quinta-feira, 15 de outubro de 2015

A SEDUÇÃO - I


A   TENTAÇÃO   (TETO  CAPELA  SISTINA)
                                                                                       
Seduzir vem da raiz duc, conduzir, desviar, levar a algum lugar, afetar, movimentar. Educar, assim, será conduzir corretamente. Na Itália fascista, Mussolini, com base nesse sentido, assumiu o apelido de Duce, o condutor, o guia do povo italiano. A sedução pressupõe uma capitulação, uma subjugação, uma interferência na vontade do seduzido. A palavra toma também o sentido de solapar as bases de alguma coisa, uma implosão. Daí o sentido que sedução toma moralmente, de fazer cair em falta, de fazer errar, corromper. Nesta perspectiva, há algo de demoníaco na sedução. Seduzidos, nós nos desequilibramos, perdemos o rumo. As armas da sedução: a mentira, a falsidade, a ilusão, o engodo. Toda sedução começa por uma tentação, que é um impulso para a prática de alguma coisa censurável ou não recomendável. Tentação é comichão, instigação, prurido, forniquices ou fornicoques, como dizem os portugueses,  e, finalmente, sedução. 


DOLOS

Para os antigos gregos, Apate era a personificação da sedução, do engano, da malícia, do erro. Seu irmão chamava-se Dolos, que tipificava o procedimento fraudulento. Hoje, no mundo moderno, Dolos atua principalmente no Direito Civil, onde aparece como responsável por manobras e artifícios que se inspiram na má-fé para induzir alguém a praticar atos lesivos ou prejudiciais contra si mesmo. Ele atua também no Direito Penal como a deliberada demonstração de alguém de violar a lei, por ação ou omissão, com pleno conhecimento da criminalidade do que está fazendo.


PANDORA   E   EPIMETEU

Apate e Dolos foram enviados pelos deuses aos humanos como punição por Prometeu lhes ter entregue uma parcela do fogo celeste. Quem os trouxe, com outros males, foi Pandora, a Mulher, (etimologicamente, presente de todos), encerrados numa caixa, da qual escaparam, quando ela e Epimeteu a destamparam. Apate e Dolos são filhos de Nix e do Érebo, as Trevas Superiores e as Trevas Inferiores, respectivamente. Fora da esfera jurídica, onde têm presença marcante, Apate e Dolos integraram-se também, perfeitamente, ao cotidiano dos humanos.

Apate morava nas colinas de Arniso e tinha especial predileção
AFRODITE
pelos cretenses e fenícios, famosos comerciantes e navegadores do Egeu, que a ela recorriam bastante nos seus negócios. Apate, Fraus, entre os romanos, tinha horror de Aletheia (etimologicamente, não-esquecimento), a Verdade, que, entre os citados romanos, tomou o nome de Veritas, filha do deus Saturno. Apate gostava de andar na companhia de Peitho, a Persuasão, que fazia parte do séquito de Afrodite. Peitho era filha de Até, o Engano da Razão, mais conhecida pelo nome de Erro. Nas esferas intelectuais, Peitho, entretanto, costumava apresentar um lado mais positivo, ao se aproximar de Tikhe, o Acaso, e de Eunomia, a Boa Ordem.  

Sedução é palavra que lembra muito encanto, magia, feitiço, força irresistível que submete. Que poder é esse que se impõe a nós, que muitas vezes nos arrasta para onde não queremos ir? A sedução é tanto um padecer, um suportar, como um fazer. Quando algo nos seduz, colocamo-nos na situação de vítimas. Normalmente, a sedução nos impõe um estado de carência, de sofrimento. Seduzidos, precisamos conquistar, obter aquilo que nos seduziu. Ficamos sempre presos a uma situação mais ou menos dolorosa. Tornamo-nos vítimas (vítima vem de victus, condição do animal levado para o sacrifício). Padecemos, sofremos, se não encontramos um meio de sair do sofrimento.  

Quando nos fixamos um pouco mais sobre o tema, constatamos, em muitos casos (para não dizer na maioria deles, talvez) que todo sedutor é, no fundo, um seduzido. Ou, de outra maneira: nem todo seduzido é um sedutor, pelo menos conscientemente. Na chamada sedução ativa, quando assumimos o papel do sedutor, é preciso colocar antes a pergunta: o que nos moveu em direção da “vítima”? Tomemos o caso de D. Juan, Don Giovanni, na ópera de Mozart. Criado por Tirso de Molina (1583-1648), D. Juan Tenório é, na literatura ocidental, o patrono dos sedutores-seduzidos, como está no El Burlador de Sevilla


FILME   DE   JOSEPH    LOSEY

Quando D.Juan se põe em ação para trabalhar (a sedução é um ofício para ele), ele está sempre respondendo a uma sedução experimentada antes. No caso de D. Juan, o que o seduz é o odor de saias (odor di femina), como ele apregoa; basta este odor para lhe causar uma pressão ansiosa, dolorosa, inquietante. Instala-se nele, premente, o desejo, uma falta que precisa ser satisfeita. A sedução do sedutor é um poder que faz acontecer, que faz surgir algo, que pode mover, que pode mudar as coisas.  Seduzido, D. Giovanni vai agir.

Por outro lado, sofrida, a sedução é um padecer, um suportar, vivido passivamente. O seduzido fica na dependência do outro. Sua determinação vem daquele que o seduziu. É o caso, por exemplo, da relação entre o professor Immanuel Rath (Emil Jennings) e Lola (Marlene Dietrich), no filme O Anjo Azul, um clássico no gênero, dirigido pelo grande Joseph Sternberg, com base numa história de Heinrich Mann. Vitimado, o digno professor ficou inteiramente à mercê de Lola.

