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terça-feira, 16 de março de 2021

O ABSURDO NA LITERATURA




DOSTOIÉVSKI
O irracionalismo entra na literatura de forma clara e precisa com Dostoievski. Quando Ivan Karamazov torna o partido dos homens e proclama a sua inocência: Minha indignação persistirá mesmo que eu esteja errado, iniciava-se um longo processo revolucionário ainda não encerrado na nossa literatura ocidental.

MEMÓRIAS
SUBTERRÂNEAS
Em primeiro lugar, havia que destruir ou, na pior das hipóteses, encontrar um correlativo para a razão; apagar as luzes acesas no século XVIII pelos iluministas franceses. Não é, pois, por acaso que o personagem das Memórias Subterrâneas diz haver no homem, ao lado do espírito construtor, o destruidor; a razão poderia ser uma boa coisa, mas era apenas a razão, que só satisfazia a capacidade humana de raciocinar na medida em que o desejo fosse a manifestação de toda vida humana, inclusive a própria razão e todas as inquietações possíveis. Entenda-se: era preciso destruir a razão dos séculos XVIII e XIX.

A situação da Europa do século XIX, principalmente nos anos posteriores a 1850, era confusa. Na Rússia, Dostoievski fala-nos profeticamente dos tempos que hão de vir através da lenda do Grande Inquisidor. Para isso, nos primeiros momentos, a vida tinha que deixar de ser uma ordem estabeleci da para tornar-se uma aventura. Lembremo-nos que o mês de janeiro de 1878 marca o nascimento do terrorismo russo, quando Vera Zasulitch, na véspera do processo dos populistas, mata o general Trepov, governador de são Petersburgo. Este acontecimento precipita uma longa série de atentados e repressões (tema aproveitado, entre outros, por Camus em Les Justes), pondo em jogo, para destruir totalmente, anos mais tarde, todos os valores de uma organização social. O czarismo, e tudo o que ele representava, não era mais a Civilização, eterna e universal, mas uma forma perecível como as outras.

UNAMUNO, 1926
A princípio, ligou-se o irracionalismo ao ateísmo. Depois, ao se deslocar pouco a pouco o eixo para o Ocidente, a atitude deixou de lado essa visão unilateral. A fome de imortalidade que possuía Unamuno não traduz, por acaso, em termos metafísicos e religiosos, as meditações dos personagens de Dostoievski? Unamuno, protagonista em carne viva de sua própria novela metafísica, mais interessante que os seus tipos novelescos, a insultar a razão e a sentir o nada como algo mais aterrador que o inferno: cochina razón... no me some to y me rebelo contra ella (Del sentimiento trágico de la vida).

BERNANOS 
E será que não poderíamos dizer o mesmo do Bernanos de Sob o sol de Satã, para quem tudo deve ser sempre recomeçado, de Graham Greene, de Gide? Aliás, neste ponto, é importante ressaltar que Unamuno, prefigurando já em grande parte certa estética e filosofia do absurdo, não seja lembrado pelos teóricos da corrente. Em especial, por Camus, que em Le Mythe de Sisyphe nos informa sobre antecessores colaterais e ignora este, o unamunesco, tão direto e próximo.

MALRAUX
Já em pleno século XX, entre as duas guerras mundiais, o tema do absurdo é retomado pelos escritores franceses: Malraux, Sartre e, principalmente, Camus. Muito embora saibamos que o autor de L'Etranger tenha negado a sua conexão com o existencialismo de Sartre, conforme entrevista concedida a Janine Depech em Les Nouvelles Littéraires e carta a Henry Troyat, publicada em La Nef, o certo é que há entre ambos pontos de contato, mais de perto entre certas passagens de Le Mythe de Sisyphe e La Nausée.

Mas se considerarmos apenas o plano literário, veremos que Camus criou um personagem, Calígula, cuja grandiosidade absurda não tem paralelo em nenhum outro do teatro sartreano.        


NIETZSCHE
A peça é, provavelmente, dentre as modernas,
aquela que mais próxima está, no que diz respeito aos cânones da tragédia, das regras definidas por Nietzsche, Calígula é o exemplo mais completo do que poderíamos chamar de teatro intelectual, não por falta de vibração humana, mas pela maneira de como a experiência anímica e vital se traduz em fórmulas mentais.

