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HERÁCLITO |
Há uma passagem em Heráclito, filósofo grego da escola jônica, séc. VI aC.que diz o seguinte: O Sol não sairá de seus limites; se o fizer, as Erínias, servidoras da Justiça, o desmascararão. O filósofo estava se referido ao maior dos pecados gregos, a Hybris, a desmedida, a imoderação, o orgulho, a vaidade, a arrogância, a falta de humildade perante os deuses, isto é perante o Todo. Entendiam os gregos que tudo o que existia no universo tinha um lugar, uma função. Isto não dependia dos deuses, pois eles também estavam obrigados a respeitar esta ordem. Esta ordem fora instaurada por Moros, o Destino. Divindade grega, cega, inexorável, gerada pela união do Caos com Nix, nunca admitida no convívio divino desde a instauração da primeira dinastia (Urano-Geia), Moros (em grego, quinhão que cabe a cada ser humano que entra na vida; é também usada no sentido de infortúnio, destino funesto e morte). O nome Moros vem do verbo meiresthai, sortear, o mesmo que deu origem ao nome das Moiras, as três irmãs que eram donas do fio da vida, Cloto, Láquesis e Átropos. Conhecidas também como Aisas, eram, por parte de mãe, irmãs de Moros. Todos irmãos, pois, de Hipnos e Thanatos.
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MOIRAS |
Todas as divindades da mitologia grega estavam submetidas ao poder de Moros, os céus (Zeus), o elemento líquido (Poseidon) e o mundo infernal (Hades-Plutão). Moros estava acima dos deuses e dos humanos, pois administrava tudo segundo uma lei que nem o próprio Zeus podia transgredir. As leis de Moros estavam escritas desde o princípio da criação, guardadas num lugar ao qual só os deuses tinham acesso. O máximo que eles podiam fazer, entretanto, era apenas consultar o Livro de Moros, jamais admitida qualquer mudança no que nele estava fixado. Só os oráculos podiam entrever e revelar o que estava escrito.
Como não possuía templos ou culto, Moros era reverenciado por poucos. Representavam-no como uma figura antropomorfizada, tendo sob os pés o globo terrestre; numa das mãos, uma urna onde estava guardada a sorte dos mortais. Na outra, um cetro, símbolo de seu poder soberano. No alto da cabeça, uma coroa de estrelas. Às vezes, ele era representado por uma roda à qual se prendia uma corrente. Acima da roda, uma enorme pedra; abaixo dela, duas cornucópias com pontas de lanças. São as leis cegas de Moros, como diziam os gregos, que tornam culpados tantos mortais, apesar
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AQUILES MATA HEITOR |
de todo o seu empenho em se manter virtuosos. Ou, no sentido oposto, são as mesmas leis que tornam vitoriosas tantas pessoas que pelos seus atos demonstram o contrário da virtude, da honestidade e mesmo do respeito aos deuses. O exemplo clássico do que aqui se expõe pode ser encontrado em Homero, na Ilíada, no episódio da morte do grande herói troiano Heitor (canto XXII).
A obrigação que temos todos de respeitar a ordem universal era representada pelo conceito de Ananke, conceito que nunca deixou de ter características infernais. Ananke significa coação, necessidade, com o sentido de fatalidade. Ananke governa todas as coisas de um modo providencial, uma espécie de necessidade mecânica que vai além das causas puramente físicas. Desrespeitada a ordem universal, Ananke se manifestará, cedo ou tarde.
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ANANKE |
Tudo no universo parece respeitar Ananke. Olhem os corpos celestes, diziam os gregos, como eles respeitam Ananke. Por que só o homem tenta escapar dela? Existe uma lei, uma ordem, no universo, que deve ser respeitada. Os hindus a chamam de Rita, a ordem universal, superior aos deuses, que deve ser respeitada por todos. Rita é a força das forças, uma categoria essencial da qual depende a própria existência. Estas mesmas ideias podem ser encontradas também, por exemplo, no conceito de Maat, dos egípcios.
