segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O TÉDIO

O cansaço de viver sempre acompanhou o homem, fazendo parte da condição humana. Os nomes dessa maneira de sentir o mundo variaram conforme as épocas, a maioria, até o século XIX, fazendo parte da literatura, da arte, da poesia, da filosofia, da religião: "ania", apatia, taedium vitae, acídia, melancolia, neurastenia, mal du siècle, spleen, absurdo, náusea etc.

Os estoicos gregos por volta do séc.III aC procuraram tratar o tema de um modo filosófico. Propunham que os homens deveriam aceitar o que decorria inevitavelmente da natureza e não se revoltar. O sábio deveria viver numa espécie de “fortaleza interior” e obedecer a máxima que lhe recomendava suportar e se abster de participar do mundo. Assim, o sábio deveria controlar as suas representações do mundo de modo a escapar do sofrimento. Os estoicos e os céticos defendiam a conquista de um estado chamado apatia, estado de insensibilidade emocional ou esmaecimento de todos os sentimentos, alcançado mediante o alargamento da compreensão filosófica. Ou seja, um estado de alma não suscetível de comoção ou interesse, indiferença controlada.
 

Sêneca foi para nós o primeiro na antiguidade a descrever os sintomas desse estado, por ele denominado de taedium vitae, cujos traços por ele fixados tinham, por exemplo, muito em comum com o que Freud descreveria mais tarde como depressão. Sêneca estabeleceu uma distinção entre taedium (tédio) e aegritudo (desgosto, esgotamento, também no sentido físico). Este último, para Sêneca, não é a mesma coisa que o outro, não podendo ser usados como sinônimos. O primeiro é um mal-estar que envolve a existência como um todo, é mais insidioso, paralisa a decisão, e não sendo tão espetacular como o último, como no luto ou no furor insano, parece desencorajar qualquer tratamento.

Ainda na antiguidade, um pouco mais perto, por volta do séc. IV dC, os anacoretas do deserto conheceram uma forma desse cansaço de viver de modo muito peculiar, dando-lhe o nome de acídia ou acedia, caracterizada por um enfraquecimento da vontade, uma espécie de abulia espiritual quanto ao exercício das virtudes, especialmente no que respeita ao culto e à comunicação com Deus. A palavra é grega, akedia, significando ao mesmo tempo negligência, indiferença, mágoa, prostração, desgosto, apatia do coração e da alma. A literatura dos padres do deserto (ver a literatura de Evagro, o Pôntico, Egito, séc. IV dC) nos dá testemunhos deste estado: O anacoreta se sente tão esgotado como se tivesse percorrido um longo trajeto no deserto ou se submetido a um jejum de muitos dias.


O a da palavra acídia é privativo, negativo, denotando falta de elã, de interesse, de motivação, desinteresse. A palavra tem relação com o verbo latino cedo, cessi, cessum, cedere, avançar, prosseguir, persistir. A acídia é descrita pelos monges do deserto como um estado no qual o que se faz se revela subitamente como destituído de interesse, sem razão, sem objetivo. A acídia aponta para a inutilidade do que se está a fazer. Os anacoretas, como sabemos, viviam como trogloditas, em pequenas celas, em cavernas, na penumbra, nos desertos do Egito, durante anos e anos até a morte. 

Como anacoretas, deviam manter permanentemente a sua atenção concentrada no que faziam, a leitura, as orações, a busca de água e de alimentos, sempre o mínimo, o estritamente necessário para a sobrevivência. Qualquer descuido com relação a esta concentração significaria uma porta aberta para o demônio. A doutrina dos padres do deserto recomendava que jamais fosse dada alguma oportunidade a que pensamentos ou atos viessem a trazer algum desvio das posturas recomendadas. 