A VIDA DOS DOZE CÉSARES
Tematicamente, Camus não inventou nada. As brutalidades, os horrores e extravagâncias de Caio Calígula estão descri tas, há mais de vinte séculos, em Os Doze Cézares, de Suetônio. E ali esses ingredientes nos são oferecidos com maior abundância e crueza, pois que Camus, para escrever a sua peça, valeu-se somente dos traços do imperador que mais lhe convinham. Entretanto, aquilo que em Suetônio é simples informação, em Camus adquire um relevo único e uma característica dramática obsedante. Até aqui falei de um príncipe; agora falarei de um monstro, escreve Suetônio ao chegar a certa altura do seu relato. Neste momento, começa o drama.

Calígula é antes de tudo, antes de significar o desgosto pelos homens e pelo mundo (este mundo, diz ele, é insuportável como está feito. Necessita da lua ou da imortalidade, de alguma coisa que seja demente talvez, mas que não seja deste mundo) personifica certa angústia metafísica, o afã do absoluto, entendido como liberdade suprema. E por este caminho Calígula vai até o fim para chegar ao fundo: quando começa a falar, tudo parece que se quebra, as convenções são reduzidas a pedaços, as belas construções, a lógica. Não que esta lhe falte, ao contrário; Calígula mergulha no seu raciocínio. Crueldade, covardia e valor coexistem na sua personalidade, tão ousada e desesperadamente que até chegamos a pensar nos surrealistas, que, de certa forma, pretendiam realizar na ordem do conhecimento o que Calígula queria fazer no campo da ética.



ALBERT   CAMUS

Do mesmo modo, Le Malentendu, de Camus, representa uma expressão direta do absurdo, embora a importância literária desta peça seja inferior. O tema é atroz e vulgar, compreendendo tanto de Grand-guignol como de telegrama sensacionalista; uma variação brutal da parábola do filho pródigo.

A história é simples: mãe e irmã, donas de um hotel, não reconhecem seu filho e irmão, respectivamente, quando este retorna incógnito vinte anos depois; tratam-no como um viajante qualquer e depois o matam para roubar. Anedota "literária", construída mentalmente, composta com cuidado em todas as suas partes, da qual outro escritor, não obcecado como Camus pelo absurdo, retiraria certamente muito pouco proveito. E Camus nos dá, com sobriedade, linguagem simples, a ilustração mais perfeita desse universo descentrado, onde o equívoco o mal-entendido, é a regra e nada é reconhecido. Não nos esqueçamos que a peça foi escrita no inverno de 1942-1943: Europa de privações, de quedas, exílios e ilusões perdidas definitivamente.

Por sua vez, outros livros de Camus, como L' Etranger e La Peste, não são mais do que uma longa explanação sobre o absurdo, sobre a sensibilidade absurda que se encontra dispersa pelo século. Não importa que Camus, muito lucidamente, chame de "suicídio filosófico" a atitude existencial. Ele também foi queimado pela sua lava. Tratava-se para ele de saber se a vida deveria ter um sentido para ser vivida. Viver, acrescenta, é fazer viver o absurdo. Solução paradoxal, pirueta literária, evasão pela tangente? Não, pois que ele não temeu o abismo, mas tem consciência dele e isso o permite manter-se numa lúcida posição de vigília, já que, se o absurdo aniquila suas possibilidades de liberdade eterna, devolve e exalta, ao contrário, as de liberdade de ação.

Quando  Roquentin,  o  protagonista  de  La  Nausée,  tem  no jardim   público  a  "iluminação"  do  que  significa  existir,  seu solilóquio desemboca naturalmente no absurdo. 


E continuando faz uma série de digressões, considerando o absurdo como algo relativo no mundo dos homens, apesar do qual ele tivera, ao contemplar uma raiz nodosa, a experiência do absoluto, sinônimo do absurdo. Comprovação idêntica da de Camus em Le Mythe de Sisyphe, quando escreve que os homens também segregam o inumano em certas horas de lucidez.


 

Mas  será  nas  novelas  de  Kafka que  a  filosofia do absurdo encontrará a sua mais perfeita corporificação. Nenhuma das criações de Sartre ou Camus consegue superar o "viscoso" de A Metamorfose, a angústia suspensa de O Processo, nem o sentimento do inacessível de O Castelo.
Esses os escritores do absurdo, que chegaram ao fim, e possibilitaram a volta do homem: uma a uma as portas foram abertas, abriram-se todas e nada havia. Na nudez desértica da paisagem, colocaram indiretamente o problema da ação na história. Para certos críticos idealistas, a negação e o absurdo que pressupõe o pensamento de um Sartre, de um Camus ou de um Kafka não poderia levar senão ao desespero. Ao contrário, porém, pelo menos para os dois primeiros, cortada a esperança do absoluto, retornaram à terra, ou melhor, foram "condenados", porque dela ninguém escapa.


