quarta-feira, 23 de novembro de 2016

MITOLOGIAS DO CÉU - PLUTÃO (7)


Uma das formas mais perversas pela qual a tendência tanática se insinua atualmente é a depressão, nome que se dá a um estado de desencorajamento, de falta de interesse, que decorre de alguma perda, de contrariedades, de decepções, de fracassos, apoderando-se daquele que a experimenta sempre uma grande solidão e muito sofrimento. Com ela vem também a prostração física e moral, distúrbio fisiológico e/ou psicológico causado por circunstâncias e acontecimentos que são adversos, a que muitos, sem o saber bem, dão o nome de estresse. 


RETRATO  
( LUCIAN  FREUD - 1922 - 2011 ) 
A depressão é hoje um mal universal. No seu centro está a valorização narcísica do homem moderno, instigado a ter, a possuir, a ir, a fazer, excitado ao máximo pelos meios de comunicação, pela publicidade em todos os seus níveis. Como não é possível ao homem assim instigado obter tudo o que lhe foi sugerido e que ele experimenta como desejo, ele então se deprime. A excitação e a queda são os dois lados da mesma montanha. Hoje, o homem quer tudo da vida, ele não suporta a ideia de não ter, de não possuir, de não ir, de não aproveitar, de não ser “alguém” que consome, pois, em suma, só é “alguém” quem consome, quem aparece na TV, no Facebook, quem é celebrity. O modelo de consumo, hoje globalizado, juntou a frustração e a depressão. Em hipótese alguma este sistema, do qual o religioso é tributário, que modela os desejos humanos, permitirá que o homem aprenda dominar os três portões do seu inferno pessoal, o desejo, a ansiedade e a cobiça. 

Enquanto isso, um número cada vez maior de terapeutas chega anualmente ao mercado das terapias do psiquismo, no qual a da depressão representa uma grossa fatia. A indústria farmacêutica, por outro lado, vai fazendo a sua parte, pondo ao alcance da humanidade as chamadas pílulas da felicidade, os famosos remédios de tarja preta. 


O   INFERNO   ( FRA ANGÉLICO - 1425 )

Dentre as divindades que vivem no Hades é preciso destacar a ação daquelas que se envolvem diretamente com a morte. Dentre estas, 
muito deletérias eram as Keres. Esta palavra em grego tem relação com verbos que significam devastar, arruinar. A palavra latina caries, podridão, vem do verbo grego kerainein, destruir. Cárie, em português, destruição de um osso por corrosão progressiva, tem origem nesse universo semântico. Figuradamente, cárie será a destruição progressiva de alguma coisa.


KERE
As Keres, irmãs de Hipnos e de Thanatos, ao que parece, já estavam presentes na vida das primeiras tribos que chegaram ao continente europeu e se instalaram na região onde levantariam a cidade de Micenas. As primeiras representações destas divindades, sempre associadas à morte, as mostravam vestidas de negro, roupas salpicadas de sangue, aladas, com garras aduncas. Pela sua ação firme, constante e destrutiva, eram muito mais temíveis que Thanatos. 


MICENAS - PORTA DOS LEÕES

A ação das Keres tem a ver com o tipo de vida que o homem decide levar, ou melhor, a que ele se vincula desde o seu nascimento. Há casos em que elas o vão “apodrecendo” (o chamado instinto da destruição freudiano) desde o primeiros anos de vida, uma sucessão de atos, às vezes gloriosos, mas, no fundo, sempre destrutivos (não esqueçamos  que elas contam sempre com o desgaste natural de tudo o que toma forma),  que, num momento determinado pelas Moiras (Átropos), precipitarão o desenlace final. Por isso, o golpe das Keres ou da Kere (elas são tantas quantos os tipos de morte que existem) é sempre contundente. Elas, como Thanatos, agem sempre com as Moiras; põem o ponto final na vida do homem, golpeando-o, prostrando-o por terra inapelavelmente, parecendo ter mais “prazer” quando se trata de liquidar a vida dos mais orgulhosos, cheios de hybris. Com bocarras enormes, dentes pontiagudos, presas como as de javalis, se atracam ao calcanhar (zona corporal ariana) do morto e o arrastam para lugares ermos, afastados das cidades, jogando-os em montes de lixo. Ali, em meio à podridão, depredam o cadáver, dilaceram-no e depois deixam o resto par os animais necrófagos, os cães selvagens, as hienas e os corvos. 