Hybris é o mais mortal dos pecados, uma insolência, um arrebatamento, que leva o homem a tentar se igualar ou mesmo a querer ultrapassar os deuses. É uma disposição contrária ao que os gregos chamavam de Sophrosyné, prudência, moderação sábia. O Oráculo de Delfos, no seu pórtico, ostentava, por isso, a máxima: Conhece-te a ti mesmo. Com a Hybris e a sua expressão física, a Hamartia (violência) a lei natural é rompida, os deuses são desafiados. Entenda-se que isto nada tem de social ou jurídico.
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HADES RAPTA KORE |
Nem, por outro lado, falamos aqui de pecados como as religiões patriarcais os encaram, principalmente o mundo cristão. Não se julgam no Hades, por exemplo, “pecados sexuais”; Hades-Plutão era, aliás, um estuprador; Zeus tinha um furor erótico insaciável. O que se julga no Hades é a pretensão, a disposição para o abandono da justa medida, a ignorância do que se é e, com isso, a falta de percepção do outro, isto é, do Todo.
O que se pode depreender do que expusemos até aqui é que a morte entre os gregos antigos nunca era experimentada apenas como desaparecimento do corpo físico, como uma simples cessação das funções fisiológicas. A morte para eles deixava implícitas muito mais coisas, tinha muitas outras implicações. É evidente que a morte tem um caráter irreversível. Quando ela chega ninguém pode revertê-la, algo é cortado inapelavelmente.
Foi tendo em vista esta inexorabilidade que os gregos criaram as Moiras, nome grego que significa lote, parte, pedaço, quinhão, ou seja, o naco de vida que nos coube a partir do momento em que somos expelidos do ventre materno. A representação desse pedaço de vida, situado entre duas datas, era feita por um fio. Daí serem elas chamadas de Fiandeiras.
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NIX
( W. A. BOUGUEREAU ) |
As Moiras eram divindades ligadas à primeira dinastia divina, sendo elas filhas de Nix, uma das cinco entidades primordiais nascidas do Caos. A palavra Moira, ao nos apontar para uma atividade feminina, nos diz que a vida é algo tecido, que temos de ir entrelaçando, manipulando fios pela urdidura, criando tramas, nós, arrematando aqui e acolá, evitando esgarçamentos. As Moiras são assim as tecelãs do nosso destino. Neste sentido, são divindades que pairam acima dos deuses e dos humanos. Elas velam pelo desenrolar da vida de cada ser humano.
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MOIRAS |
As Moiras são três: a primeira é Cloto (etimologicamente, a que tece, a que fia); o giro da sua roca de fiar simboliza o curso das existências humanas. Láquesis (etimologicamente, a que sorteia), define a sorte (o pedaço de fio) que coube a cada um; Átropos (etimologicamente, a inflexível, a que não volta atrás) corta o fio no lugar determinado pela segunda.
O fio, lembremos, simbolicamente une dois mundos, dois estados, pondo em relação o seu princípio, a sua origem, e o seu desenvolvimento condicionado temporal. O fio, a rigor, é o hífen
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FASES DA LUA |
que une as duas datas que cabem ao ser humano quando ele entra na existência. As Moiras são, por isso, essencialmente, deusas lunares, abrindo e fechando indefinidamente os ciclos individuais da existência humana. Como a Lua, elas nos falam do tempo, com as suas fases, apontando para o devenir cíclico do universo. É neste sentido que Cloto significa o presente, Láquesis o passado e Átropos o futuro.
A existência humana, nessa linha de abordagem, é um continuum no tempo, uma continuidade permanente. Ao morrer alguém, algo se rompe na malha de relações que cada um criou. Estávamos enlaçados e, com a morte, o fio se rompeu. Por isso, falamos da morte como desenlace fatal. Com a nossa morte, o tecido que nós e outros fomos tricotando, se rompe, apesar de todos os nós que demos. Nós são lugares de condensação, de agregados, como dizem os budistas, lugares onde nós mesmos nos amarramos com a intenção de ficar mais fortes, embora na realidade, nesses lugares, muitos fiquem constrangidos, imobilizados, complicados, enredados.