A ociosidade era um dos grandes perigos, uma das vias preferidas do demônio para atacar. A ociosidade era provocada geralmente por um questionamento interior sobre a validade ou a utilidade do que se fazia. Como a preguiça, era uma arma de Satã. Aberta a guarda, o monge podia sair do estado de entusiasmo (Deus em nós) em que se encontrava e se tornar uma presa do vazio. Abria-se uma espécie de fenda, de ruptura, na tensão que o anacoreta alimentava como meio de se relacionar com Deus. Isto era a acídia. Uma ruptura que podia levar o monge a fugir, a abandonar tudo. Afinal, Alexandria, a cidade mais bela do mundo, cheia de prazeres, estava apenas a um dia de marcha... A acídia era a mais ameaçadora das tentações, maior que as mulheres e que a comida, tentações sempre mais fáceis de combater.

Pascal, filósofo de século XVII, nos seus Pensées, nos diz, quanto ao tópico cansaço de viver (ennui), que nada é mais insuportável ao homem que ficar entregue a esse estado, inerte, sem paixões, sem nada a fazer, sem nenhum divertimento, palavra que para ele toma o sentido de alguma forma de ação. No século XVIII, a Enciclopédia de Diderot e D´Alembert nos informa que o ennui é uma espécie de desprazer impossível de definir. Não é 
desgosto, não é tristeza, é mais uma privação de todo o prazer, causado por algo que não sabemos, que afeta os nossos órgãos, ou é causado por algo que nos é exterior, coisas do mundo, acontecimentos, que, ao invés de nos interessar, produzem um mal-estar, um desgosto, aos quais podemos nos acostumar. 
 
Os românticos denominarão de mal du siècle este modo de ser. Chateaubriand, no Le Génie du Christianisme, declara: Vivemos com um coração cheio num mundo vazio; e sem jamais ter sentido algum prazer, desenganados de tudo. Em quase todos os escritores deste período sempre este sentimento de insatisfação. Todos falam de fadiga, opressão, desencanto, fastio. Coleridge, poeta inglês, compõe em 1.802 uma ode ao desespero, na qual ele descreve minuciosamente este estado que ele chama de “morna prostração”, no qual se sente mergulhado. 


 
Baudelaire põe em circulação o spleen, promovendo-o como valor literário. Enfado, melancolia sem causa aparente ou específica. A palavra veio da Inglaterra, sendo spleen, o baço, órgão sede da melancolia, sendo esta, conforme sua etimologia, a bile negra. A melancolia é produzida a partir da bile negra, que leva os indivíduos por ela acometidos à lentidão, à tristeza, à prostração. É um estado mórbido caracterizado pelo abatimento físico e mental, visto muitas vezes como manifestação de vários problemas psiquiátricos, hoje mais considerada como uma das fases da psicose maníaco-depressiva. Um tema de eleição literário muito usado por pré-românticos e românticos. Théophile Gautier, poeta do romantismo francês, dirá: Não sou nada, não faço nada; não vivo, vegeto. Eis porque não sendo bom para nada me pus a escrever versos.

Para Schopenhauer, não há escapatória. O tédio de viver, o ennui dos franceses, o spleen dos ingleses, não é acidental, ocasional. Na vida do nosso psiquismo é sempre e necessariamente ao que chegaremos se persistimos no nosso querer viver. É deste filósofo (O Mundo como Vontade e como Representação) a seguinte observação: “A vida oscila como um pêndulo, da esquerda à direita, do sofrimento ao tédio.”

Os existencialistas farão do tédio algo mais profundo, diferenciando-o do tédio comum, banal. Este tédio profundo será para eles um meio, desde que o homem se questionasse, para o desvelamento, a desocultação, do seu estar-no-mundo. Sartre, em A Náusea, através de Antoine Roquentin, denuncia o tédio burguês, a rotina que encobre o autêntico viver, que rejeita a angústia das escolhas. O tédio (a náusea) sobrevém quando o mundo à nossa volta não provoca mais que indiferença. A contingência, para os existencialistas, é o mundo caindo na indiferenciação.