HOMERO
Homero já nos falava das Keres. É famosa a passagem da Ilíada em que Pátroclo, ferido de morte, pede que o amigo Aquiles o enterre o mais rápido possível para que as Keres não dilacerem o seu corpo, impedindo-o, assim, de ser recebido no Hades. A bocarra das Keres, símbolo da morte devoradora de caráter mutilador, sempre apareceu associada às trevas eternas. Lembre-se neste particular que a mutilação era para o grego uma representação da própria morte. Isto se devia certamente ao fato de que aplicada aos humanos (gregos), a mutilação sempre os desqualificava, impedindo que suas almas fossem recebidas no Hades, na esperança de um renascimento futuro.

Todavia, não podemos esquecer que a mutilação no mito também pode ter outro caráter, equivalente à nigredo alquímica, na medida
TIRÉSIAS
em que ela pode possibilitar o acesso a planos de conhecimento de alto valor. A mutilação, no mito, pode ser total, como no caso de Tirésias, o maior vidente da Grécia mítica, que, tendo perdido a visão por castigo da deusa Palas Athena, deixou de ver o mundo real e adquiriu o poder da vidência. É de se notar que as mutilações como as aqui mencionadas geram, se assim podemos dizer, especializações. No mito, se, por exemplo, a mutilação afeta a visão, ela pode proporcionar ao mutilado a aquisição da inspiração profética (capacidade de ver longe), da antecipação do futuro.

Os únicos agentes da morte que se assemelham às Keres são as
HARPIAS  ( GUSTAVE  DORÉ )
Harpias, pois tanto umas como outras atuam sempre em função de uma trajetória existencial escolhida pelo próprio herói. Elas não podem ser confundidas com as Erínias, que operam sempre a posteriori, como se verá. Neste sentido é que as Keres e as Harpias aparecem como executoras do que já está predeterminado pelo tipo de vida escolhido pelo herói. É o caso de Aquiles a quem foi dada pelos deuses a opção de poder escolher o tipo de Kere que desejaria encontrar quando de sua morte. Uma Kere lhe proporcionaria uma morte tranquila, anônima, na velhice. A outra lhe daria uma morte gloriosa, masculina, no campo de batalha, uma morte “jovem”, que lhe proporcionaria um renome imperecível.


AQUILES
Neste sentido, como se pode depreender desta passagem mítica, Aquiles é o patrono deste arquétipo, o de se procurar a morte na juventude, em plena glória, para que ela, a morte, fixe a imagem dos que assim a ela se entregam numa aparência de beleza e esplendor físico. Lembre-se que este padrão comportamental foi, nos tempos modernos, posto em circulação pelos poetas românticos que procuraram acelerar a produção de sua obra e o seu fim, buscando este pelo álcool, pelas drogas, por extravagâncias de toda a espécie, inclusive por doenças, como a tuberculose, por exemplo, muito em moda no final do século XIX. Estes poetas e artistas foram agrupados sob o rótulo de a “escola do morrer moço” na literatura brasileira.


Vale a pena lembrar aqui o melhor exemplo do que estamos a expor. Manuel Antônio Álvares de Azevedo (nascido a 12 de setembro de 1831, São Paulo) matriculou-se no curso de Direito em 1848 e iniciou ao mesmo tempo a sua carreira literária. Tudo isso acontecia em sua vida quando os primeiros sinais da tuberculose já se faziam notar. Uma vida boêmia (outros falam de castidade) acelerou o processo, muito contribuindo para isso as ideias  fixas que alimentava sobre a sua própria morte.