Com a morte, todos os fios e nós são cortados. A morte desarticula
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KRONOS |
os tecidos, aquilo que estava unido se separa, anulando-se totalmente as forças de coesão. A morte é assim solutio, como nos dizem os alquimistas. O simbolismo das Moiras aponta para o caráter irredutível do destino. Impiedosamente, elas fiam e desfazem o que teceram o tempo todo. Por isso, muitos as representaram ao lado de Kronos. Elas são indiferentes e nos dizem claramente que a vida se alimenta da morte.
O mito das Moiras ajuda-nos bastante a entender a razão pela qual os antigos astrólogos consideraram a quarta casa de uma carta
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ESCORPIÃO |
astral como princípio e fim da existência, extraindo dessa visão a sua íntima e direta relação com a oitava casa, que tem analogia com o signo de Escorpião, governado por Plutão (regente diurno) e Marte (regente noturno). A quarta casa astrológica como se sabe é da Lua, cuja atividade no céu é em tudo semelhante à ação das Moiras, como o mito a descreve.
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ÁRTEMIS ( VASO GREGO ) |
Viver é seguir o curso da Lua, aparecer, mudar, minguar, desaparecer, retornar. Ou seja, a vida está sempre nos propondo uma série de desapegos, apesar do nosso esforço para construir alguma coisa. É neste sentido que a quarta casa astrológica pode dificultar enormemente as muitas “mortes” pelas quais teremos de passar enquanto vivermos. Quanto mais uma pessoa é chegada à sua família, ao seu abrigo, à sua gruta, à sua origem e fonte de nutrição, às tradições e atavismos familiares, mais ela estará influenciada por tudo o que estiver indicado pela sua quarta casa, astrologicamente falando.
A quarta casa astrológica nos revela onde e como uma pessoa vive, como ela é influenciada por aquilo que a cerca mais de perto, de que modo os seus sentimentos e os seus estados de ânimo lunares a prendem às suas origens. Apesar de termos caminhado em direção da sétima casa e de termos conseguido o nosso reconhecimento público pelas conquistas da casa dez, a quarta casa sempre nos afetará. A quarta casa é tão importante quanto o ascendente, embora seus efeitos sejam menos visíveis, sendo muitas vezes difícil perceber o quanto ela atua em nós. A quarta e a oitava casas são subterrâneas. Na primeira estão as nossas raízes, que, se saudáveis, nos ajudarão a manter a árvore de pé, ereta, frondosa. Na oitava casa, a quinta da quarta, está a nossa vida subconsciente. Que frutos colheremos na nossa oitava casa se a considerarmos, por derivação, como a quinta da quarta casa? A oitava é a casa onde uma união encontra a sua expressão mais profunda. Isto tem evidentemente a ver com o sexo, ou melhor, com o encontro do esperma com o óvulo. Nove meses mais tarde, na parte final da quarta casa (útero materno, fecundo ou não), já tocada a cúspide da quinta casa nascerá alguém...
Lembro que a astrologia praticada na Índia sempre põe em relação a sexta e a oitava casas astrológicas, já que os astrólogos hindus veem em ambas, dentre outras coisas, problemas relacionados com males físicos, destacando que na oitava encontramos a possibilidade da ocorrência de males mais duráveis, mais virulentos, inclusive males terminais. Já a sexta casa indicará males mais agudos, passageiros, que poderão se transformar em males crônicos se a casa doze estiver envolvida.