Artigo publicado no jornal A Tribuna, 15 de julho de 1962

sábado, 18 de julho de 2020

O NOUVEAU ROMAN, AINDA - 1





A partir da segunda metade do século XX, na França, um grupo de escritores pôs em questão o romance que então se fazia, o gênero literário mais apreciado pelo público leitor do país. Tendo se fixado a partir do século XVIII como gênero, o romance, no final do século XIX e no início do século XX, fora muito influenciado pela literatura psicológica, divulgada à época, incorporando-se nos textos publicados muitas referências sobre a vida interior dos personagens.  Daí seu nome, romance psicológico. Como características principais esse tipo de romance trouxe para o primeiro plano do interesse dos leitores a individualidade do sujeito ficcional com as suas sensações, emoções e pensamentos, a sua subjetividade, enfim. Isto acabou por significar, no geral, a substituição do social pelo psicológico. Passamos, por isso, a ter doentes mentais ao invés de criminosos e de assassinos. O protagonismo das consciências veio para o primeiro plano, passando elas a conduzir a voz narrativa nos enredos, atenuando-se bastante o interesse pela trama romanesca e a influência do social, do mundo externo, sobre os personagens. 

DOSTOIÉVSKI
(VASILY PEROV, 1834-1882)
Na história da literatura sabemos que o escritor russo Fiódor Dostoiévski é considerado como um dos precursores do romance psicológico. Em seus livros, como Memórias do subsolo e outros, o escritor mostra a experiência cotidiana dos seus personagem e, mesmo em meio a possíveis obscuridades quanto às suas vidas, o seu fluxo de consciência ficava sempre evidenciado pelo trabalho com a linguagem literária. Outro romance de Dostoiévski que merece destaque, neste particular, é, por exemplo, Crime e Castigo, que apresenta os meandros da subjetividade de alguém que comete um assassinato.


JAMES  JOYCE
No romance psicológico tudo se passa na mente dos personagens através da sua memória, dos seus devaneios, dos seus sonhos, utilizando-se, para que isso “aconteça”, dentre outras coisas, um recurso bastante explorado, posto em moda mais tarde com o nome de stream of consciousness (fluxo da consciência), por escritores anglo-saxões, sobretudo, magistralmente, por Joyce, através de Marion Bloom, um dos personagens mais importantes de seu romance Ulysses. A trama romanesca, com este recurso, ocorria na mente dos personagens, na apreensão do mundo exterior por ela. Nada, pois, da temporalidade a que os leitores estavam acostumados, de linearidade, dos suportes de tempo e espaço; apenas, no lugar, com destaque, monólogos interiores, oscilações mentais, impressões fugidias, lapsos, interferências, descontinuidade, bloqueios, sensações vagas...

O romance que os escritores começaram a publicar principalmente na França depois da década de 1930, contestavam, no seu todo, o que chamavam de convencionalismos do romance tradicional, inclusive quanto à questão estilística. Recusavam os personagens tradicionais, os enredos e muito mais. Alain Robbe-Grillet, além de romancista, um dos principais teóricos do grupo, que andou inclusive pelo Brasil a fazer palestras sobre o tema, que assistimos com grande interesse, colocava os “temas” do nouveau roman numa relação mais direta com as coisas do mundo.

ROBBE-GRILLET
Num livro importante, Pour um Nouveau Roman (reunião de palestras), Robbe-Grillet propôs uma visão nova do mundo exterior, das pessoas e dos objetos nele encontrados, uma visão mais pessoal, mais individualizada. Nada também de sistemas previamente determinados que servissem de modelo para os personagens. Por isso, não mais também o foco na trama, na ação ou nas ideias dos personagens, como no século XVIII, quando o romance passara a se firmar como gênero. Não se seguir a nova visão proposta, segundo Grillet, seria continuar a escrever romances à maneira de Balzac ou Zola. Os tempos agora eram outros, dizia ele. Novas responsabilidades, pois, trazer os escritores para mais perto de Stendhal ou de Flaubert e a partir daí tomar novos caminhos. No seu todo, procurar deixar de lado também aquilo que no chamado romance psicológico logo se esgotara, constituindo um dos seus vieses fundamentais, a perscrutação e a análise dos motivos íntimos das decisões ou das indecisões dos seus personagens. Uma espécie de onipotência que muitos escritores assumiam com relação a eles, onipotência da qual poucos tinham consciência.