BYRON
Essas ideias fixas eram alimentadas, e muito, pelas influências que Álavares de Azevedo recebeu de poetas românticos europeus, Byron, Musset e outros. Sua obra veio se fazendo em meio a sarcasmos e ironias com relação às suas próprias ideias de autodestruição e de uma visão de amores grandemente idealizados por donzelas virgens. Frustrações, melancolia e fixações na figura materna e na irmã completaram o quadro. Um cenário, neste nível, muito propício à ação das Keres como se pode depreender facilmente.

O poeta foi, sem dúvida, o melhor representante na literatura brasileira da “escola do morrer moço”e, por extensão, de um componente existencial altamente destrutivo, tanático, que impregnou boa parte das biografias de artistas a partir do séc. XIX. A este componente se dava o nome, na literatura francesa, de mal du siècle (mal do século), um mal-estar caracterizado por uma grande dificuldade de conviver com os valores burgueses da época e por um profundo sentimento melancólico e de desencanto diante da vida.

Em 1851, consciente do seu fim, Álvares de Azevedo passou a disparar inúmeras cartas à mãe, à irmã e aos amigos. Em toda a sua obra e na correspondência enviada a temática da morte era dominante. Uma sensibilidade aguda, exasperada diante das dificuldades da vida e do mundo que o cercava, dava-lhe uma sensação profunda de impotência. Aos vinte anos, tão desejoso da morte, a Kere o abateu no dia 25 de abril de 1852.

Um pouco de seus versos de despedida: Quando em meu peito rebentar-se a fibra,/ Que o espírito enlaça à dor vivente,/ Não derramem por mim nenhuma lágrima/ Em pálpebra demente./ E nem desfolhem na matéria impura/ A flor do vale que adormece ao vento:/ Não quero que uma nota de alegria/ Se cale por meu triste pensamento.

PSICOSTASIA
Os gregos chamaram de psicostasia um rito fúnebre praticado pelos egípcios que consistia na “pesagem da alma” (na realidade, do coração) para se determinar qual o destino do morto, vida eterna no reino do deus Osíris ou sua dissolução no nada (representada pela devoração de seu coração por um monstro). Os gregos, na sua mitologia, tinham o que chamaram de kerostasis, querostasia em português, palavra composta de ker, keros, gênio da morte, e stasis, ato de pesar.



HERMES  PRATICA  QUEROSTASIA  NA  PRESENÇA  DE  ZEUS  E  EOS

A querostasia era um rito encontrado só no mito. Na verdade, significava ele a confirmação do que o destino de um personagem, um herói invariavelmente, lhe reservava. O rito se cumpria por meio de uma balança, como na psicostasia egípcia. Sempre numa situação conflitual, “pesavam-se” os destinos , representados pelas Keres, de cada um dos personagens envolvidos. O prato que mais se inclinasse para o Hades decretaria a morte do seu “dono”.


AQUILES   E   HEITOR

O melhor exemplo da querostasia é encontrado na Ilíada; os

destinos de Heitor e de Aquiles são pesados, inclinando-se os pratos de ambos para o Hades, só que muito mais pesado se mostrou o prato do primeiro. Cumpria-se assim o destino do herói troiano, apesar de ser ele um grande guerreiro, idolatrado pelo povo, respeitador dos valores familiares como filho, esposo e pai. Aquiles, embora grande herói dos gregos, guerreiro excepcional também, era, ao contrário, irritado, frenético, violento, sendo sempre muito problemáticas as suas relações com os deuses, seus companheiros de armas e mulheres. Assim, na querostasia grega, Zeus, que convocara as Keres de cada herói, decide pela morte de Heitor, que desceu então ao Hades. 



TETIS   ( PETER  PAUL  RUBENS  1577 - 1640 )

Esta participação de Zeus na querostasia de Aquiles e Heitor explica-se: o primeiro era filho de Tetis, a nereida, a mais bela das filhas de Nereu, grande divindade marinha. Cortejada por Zeus e por Poseidon, um oráculo revelado por Têmis afirmava que o filho que nascesse dela se tornaria muito mais poderoso que o pai. Foi o que bastou para que os imortais procurassem para ela um marido mortal. Além do mais, Aquiles, embora muito “problemático”, criando sempre casos com mortais e imortais, fora muito útil ao Senhor do Olimpo. Ele participara ativamente da guerra de Troia como uma verdadeira máquina de guerra, matando enorme quantidade de troianos. A guerra de Troia, como se sabe, fora uma ideia aceita por Zeus para diminuir o excesso populacional da Terra. A Grande-Mãe Geia, sempre muito reverenciado por Zeus, vinha se queixando há muito de que o descontrolado crescimento demográfico naquela região do Mediterrâneo oriental vinha se tornando insuportável para ela.