Numa variante, Albert Camus, introduzirá o absurdo, noção filosófica que ele apresenta em O Mito de Sísifo, nascida da constatação da contingência do mundo. O absurdo, que Sartre apresentara antes no referido romance, é para esses escritores-filósofos uma interrogação sobre o sentido da existência, muito mais do que uma questão semântica. O absurdo se define como uma impossibilidade de encontrar algum sentido para a vida. É dessa constatação que Sartre nos falará da obrigação que, malgré tout, temos de dar um sentido ao mundo, de fazermos as nossas escolhas, por mais angústia que isso nos cause. Se herdamos um mundo dos outros, não há angústia, logo, conclui Sartre, não há vida autêntica. Complicando um pouco mais a questão, Sartre nos fala que esta escolha tem que ser feita por nós tendo o outro à nossa frente (o homem não é simplesmente, é, ao contrário, sempre, um ser-para-os-outros).

                                                 

Num dos seus livros, The Waves, Virginia Woolf nos deixou este registro: “Estou só num mundo hostil. A face humana é atroz. A biografia desta escritora, sabemos, toda feita de sofrimentos, rebeldia, fracassos, languidez, abatimento, cansaço e depressão é uma lenta descida infernal. 

Francis Scott Fitzgerald é outro. Sua obra é uma confissão, um ensaio autobiográfico onde temos a história de um fracasso sentimental, artístico e existencial. Estes dois exemplos são casos literários, mas já prenunciam o que viria a ocorrer logo adiante. 

A partir de meados do século XX, vem se dando, por razões abaixo comentadas, o nome de depressão a esse estado de desencorajamento, de perda de interesse, que decorre de alguma perda, de decepções, de fracassos, quando aquele que o experimenta é tomado por grande sofrimento e solidão. Costuma também aparecer, nesse quadro, algum tipo de prostração física e moral decorrente de algum estresse. O estresse, como sabemos, é um distúrbio fisiológico ou psicológico causado por circunstâncias e acontecimentos que nos são adversos. A palavra também tem o sentido de algo que nos puxa em várias direções, que nos importuna, que nos atropela.


VICTOR HUGO

Os especialistas da área (médicos, psicanalistas, psiquiatras, psicólogos, a indústria farmacêutica etc.), que assumiram o controle do tema, deram o nome de depressão endógena àquela que, no seu entender, não está ligada a nenhum tipo de trauma e que não é passível de ser atribuída a alterações orgânicas. Já a depressão bipolar, a mais comum, muito em moda hoje, é para eles aquela em que temos a alternância entre estados de excitação (mania) e de depressão. À mercê desse estado, os males que nos acometem hoje, segundo esse diagnóstico, numa sociedade como a nossa, impregnada de exacerbado individualismo, acentuam ainda mais o sofrimento causado.

A depressão é hoje um mal universal. A sua temática mudou profundamente. Até o início do século XX, ela girava em torno da culpabilidade, do pecado, de posturas filosóficas, de questões religiosas. Hoje, no centro da depressão está a desvalorização narcísica do homem moderno. Instigado a ter, a possuir, a ir, excitado ao máximo pelo ataque dos meios de comunicação, quase sempre não lhe é possível a obtenção de tudo aquilo que lhe foi imposto como desejo. A excitação e a queda são os dois lados da mesma montanha, inevitáveis. Daí as expressões: “minha vida é miserável, pobre, desinteressante”; “não estou à altura do que mereço”; “eu acho que tenho direito a um outro tipo de vida” etc. Da culpa passamos à frustração. As mensagens, antes, nos pediam que fôssemos responsáveis, que o nosso dever viesse antes, que sempre seria possível conciliar os nossos interesses com os dos outros, conformávamo-nos em não querer tanto da vida, víamos até algum mal nisso. Hoje, seja feliz de qualquer modo; arranque agora tudo o que você puder da vida; se você não pegar, o outro leva; não seja idiota, o mundo é assim mesmo, são as mensagens.