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ÁTROPOS |
Quando Átropos corta o nosso fio de vida (final da casa quatro), está sempre presente nesse momento, conforme a mitologia grega nos revela, Thanatos, o deus da morte. Filho de Nix, irmão gêmeo de Hipnos, deus do sono, tido como profundamente sinistro, seu nome lembra extinção, dissipação, transformação, escuridão. Hesíodo nos diz que Thanatos possuía um coração de ferro e entranhas de bronze. Era uma espécie de gênio da morte, marcando sua presença sempre ao lado de Átropos.
O nome Thanatos toma também o sentido de ocultação, de algo que vai se dissipando, se apagando. Isto se devia ao fato de que o morto, (alma) se tornava um eidolon, um corpo evanescente, insubstancial, uma energia fraca, bruxuleante, que guardava vagamente o contorno da sua forma física. Os gregos usavam também a palavra skia, sombra, para designar o morto.
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THANATOS |
Thanatos, ao mesmo tempo que apontava para o aspecto perecível e impermanente da existência, sugeria também uma ideia de revelação e de regeneração. Era, como tal, a divindade que introduzia os humanos em mundos desconhecidos, enviado sua alma ao Hades. Para Homero, a alma, ao se retirar do corpo físico, transformava o agregado de membros e órgãos, o corpo físico, em soma, um cadáver sem movimento.
Para muitos, Thanatos lembrava que a morte poderia ser vista também como um rito de passagem, ao abrir as portas de um mundo diferente, indicando que a vida e a morte eram complementares. Para os que não o viam desse modo, para os que sempre haviam orientado a sua vida só no sentido material, sua presença era espanto, terror, olhos esbugalhados. Não sendo um fim em si, Thanatos era também, para a maioria, talvez, a libertação dos sofrimentos e das preocupações.
Representado muitas vezes por uma nuvem escura, por uma bruma que envolvia o morto, a cabeça principalmente, Thanatos sempre deixou evidente para os gregos que morrer era cobrir-se de trevas, sendo o negro indiscutivelmente a sua cor. Como privação da luz, era, em última instância, o aspecto perecível e destrutivo da existência.
Embora raras, sempre podiam ser encontradas na antiguidade algumas representações do deus, uma carpideira vestida de negro
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HYPNOS |
com o rosto velado ou um ser humano carregando nas mãos um tocheiro voltado para o chão (a vida que se extingue) e junto dessas imagens algumas sementes de papoula a lembrar o sono eterno (Hypnos). Aliás, é de se lembrar que a palavra psiche, entre os gregos, era também usada para designar tanto a borboleta como os grãos da papoula.
A rigor, Thanatos nunca foi um agente causador da morte. Sua presença sugere uma ideia de cessação, de descontinuidade. Os poetas trataram-no melhor, vendo-o como uma espécie de anjo que se aproximava suavemente do moribundo para ajudá-lo, fechando-lhe os olhos, distendendo os seus membros. É por esta razão que muitos autores o viram como um anjo da morte benevolente, da morte tranquila, enquanto as Keres, suas irmãs representariam a morte violenta.
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ASFÓDELO |
Não é possível a este altura deixar de lembrar que este aspecto amoroso de Thanatos foi captado magistralmente, como talvez ninguém o tenha feito antes, por Robert Altman em seu filme A Última Noite. Neste belíssimo filme, Altman dá o nome de Asphodel (nome de uma famosa flor do Hades) ao anjo da morte (Virginia Madsen no filme). Nos USA e no Brasil a crítica não alcançou Asphodel, o sentido deste personagem, vendo-a apenas como uma “mulher má e perigosa”, não lhe dando a mínima importância. Perdeu-se toda a riqueza do personagem, o tom tanático que Altman imprimiu ao seu filme.
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ROBERT ALTMAN |
O aspecto “amoroso” de Thanatos foi explorado principalmente
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EROS |
pela escultura do período clássico da história grega, com base em propostas de algumas correntes filosóficas (estoicismo), salientando-se como atraente a morte que levasse aos Campos Elíseos. Esta visão de Thanatos inspiraria mais tarde a arte mortuária romana, que erotizou a imagem de Thanatos, transformando-o num belo efebo, numa espécie de Eros alado.