PRÍAMO   E   HÉCUBA   ( PADOVANINO  1588 - 1649 )

Quanto a Heitor, Zeus também tinha as suas razões para agir como o fez, isto é, deixando a decisão para as Keres. Heitor era o filho mais velho de Príamo e de Hécuba, reis de Troia, considerado o primeiro, por muitos, apenas como seu pai putativo. Como herói, Heitor tinha um pai divino, Apolo, que sempre o protegeu nos embates por ele travados. Esta ascendência tornava Heitor um neto de Zeus e explica porque, apesar de Príamo ser o soberano, o verdadeiro governo da polis troiana era exercido por Heitor. De fato, era este herói que convocava e dirigia as assembleias no caso das decisões mais importantes e se encarregava de todos os negócios relacionados com a guerra em Troia.

HERMES
Nos demais casos, quando os personagens envolvidos não eram tão “importantes”, quem organizava a querostasia e decidia tudo era o deus Hermes. Ele pesava dois eidola de soldados em luta, cada um deles representando uma Kere. A presença do deus psicopompo está perfeitamente justificada nesta cerimônia por ser ele o condutor das almas, na forma de eidola, para o reino de Hades-Plutão.

As Harpias, como o seu nome indica, eram monstros arrebatadores.
HARPIA
Na língua grega, harpadzein quer dizer arrebatar, raptar, subjugar à força, violentar. No mito, eram filhas de Taumas e de Electra. O primeiro, cujo nome lembra maravilha, milagre, aquilo que provoca admiração, espanto, era filho de Pontos, divindade marinha primordial, e de Geia. Era, portanto, irmão de Nereu, Fórcis, Ceto e Euríbia, todos também ligados aos mares e aos oceanos.




A   GRANDE   ONDA   ( KATSUSHIKA   HOKUSAI  - 1760 - 1849 )

Taumas não teve praticamente participação no mito. Ele representava a espetaculosidade dos mares e oceanos, as ondas gigantescas no seu movimento de vai-e-vem. É do nome grego taumas que sai taumaturgia (milagre + trabalho) para designar um ramo das religiões que se dedicam ao levantamento e estudo dos prodígios e dos milagres. A taumaturgia, para os cristãos primitivos, se distinguia da teurgia, esta relacionada com os milagres de Cristo e dos apóstolos, enquanto aquela tinha a ver somente com a magia.

As Harpias eram três: Aelo, Occípite e Celeno, respectivamente a borrasca ou tempestade; a rápida de voo; e a obscura. Sempre representadas como monstros femininos horríveis, rosto muito envelhecido, corpo semelhante ao de abutres, garras, seios pendentes. Viviam no Hades e apareciam entre os mortais para, ávidas de sangue e de sexo, raptar jovens ou mesmo  crianças. Levavam-nos para vampirizá-los, para se apropriar da energia deles. Costumavam também frequentar banquetes, pousando nas iguarias, para apodrecer tudo.

A sua maneira mais regular de atuar, como grandes arrebatadoras, se concentrava naqueles que se tornavam vítimas de suas próprias paixões, da sua sensualidade desenfreada, como os “possuídos” de toda espécie por desejos de ter, de enriquecer, de comer, de gozar a vida de qualquer maneira. Tinham especial predileção pelos que se entregavam à Volúpia, os amigos dos deleites, os libidinosos, os philargykós, os que só amam o prazer. Onde há paixões desregradas, torturantes, ideias fixas, obsedantes, apegos de toda a espécie, elas atacam, sendo, por isso, grandes abastecedoras do Hades.