Não suportamos a dor de não possuir, de não ter, de não ir, de não fazer, de não ser “alguém”, pois, afinal, como dizem a publicidade e as religiões oficiais, só temos uma vida. O problema é que, por várias razões, físicas, pessoais, individuais, sociais, econômicas, políticas etc. não conseguimos dar atendimento a essas propostas, aos desejos que elas impõem, que nos atacam por todos os lados, em qualquer lugar. 

O sistema fez com que a depressão e a frustração caminhassem juntas. Em hipótese alguma este mesmo sistema, que modela os nossos desejos, permitirá que sejam fechados os três portões do inferno, a ansiedade, o desejo e a cobiça, como dizem os nossos mestres hindus. Uma das consequências de tudo isto é o número enorme de terapeutas que chegam ao mercado da depressão anualmente, no mundo todo. De outro lado, a indústria farmacêutica faz a sua parte, pondo ao nosso alcance as maravilhosas pílulas da felicidade. 

A falsa liberdade que temos de decidir no mundo atual, voltado totalmente para as mais variadas formas de consumo, desde bens a pessoas, de filosofias e modas culturais de massa prêtes-à-porter à mudança anual dos nossos carros ou a do nosso “living”, suscita angústia e depressão. Neste quadro, nossa sociedade vem, entretanto, de uns anos para cá, encontrando meios para não deixar que mergulhemos na depressão continuadamente por muito tempo, que evitemos as crises mais sérias. Muitos terapeutas da área operam hoje como bombeiros. Um exemplo, ainda que não muito atual me vem à memória. Tchaikovski passava por períodos de depressão, podia ficar dois ou três anos sem nada fazer, entregue a ela. Depois, então, criava algo novo. É sob este ângulo que podemos encontrar um lado até bastante interessante na depressão, um certo encanto. A luta contra ela pode levar, no geral, a alguma forma de criatividade, sempre mais frutífera que a luta contra a ansiedade, já que a primeira nos põe sempre diante das próprias origens da vida.
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No geral, no atacado, a depressão, atualmente, se inscreve no quadro da frustração, como expusemos. No varejo, no dia-a-dia, ela poderá ser classificada, sempre se tendo em vista o que já expusemos anteriormente (vide Être sûr de Soi, de Willy Pasini, Suíça), insistimos, em três tipos:

a) a maníaco-depressiva, que tem base biológica, hormonal, e que pode ser tratada com medicamentos sem necessidade de psicoterapia. Os depressivos recorrem aos técnicos ou aos hospitais para tratar a sua depressão sazonal, anual, conforme o caso, como as mulheres e homens procuram hoje os ginecologistas e andrologistas. Com essa prática, podemos alargar os prazos da volta da depressão, de anuais para trienais ou quinquenais, por exemplo. 

b) o segundo tipo da depressão é a neurótica, o mal está nos pessimistas de todo o gênero. É uma maneira de ver o mundo, negro, cinza, sem cor nenhuma (hoje, esse tipo de depressão já pode ser encontrado em jovens adolescentes e mesmo em crianças). Uma das grandes causas deste tipo de depressão está no esfacelamento do núcleo familiar. As comparações passaram a ser feitas horizontalmente, o sentido de autoridade se perdeu. Este fato é hoje particularmente crítico para o mundo feminino, que “se escolhe” mais e que, portanto, se torna cada vez mais ansioso e deprimido.

c) o terceiro tipo de depressão é o chamado reacional. Ele sobrevém depois de um acontecimento traumático, a perda de um emprego, a morte de um ente querido, o rompimento de uma união etc. Este, diríamos, é o lado mais soft da depressão, exigindo pouco suporte técnico, quando for o caso. Encontrado um novo amor, um novo emprego, o que se foi é substituído (há sempre um “refil), as coisas se acomodam.