JEAN   RICARDOU
No nouveau roman, dentre os seus principais nomes, destaque especial para Michel Butor (1926-2016), Marguerite Duras (1914-1996), Robert Pinget (1919-1997), Alain Robbe-Grillet (1922-2008), Nathalie Sarraute (1900-1999), Claude Simon (1913-2005) e Jean Ricardou (1932-2016). Individualmente, além de obras romanescas bastante interessantes, deixaram-nos eles também alguns ensaios teóricos importantes sobre o gênero: Nathalie Sarraute: L’Ère du soupçon (1956); Robbe-Grillet: Pour un nouveau roman (1956-1963); Butor: Essais sur le roman (1964); Ricardou: Problèmes du nouveau roman (1967) e Pour une théorie du nouveau roman (1971). 

Antes de ser uma tentativa de renovação formal, de estruturas, uma indagação acerca da palavra e da linguagem como muitos pretenderam, o chamado nouveau roman, para nós, foi uma resposta, ainda hoje não superada em muitos de seus propósitos, quanto às exigências de uma nova sensibilidade e, acima de tudo, muito mais, como uma peculiar instigação diante da evanescente e/ou  acomodada inteligência do leitor moderno do final do século XX e do início do século XXI. 

Os escritores apontados acima nunca formaram uma escola. Constituíram, isto sim, um grupo que, procurando a superação do romance tradicional, uniram-se individualmente para melhor expressar os pontos-de-vista que defendiam. Quando falamos em romance tradicional queremos aqui nos referir,  indo um pouco além do que se disse acima, a exercícios de estilo psicológicos de uma literatura (burguesa) cuja gratuidade acabou por se tornar exasperante à medida em que nos aproximávamos de meados do século XX.

NATHALIE  SARRAUTE 
Embora se assemelhassem, esses escritores conservaram características próprias e elementos profundamente pessoais: Nathalie Sarraute, sartreanamente, enfeixando situações; Butor jogando com as circunstâncias de tempo e lugar; Robbe-Grillet "geometrizando", Claude Simon introduzindo a fantástica técnica da "proliferação imóvel". À primeira vista frios e calculistas, possíveis criadores de personagens que se moviam entre o campo da demência e do automatismo, eles chocavam, sobretudo pelo rigor dos cenários que mostravam. Além disso, a par da pesquisa e da experiência formal, procuravam eliminar do romance a qualidade de divertissement, já que um de seus objetivos era a exclusão dos sentimentos que impediam a apreensão dos textos através de uma apreciação crítica consciente. O nouveau roman não pretendeu consequentemente a comunicação, mas a expressão; não mais  reduzir a ficção às emoções e aos apelos fáceis, rasos, que deturpavam o próprio romance.


PAVLOV
O romance psicológico moderno, cujo ponto de partida estava em Dostoiévski, parecia ter, depois de Proust e, mais tarde, com Joyce, esgotado as suas possibilidades. Os elementos geradores da crise, ou da destruição mesmo de que falamos, tinham as suas raízes bem fincadas na civilização mecânico-eletrônica que esmagava o homem moderno, nascida do triplo determinismo desvendado por Freud, Marx e Pavlov.

PROUST
Assim é que se Proust acreditou poder levar a sua capacidade de penetração até o extremo onde jazia a verdade real, a impressão absoluta e autêntica, o homem da segunda metade do século XX permaneceu estranho e indiferente a essa face revelada. Não havia extremo; a própria psicologia provava a ineficácia da introspecção clássica, fazendo o próprio homem  duvidar do valor absoluto dos processos de investigação que ela propunha. É que o homem moderno não era mais do que parecia exteriormente: os seus suportes estavam nas suas relações com a vida e não dentro dele.


MARIA  JUDITE  DE  CARVALHO
O que muitos dos escritores do nouveau noman fizeram na França, inclusive os que fora dela se ligaram movimento, como, por exemplo, a excepcional Maria Judite de Carvalho o fez em Portugal, foi (apesar de toda novidade do nouveau roman) o desenvolvimento de recursos, sugestões e práticas já apontadas por outros,

anteriormente, gente, já bem distante, como Joris-Karl Huysmans e, mais próxima, como  Kafka, Virginia Woolf, Sartre e Camus. O cinema, evidentemente, também não podia ficar fora desta aproximação. Uma vertente da 
nouvelle vague  cinematográfica (Cahiers Du Cinéma), através de Erich Rommer e, sobretudo, de Alain Resnais, com duas obras-primas (Hiroshima mon amour e O Último Ano em Marienbad), deve ser citada obrigatoriamente como parceira destacada do nouveau roman 

O nouveau roman  procurou  justamente refletir esse comportamento, retirando o homem do plano meramente psicológico ou patológico onde, no intuito de se preservar o status quo social, a cultura e a ciência quiseram colocá-lo, para restituí-lo à sua exata dimensão: expressão da crise global que começava a arrebentar os padrões ainda vigentes, porem já inadequados, para responderem às exigências e aos problemas com os quais a sociedade ia se defrontando. Por isso, a percepção dos escritores do nouveau roman de que eram fatores extra-pessoais, de natureza social, que condicionavam os seus personagens é bastante clara. Romances como Dans le labyrinthe, de Robbe-Grillet, parecem dispor o leitor a "vivenciar" a atitude dos personagens não no plano da identificação com as situações criadas, mas no da experiência e possíveis consequências do acontecimento.