HARPAGON
( COMÉDIE  FRANÇAISE )
Molière, apelido de Jean-Baptiste Poquelin, genial homem do teatro francês do séc. XVIII, criou um dos mais fantásticos personagens da literatura teatral de todos os tempos com base nas Harpias. Refiro-me aqui a Harpagon (da raiz grega harpag, rapacidade), personagem central da comédia L´Avare (O Avarento). A paixão pelo dinheiro, que o devora, matou neste rico burguês qualquer sentimento de dignidade. Harpagon só pensa na riqueza e no dinheiro. 

Como agentes do mundo infernal, encontramos também as Górgonas, palavra que lembra em grego algo terrível, apavorante.
MEDUSA  ( MUSEU DE COLÔNIA )
No mito, elas eram três, Medusa, Steno e Euríale, filhas de duas divindades marinhas, Fórcis e Ceto, irmãos de Taumas, acima mencionado. A rigor, só Medusa (a que reina, a que domina, em grego) foi importante no mito. Ela vivia com as suas irmãs no extremo-ocidente, perto dos país das Hespérides. A imagem clássica da Medusa: cabeça cheia de serpentes, presas pontiagudas, mãos de bronze, o rosto como um esgar, sempre crispado convulsivamente.
PALAS   ATHENA
Transformava em pedra quem com ela trocasse olhares. Todos a temiam, inclusive os deuses. Apenas Poseidon ousou se aproximar dela, fazendo-a mãe de Crisaor, um gigante dourado, e de Pégaso, o famoso cavalo alado, símbolo da inspiração artística controlada.  O herói grego Perseu, auxiliado pelos deuses, matou a Medusa e a decapitou. Sua cabeça desde então passou a ornar a égide da deusa Palas Athena, que, com ela, como atributo mágico, pôs em fuga muitos de seus adversários. 

A Medusa, ao petrificar as suas vítimas, torna-se um símbolo da estagnação e, como tal, reflete a imagem de uma culpa pessoal, sempre de natureza paralisante, toda vez que o ser humano tem que romper com os seus atavismos, com os seus hábitos herdados, com o seu inconsciente pessoal na medida em que este inconsciente é modelado principalmente pelo ambiente familiar da infância. Perseu foi o herói que, no mito, representou de maneira exemplar, arquetipicamente, o ser humano que procura romper as ligações com esse mundo, fortemente marcado pela figura materna (Danae, no mito) e que precisa se preparar para assumir o controle de sua personalidade (livre-arbítrio). A história de Perseu nos revela que não é uma tarefa fácil alguém se tornar uma alma livre. Astrologicamente, nosso herói superou as chantagens da quarta casa (não se deixou petrificar pela culpa ao abandonar a mãe para realizar a sua efebia), ingressou na sétima ao se unir à princesa Andrômeda e assumiu finalmente o seu Meio-do-Céu ao matar o avô, conforme previsto em antiga sentença oracular.


ERÍNIAS
As Erínias (orinein), perseguir com furor), conhecidas como as Fúrias, divindades infernais, nasceram do sangue derramado de Urano quando de sua castração por seu filho Cronos. Munidas de chicotes, carregando tochas e uivando incessantemente elas perseguem os criminosos, sendo consideradas como agentes do Hades a serviço de Ananke. a Justiça Reparadora. Aladas, monstruosas, são encarregadas de recompor a ordem universal, percorrendo toda a Terra para atormentar os mortais culpados. 

Divindades infernais, as Erínias perseguem sem descanso os criminosos que, por suas ações nefastas, perturbaram a ordem pública e social. Muitas vezes, enviam punições coletivas para atingir uma região, uma cidade, sob a forma de epidemia ou catástrofe natural. No geral, porém, atacam o criminoso inspirando-lhe terríveis remorsos, um tremendo pavor de castigos, uma angústia sem fim. 

CLITEMNESTRA
Orestes, exemplificando, como assassino de sua mãe (Clitemnestra), foi o herói grego que não conseguiu escapar das Erínias. Elas podem, como no caso de Etéocles e Polinice, suscitar ódios inextinguíveis, o que levou os irmãos, filhos de Édipo e Jocasta, a uma mortal luta fratricida. Suas ações se estendem também naturalmente ao mundo infernal onde torturam os mortais culpados de impiedade e de perjúrio. Elas os agridem, os insultam e os chicoteiam sem cessar. As Erínias são, como se pode ver, instrumentos da punição divina, interiorizando-se sua ação, no ser humano, como culpa, remorso, produzindo a chamada consciência morbosa, que causa a doença e finalmente a morte.

