserto e levando-o à Terra Prometida (vida consciente).

Assim, parece claro, passamos da Síndrome de Stendhal ao Complexo de Moisés, este assim delineado: profeta, fundador da religião e da nação de Israel (séc XII aC), guiou os judeu por 40 anos pelo deserto. Porta-voz divino, recebeu de Deus o Decálogo. Fundador e condottiere, suas decisões eram incontestáveis. O complexo toma conta da personalidade de muitos fundadores e chefe de escolas, seitas e grupos, principalmente religiosos, dos quais se torna o seu guia natural por ter falado com Deus diretamente no alto da montanha.

Apossando-se de alguém, o complexo de Moisés significa que esta pessoa está investida de suprema missão: orientar o curso da História no sentido desejado por Deus, segundo mandato dele recebido através da revelação. Nestas condições, ela tem o poder de guerrear, abater, destruir e reconstruir. Na maioria das vezes, o profeta é uma figura trágica, pois, embora tente se esquivar da teofania, acaba cedendo porque não tem outra opção. Seu poder vem da voz divina que o inspira.

Conforme se lê no Dicionário de Psicanálise (Elisabeth Roudinesco e Michel Plon), uma interpretação do livro dos profetas, escrita por Ernst Sellin, em 1922, havia fascinado Freud. Este escritor defendeu a tese que Moisés teria sido vítima de um assassinato coletivo cometido por seu povo, que teria rejeitado a sua mensagem e preferido a idolatria. Transformada numa doutrina esotérica, a doutrina mosaica passou a ser transmitida por um círculo de iniciados. Essa interpretação tinha muito a ver, segundo o próprio Freud, com a sua vida, as suas lutas e o que aconteceria com a psicanálise depois de sua morte. O livro Moisés e o Monoteísmo, que nos permite entender melhor a síndrome e o complexo que descrevemos aqui, só foi publicado em 1939, ano da morte de Freud.

Para nós, em que pesem os argumentos da dra. Magherini para justificar a denominação da síndrome,  o mais notável choque produzido pela Itália e por sua arte em um artista visitante foi aquele relatado pela própria “vítima”, Johann Wolfgang von Goethe, no séc. XVIII. Entre 1786 e 1788, ele viajou pela Itália. As observações que fez, como memórias e diários, foram reunidas num livro, Viagem à Itália, que apareceu  entre 1816/7. Essa viagem não só transformou a sua vida como alterou profundamente a visão estética que tinha da arte.


O livro Viagem à Itália foi escrito quando Goethe já estava com mais de sessenta anos. Foi uma obra trabalhada, meditada, que teve como objetivo maior o de deixar não só o registro das mudanças de sua personalidade como, sobretudo, uma doutrina estética plenamente acabada, uma nova maneira de se contemplar a obra de arte. São comuns no decorrer do livro as comparações que Goethe faz entre o que era antes da viagem e aquele em que se tornou depois de tê-la realizado. Referindo-se às suas mudanças, ele confessa não só “ter mudado até os ossos” como declara que a data de sua chegada a Roma foi o seu “segundo nascimento”. 

Ao viajar pela Itália, Goethe foi se desconstruindo. Ele tinha plena consciência dessa desconstrução, procurava-a para se tornar um outro ser, tanto física como  pessoal e intelectualmente. Além do contacto direto e intenso com as obras da antiguidade romana e do Renascimento, os interesses que já trazia, conforme registrou, foram ampliados ao dar lugar, nas suas pesquisas e estudos, a observações do mundo natural, do clima, da paisagem, da vegetação e dos minerais, encontrados no seu caminho.

Conferindo prioridade absoluta ao sentido do olhar, Goethe estabeleceu que qualquer coisa que se possa  dizer sobre uma obra de arte deve pressupor um longo contacto visual  com ela. Como ele mesmo nos disse, o conhecimento só pode se constituir a partir dos próprios objetos. Nada, pois, de intermediários, de relatos sobre. Interessava-se somente pelo que os seus sentidos captavam, a visão acima de todos. Atualíssimo, Goethe tinha uma noção muito clara daquilo que hoje chamamos de mundo verbal e de mundo extensional. Este, como se sabe, é o que podemos conhecer através de nossa experiência pessoal e direta, bem diferente do outro, o verbal, a realidade que nos chega através de palavras, de relatos que outros nos fazem, relatos em sua maioria falsos ou  pouco confiáveis. Na arte, Goethe é avesso às teorizações que não partam da apreciação da própria obra. 

A doutrina estética goetheana se baseia num modo de ver, de sentir e de viver diferente daquele que ainda hoje encontramos na base da maioria dos textos que continuam se produzindo sobre arquitetura e arte. Uma experiência que, diante das mudanças que a viagem à Itália causou em Goethe, podemos traduzir, ainda que correndo o risco de uma exagerada simplificação, como uma oposição entre o sul (Itália) e o norte (Alemanha). O sul para ele adquiriu um valor luminoso criativo voltado para emoções existenciais e estéticas, não mais podendo ser considerado como um mundo depositório de uma arte que simbolizava o declínio social, político e artístico, como a entendiam tradicionalmente os homens do norte quando discorriam sobre a Itália.


   ANTONIONI   E   MOISÉS   -   DETALHE

Quem melhor talvez tenha fixado (por imagens) o que Goethe quis dizer foi Michelangelo Antonioni. Em 2004, aos 92 anos, este cineasta nos deu um dos mais importantes filmes de arte da história do cinema, um curta-metragem de 15 minutos conhecido pelo título Lo Sguardo di Antonioni, o registro de uma visita por ele feita ao Moisés de Michelangelo, na Igreja de S.Pietro in Vincoli, em Roma, a mesma igreja e a mesma escultura, que tanto deslumbraram Freud no início do século. 


MOISÉS  ( MICHELANGELO )

Grandioso e solene, o Moisés de Michelangelo, na sua relação entre espaço, arquitetura e espectador, ao mesmo tempo em que aponta para o passado, a concretização de um ideal através do Decálogo, da lei mosaica, encarna, como um todo, aquela que talvez seja proposta maior do Renascimento, a de que a obra de arte seja antes de tudo a libertação da personalidade do homem através da libertação dos seus sentimentos.