KAFKA
Eis porque esse novo tipo de ficção desdenhou o “psicológico”. O jovem romance americano, tão próximo da mensagem de Kafka, já mostrara que regiões poderia o escritor alcançar se abandonasse o abuso da análise, velho vício burguês, que o debilitava. A análise separa. Descobrir analogias, que, ao contrário da análise, aproximam, unem. O estilo, por sua vez, deixando as contorções e as sutilezas a que o psicológico o levava, muito ganhou em sobriedade e dureza, retomando a sólida tradição clássica, a palavra certa no lugar certo.

Não tendo começo, fim ou centro, o nouveau roman escapava de duas leis fundamentais da física romanesca, a da progressão narrativa e a do binômio tempo-espaço, que caracterizavam o romance tradicional, o romance-literário. Daí os críticos franceses chamarem-no de mobile et stabile. A exposição é feita de maneira objetiva e contínua, numa série de encadeamentos que permitem a visão conjunta da realidade. Neste sentido, as obras do nouveau roman ainda parecem ser os grandes processos literários de nossa época. Os personagens não têm verdadeiramente história. Tal feito opera simbolicamente ao nos indicar que eles se desligaram ou procuram se desligar de uma situação dada em relação à qual sentem-se desarmados e perplexos. Este afastamento das normas vigentes reformula as questões porventura apresentadas, transpondo-as para o campo da expressão pessoal.

Falou-se muito que o nouveau roman queria despersonalizar o homem, desintegrá-lo. E vinham os exemplos: La Jalousie, La Route des Flandres, Dans le labyrinthe e, num estranho paralelo, Comment c'est., de Beckett. Além disso, falou-se que esse romance implicava em retrocesso, ao propor que o homem participasse do mundo, segundo a fórmula de Faulkner, como louco ou criança, sem motivações, ficando eliminadas as
FAULKNER
distâncias entre ambos. Crítica acomodada, nada mais, onde despontava o temor pelo novo. A causa desse modo de ver deve ser encontrada nos próprios romances de Claude Simon, de Nathalie Sarraute e nos demais, obviamente: nada de indagações sobre a impossibilidade de comunhão com o mundo, indagação que significa solidão para os românticos, perdição para os místicos e matéria trágica para os literatos em geral.

ANTOINE  GOLÉA
Quanto à linguagem, as críticas foram as mesmas. E mesma foi a causa. Convém, por essa razão, para não nos alongarmos nessa questão da linguagem, transcrever, o que se falou sobre Mallarmé no livro de Antoine Goléa, Rencontres avec Pierre Boulez: A linguagem não é o meio de comunicação corrente que nós conhecemos, não devendo servir para tornar inteligíveis, no sentido corrente do termo, as ideias, os sentimentos, as paixões. A linguagem é uma espécie de transubstanciação de noções comumente inteligíveis transformadas em valores de eternidade, levando-se em conta, no desprezo de todo o conteúdo anedótico e efêmero, a verdade humana dos mitos permanentes, os símbolos universalmente válidos. É o resultado do esforço mais original, mais pessoal para chegar a esta recriação do mundo segundo as leis da arte, que é o objetivo de todos os grandes artistas de todos os tempos e em todos os domínios . Goléa, é bom lembrar, foi, na França, nos tempos modernos, sob o ponto de vista musical (linguagem), um dos grandes defensores da obra de Debussy, Messiaen, Schoenberg e Boulez. 


ROBBE - GRILLET
Como acontece com o cinema contemporâneo, o nouveau roman procurou  a objetividade ao abordar o humano por intermédio das coisas e o mundo interior por meio do exterior. Desse modo, mesmo que o tema fosse tradicionalmente "romântico" como em La Jalousie, ele eliminava o romantismo. E, quanto à história, tratava-se de também, se possível, eliminá-la. Se as velhas tradições se esgotaram ou desgastaram, era tempo de extrair novas formas das palavras; era tempo de abolir a narrativa em que todos sabiam tudo a respeito de todos, e inventar novas histórias.