No caso do arrependimento sincero do criminoso, dispondo-se ele, por longo tempo, a dar demonstrações explícitas desse sentimento através de atos concretos (pagamento de pesadas multas pecuniárias e de trabalho social desinteressado por longos anos), elas poderiam se transformar nas Eumênides, as Benfeitoras, ajudando-o a tranquilizar a sua consciência culpada, doente.

Uma das mais cruéis agentes do Hades era Hécate (etimologicamente, a que fere a distância), divindade infernal muito temida. No mito, era filha de Perses e de Astéria, ambos da raça dos titãs. Quando Zeus obteve o controle do universo, ela conservou os seus privilégios e suas prerrogativas anteriores. Era representada pelas três fases visíveis da Lua. Nas noites de Lua nova ela subia à superfície da terra. Suas aparições ocorriam nas encruzilhadas, lugar cuja tutela ela dividia com o deus Hermes, este na sua forma itifálica.

Esta forma de Hermes, como se sabe, vem da palavra grega herma, um pequeno monte de pedras que desde tempos pré-históricos era usado para sinalizar mudança nos caminhos. Este pequeno monte de pedras logo se transformou em pequenos pilares, pilastras, aos quais, depois, quando das elaborações mitológicas, foram acrescentadas cabeças do deus e um órgão fálico em ereção, uma clara indicação de que as encruzilhadas eram  lugares de fecundação.

Por causa de sua situação de cruzamento de caminhos, a encruzilhada simboliza um verdadeiro centro do mundo para quem nele se encontra, um lugar de mudanças de destinos. A encruzilhada é universalmente um lugar onde são colocadas pedras, erigidos obeliscos, esculturas, capelas, calvários etc., sempre com o sentido de passagem de um mundo a outro. Ligadas ao sobrenatural, é nas encruzilhadas que se produzem revelações e aparições, tanto boas como más, de gênios, fadas, santos, espíritos maléficos, fantasmas, animais monstruosos etc.


HÉCATE
O nome Hécate lembra em grego tanto fixação (empalação) como algo que nos atinge à distância, que nos fere sem explicação alguma, ao seu bel-prazer. Ela presidia com Hermes as encruzilhadas. Considerada a princípio como uma deusa dispensadora de benefícios, de riqueza, de talentos e vitórias, tornou-se aos poucos também maléfica.

Hécate favorecia aqueles que nas encruzilhadas procuravam mudar o seu destino, não ficando nelas imobilizados, indecisos, sem saber escolher. Nesse sentido, aos que nas encruzilhadas procuravam mudar conscientemente (vide Édipo), ela poderia favorecer, concedendo-lhes prosperidade material, eloquência nas assembleias, vitória nas batalhas, encher suas redes de peixes e fazer prosperar os rebanhos. 

Aqueles que não sabiam mudar, ela, sempre acompanhada de espectros, fantasmas e de animais que simbolizavam fertilidade (jumentas, cadelas, lobas etc.), nas noites de Lua nova, vinha para destruí-los, empalando-os simbolicamente. A empalação era uma antiga punição infligida a condenados; consistia em espetar-lhes pelo ânus um estaca, deixando-os dessa maneira fixados até a sua morte.

Hécate, aos poucos, se transformou numa divindade infernal, de caráter noturno, tornando-se deusa da magia, da imaginação, das alucinações, das aparições e dos terrores noturnos. Os gregos chamavam de hecateias os gigantescos fantasmas que apareciam nas festas realizadas em homenagem à deusa. Assimilada à Lua, Hécate tinha relação com os lobisomens e as feiticeiras em geral. Seus cultos se caracterizavam por sacrifícios sangrentos realizados nas encruzilhadas. 