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CAMPOS ELÍSEOS |
Ao que parece, em tempos muito remotos as imagens de Eros e de
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HERMES |
Thanatos se confundiram. Psicopompo, literalmente o “transportador de almas”, como já se disse, Hermes conduzia as almas, na forma de eidola, ao Hades. Separando-se depois as duas imagens, a residência de Thanatos foi fixada no Hades. Desde então, seu nome, como aliás o de todas as divindades infernais, era raramente pronunciado. Em antigas esculturas, antropomorfizado, carregava uma foice nas mãos para lembrar aos humanos que eles poderiam ser ceifados indiferentemente, em multidão, como as ervas dos campos.
As relações entre a mitologia e a psicologia moderna são muito estreitas como se sabe. As histórias de Eros e de Thanatos, por exemplo, ocupam lugar importante na psicanálise. Não será preciso muito esforço também, por outro lado, para se perceber o quanto a chamada psicologia profunda de Jung tem as suas raízes fincadas no mundo mítico.
É a partir destas aproximações que desejamos destacar como a psicanálise freudiana se aproveitou de Eros e Thanatos, dando a ambos dimensões e alcance muito importantes, para a nossa chamada civilização ocidental, principalmente para a construída a partir dos fins do séc. XVIII. É dentro desse enfoque que podemos afirmar que Thanatos representa as forças da destruição nas suas mais variadas formas, presentes na dialética amor-ódio, criação-destruição, produção-consumo, anabolismo-catabolismo, tese-antítese, inspiração-expiração. Na máxima alquímica solve et coagula, Thanatos se confunde com a primeira operação, a solutio (dissolução).
A morte está sempre presente na constante luta entre tendências opostas na dinâmica universal. Thanatos se apresenta como doença, catástrofe natural, acidente, peste, epidemia, corrupção, violência social, droga, álcool, degradação ambiental, casos em que seus agentes são somente os vírus, as bactérias, os micróbios, os agentes infecciosos de toda a espécie, mas sobretudo o ser humano que atua na política, no tráfico de armas e de pessoas, na promoção de guerras, na produção industrial que envenena o meio ambiente, nos deletérios meios de comunicação, no mundo do dinheiro...
Uma das mais escandalosas e contundentes formas pela qual Thanatos se manifesta é a da autodestruição, a extraordinária propensão que o ser humano tem de se aliar, no mais das vezes inconscientemente às forças internas (que estão dentro dele) e às externas (do mundo à sua volta), no ataque à sua existência. Esta propensão é um notável fenômeno biológico e psicológico.
De um modo geral, todo ser humano acredita na sua autopreservação, no desejo natural que julga ter de preservar e prolongar a sua vida. O Direito, por exemplo, criou juridicamente o chamado estado de necessidade, que exclui a ideia de crime, uma figura jurídica para confirmar essa crença. Todavia, não é isto o que acontece quando se observa esta questão mais de perto.
Descobrimos espantados, estarrecidos, que muitas pessoas vão ao encontro de Thanatos. Gente que se destrói, que faz da sua vida um
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FREUD |
inferno (onde temos Plutão no mapa), que se mata lenta ou rapidamente pela comida, pelo álcool, pelo trabalho, pelo consumismo, pela moda, pela religião, pelos remédios, pelo tipo de relações pessoais que estabelece. Freud chamou esta tendência de “instinto da morte”. Este instinto, já diziam os gregos, existe em todo o ser humano com o nome de instinto de destruição, a ele se opondo o instinto de conservação. Como tendência à destruição, o suicídio é uma de suas formas extremas. Já houve mesmo quem dissesse que o ser humano só muito temporária e precariamente triunfa sobre Thanatos.
Eros, como se sabe, é uma força motriz (dynamis) que une tudo e da qual depende a continuidade do universo. É pulsão fundamental da existência. Confunde-se com o primum mobile aristotélico nas primeiras cosmogonias. Freud colocou sob a sua tutela as tendências de conservação, forças que precisam ser ordenadas, como instintivas que são, pela razão e pelo espírito. Para controlá-las, temos que ir além da razão, submetendo-as à desejável dimensão espiritual que precisamos desenvolver.
Para representar esta ordenação, os gregos tinham uma importante
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KIRON |
figura mítica, o centauro Kiron, mestre dos heróis gregos: o instinto submetido ao racional e ambos a serviço do espiritual. Se o homem se fixar só nos dois primeiros níveis (onde vive a maior parte da humanidade), as forças tanáticas acabarão sempre por prevalecer. Só teremos conflitos egoicos, disputas, guerras, destruição. Se nos concentrarmos no terceiro nível, o espiritual, trabalharemos muito mais em função do Todo, do mundo natural, da humanidade, do que procurando egoisticamente só as nossas vantagens.
Em qualquer circunstância, o que não se pode esquecer é que o ser humano, como dizem os filósofos da existência, é um “ser-para-a-morte”. A questão toda será pois a de controlar na medida do possível o aparecimento das forças tanáticas, as forças que operam em nós destrutivamente. Uns matam-se mais rapidamente, alguns conseguem bem ou mal manter o combate, outros, mais raramente, retardam a chegada de Thanatos até muito bem.
Quanto ao que está acima, muitas são as atitudes: uns, por exemplo, cortam um membro para viver um pouco mais; outros retiram-no, mutilam-se (extirpações, a chamada autodestruição preservadora), outros aceitam a responsabilidade pela sua própria destruição, vivendo-a como destino; outros nunca pensaram em Thanatos; outros colaboraram com ele... Qualquer que seja a hipótese, o certo é que ele sempre estará nos esperando; nesse momento então será acrescentada ao nosso hyphen a outra data para que se feche a nossa vida na presença de Átropos, a Inflexível, e de Thanatos.
Uma das formas mais alarmantes pela qual Thanatos atua hoje é a
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COMPRAS |
do consumismo, uma verdadeira praga, flagelo que a maioria confunde com felicidade (quanto mais consumimos, mais somos felizes). Esta praga consumista, nas suas formas mais incentivadas e aceitas socialmente, está nos grandes centros de compra (shoppings), na programação do lazer, nas viagens, nos feriados e nos fins-de-semana. A distância entre a atitude consumista e a destruição dos recursos naturais, do meio ambiente, da poluição, da degradação da natureza, da invasão dos campos e praias, é mínima.
Grande parte da humanidade não aceita a sua responsabilidade por se deixar envolver nestes processos tanáticos. Projetam-na sobre os outros, inventam desculpas (“afinal, a gente precisa se divertir”). No caso da autodestruição pessoal, a culpa é sempre de um parceiro, de alguém da família, de um filho, de uma mãe, de um pai, de um chefe, de relações que “não deram certo porque ninguém me entende”.
O que se constata cada vez mais é que as formas de autodestruuição crescem assustadoramente. “Por que não se suicidam logo?”, pode
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DROGAS |
ser a pergunta. Por outro lado, será possível desviar Thanatos, tornar o encontro com ele mais ameno? As tendências autodestrutivas escondem e se manifestam muitas vezes sutilmente. Seu quadro é amplo: podem vir em nome da religião, por práticas ascéticas, por martírios psicóticos, por formas de autopunição agressiva, pelas drogas, pelo álcool, por um comportamento antissocial provocativo, acintoso, por
automutilação em nome da moda, por certos tratamentos de beleza (dismorfismo), pela mania de cirurgias plásticas, pela simulação de doenças (despertar compaixão), por acidente propositais, por certos “assuntos de conversa” (falar constantemente sobre médicos, doenças, tratamentos, terapias, operações etc.).