Era igualmente nas encruzilhadas, por influência dos cultos de Hécate, que aconteciam as necromancias e que se matavam galinhas negras para invocar as forças diabólicas e com elas concluir algum pacto. As galinhas são símbolos de abundância por causa da grande quantidade de ovos que põem. Desde tempos pré-históricos, quando se sacrificava uma galinha, era costume romper a sua clavícula, fazendo-se um voto augural. Desde a alta Idade Média, a galinha, principalmente a negra, se distinguiu como um agente de ligação com as forças demoníacas. Segundo muitos demonólogos, o Diabo, através de uma galinha negra, costumava se fazer presente nos sabás (assembleia noturna das feiticeiras).

A encruzilhada, na origem, como seu nome indica, era uma
TRANSFORMAÇÃO DAS FEITICEIRAS
( GOYA , 1746 - 1828 )
intersecção de quatro caminhos (quadrivium). Ela se tornava o centro do mundo e da vida quando estes quatro caminhos eram considerados simbolicamente como os que conduziam aos quatro pontos cardeais. A encruzilhada sempre foi por isso considerada como um lugar carregado de energias sagradas onde o homem se encontra o seu destino. É preciso, pois, como se disse, honrar neles, adequadamente, Hermes e Hécate. É nas encruzilhadas também que pode o homem, fertilizando-se, isto é, escolhendo conscientemente, se desvencilhar das suas energias negativas. 

A encruzilhada, também chamada quadrifurcus, sempre foi um lugar de invocações e encantamentos para todos os povos. Lembre-se que, no Candomblé, a encruzilhada é de Exu, o grande orixá, “aquele que é preciso convocar para se fazer qualquer coisa”. Este “fazer qualquer coisa” é o “despacho de Exu”. Ele é o despachante. O despacho de Exu é a cerimônia inicial ou padê nos terreiros. Os negros costumam chamá-lo por isso de “O Homem das Encruzilhadas”. Exu está sempre nas encruzilhadas, no cruzamento de caminhos, ruas e estradas. Para obter o “despacho” dele é preciso honrá-lo, dando-lhe pipocas e farinha com azeite-de-dendê. 
Vermelho e negro, na Astrologia, recorde-se, são cores ligadas aos signos de Áries e de Escorpião, as cores de Exu no Candomblé. Exu recebe
EBÓ
como oferenda especial o chamado “ebó”, que é um “despacho”, com tripla finalidade: 1) fazer-se o mal a alguém; 2) pedir-se o bem; 3) agradecimento por uma “graça” recebida. O “ebó” é sempre colocado nas encruzilhadas. Quem faz um “ebó” não pode olhar para trás para vê-lo. No primeiro caso, o mal pedido se voltará na direção de quem o fez. Nos casos dois e três o “ebó” fracassará, gorará. No geral, “ebó toma o nome de feitiço, coisa-feita, muamba, isto é, despacho.

Hécate, como deusa lunar, chamada de Trivia, ctônica, invocada adequadamente, tem a ver com as germinações e os partos. Seus três rostos visíveis representam as três fases da evolução vital, aparecer, se manter e desaparecer. Hécate foi muito venerada na costa oriental grega, nas regiões que faziam limites com a Ásia Menor. Em Egina, era objeto de uma secreta veneração (Mistérios) e era muito invocada para combater a loucura. 

Quando de algum nascimento ou de alguma morte, no momento em que a alma se unia e se separava do corpo, Hécate estava sempre presente. Em tempos muito remotos, ela também vivia entre os túmulos, que ficavam junto das casas. Para apaziguar a deusa, ao final de todos os meses, se depositavam nas encruzilhadas os resíduos dos sacrifícios de purificação. 


CIRCE

Como divindade dos esconjuros espirituais e dos encantamentos,
MEDEIA
Hécate era a madrinha das magas Circe e Medeia. Com efeito, é de Hécate que dependem todos os aspectos espirituais e mágicos da noite. A face esquerda da deusa representava a Lua crescente, a da direita, a Lua minguante, e a do centro a Lua cheia, a que encarava os que a olhavam. A copa e o cântaro, símbolos característicos da deusa, significavam nos seus cultos as oferendas de líquidos aos mortos.