Muitas vezes, este padecer tanto dá prazer como repugna, tanto dá medo, como é desejado. Numa situação dessas, lutamos contra essa força ou criamos condições, colaboramos, para que o sedutor se aposse de nós? Tornamo-nos alvo, objeto, troféu? Contribuímos para isso? Somos vítimas inocentes? Ou, no fundo, desejamos inconscientemente a sedução?

Tomemos, por exemplo, o caso de Herculano, da peça Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues. Ele é um pio cristão, casto, como toda a sua família. Herculano é viúvo, misógino, vive com tias velhas e com um filho que cultua a memória da mãe edipicamente. Lá para as tantas, é empurrado pelo maquiavelismo
TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA
do irmão nos braços da prostituta Geni. Esse encontro com Geni transforma totalmente a vida de Herculano: a falecida, a santa mulher vira um bucho, uma chata. De súbito, Herculano cai de cabeça na devassidão. Torna-se um crápula. O filho, que era um carola militante, acaba na prisão, onde é violentado sexualmente por um bandido boliviano de quem se tornará amante. Geni, a sedução, sensual, voluptuosa, bonita, é o tormento de Herculano, um querer não querer, um tormento do qual ele não sabe como fugir ou não quer. Ela, por sua vez, como Fedra, ama o filho de Herculano.

Foi Platão, no seu diálogo O Simpósio (O Banquete), quem nos deu uma ideia

dessa dialética, ao nos fixar, pelas palavras de Sócrates, a origem do deus Eros, o amor, o desejo, Cupido para os romanos. Etimologicamente, Eros vem de palavras que lembram abrasar, queimar, arder. Platão diz que Eros é filho de Penia (pobreza, carência, falta) e de Poros (artifício, expediente). É uma carência que procura através de um expediente atingir sua plenitude, a sua satisfação. Os poetas consideram muitas vezes o amor como um pedinte, que vive na pobreza, que mendiga, que dorme na soleira das portas, e que, não correspondido, faz definhar e pode também causar a morte. Sua satisfação dependerá de nossa habilidade (Poros) para de chegar ao ser ou ao objeto amado.



EROS

As flechas de Eros são o símbolo dessa invasão. Eros é cego, atira suas flechas a esmo, mas seu poder é absoluto. Às vezes vem como guerreiro, usa capacete, é agressivo, montado em carneiros, leões, centauros, símbolos do fogo. Noutras vezes, vem com uma coroa de rosas, cantando, tocando lira. É o Eros cantor, músico, que produz encantamento, sortilégio, algo mágico (thelksis). Nesta figuração de cantor e músico, torna-se Eros o modelo do caçador clássico, invencível; suas flechas têm um veneno contra o qual não há antídoto; é um deus temido por deuses e mortais. As rosas vermelhas, coloridas pelo sangue de Adônis, são símbolos do amor, neste caso. Já a lira aparece como símbolo da harmonia cósmica. Fazer vibrar a lira é fazer vibrar o mundo. Muitas vezes, Eros vem com perfumes que ativam os sentidos, que provocam o aparecimento de imagens, criando climas e atmosferas. Esse é o Eros sedutor, que não se importa com aqueles a quem seduz. Esse tipo de sedução é vivido muitas vezes como rapto, violência, estupro. Nossos corpos, nosso pensamento, nossa vontade, tudo é arrastado por essa força que nos faz viver no sofrimento e no prazer que traz esse sofrimento. Todos os nossos pontos de referência são destruídos quando esse amor-paixão nos toma porque percebemos que a nossa vida está nas mãos de outra pessoa. Abandonamo-nos a ela e a tememos ao mesmo tempo. A outra pessoa passa a ser tudo para nós, céu e inferno. Tanto o é que nos perguntamos como podemos viver sem ela. É aqui que o Amor e a Morte se igualam.

Há casos especiais em que o amor-paixão se torna recíproco. A sedução é mútua. Nesse caso, temos a faísca do divino nos dois parceiros. A vida se ilumina, envolvida por uma fulguração que antecipa, de certo modo, a fusão com o grande Todo. Perdem-se os parceiros um no outro. Esse tipo de amor traz uma carga tamanha de subversão para os padrões da normalidade do mundo que, no geral, ele termina em tragédia, muitas vezes em morte. Talvez só a experiência mística dele se aproxime. Aliás, já se disse que toda paixão é, no fundo, um desejo de autoaniquilação. A literatura, as canções, sobretudo as canções, trazem-nos exemplos desse tipo de amor. Vida e morte.   

Esta união das duas imagens que se excluem: amor e morte, silêncio e eloquência, amargor e doçura, deu na literatura belos versos, principalmente na lírica da Idade Média e dos séculos XVI e XVII. Essa união de opostos tem na Retórica o nome de oxímoro. Na poesia moderna, Baudelaire e Fernando Pessoa, por exemplo, sempre demonstraram muito interesse por essa figura de Retórica. Mas quem melhor a utilizou foi Camões, imbatível até hoje, como sempre perfeito, quando pensamos num exemplo:

Amor é fogo que arde sem se ver;           


É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder…

Boa parte da literatura mística do oriente e do ocidente se inscreve nessa tendência de ligar o amor ao sofrimento, como ferida e mesmo como autoaniquilação.

San Juan de la Cruz (séc. XVI), em Lâmpadas de Fogo

Oh! Suave Cautério!                       
SAN JUAN DE LA CRUZ
Oh! Regalada chaga!
Oh! Branda mão!
Oh! Toque delicado!
Que a vida eterna sabe,
E paga toda a dívida!
Matando, a morte em vida me hás trocado.


Frei Patrício Scaldini, carmelita descalço, que se dedicou à divulgação da obra de San Juan de la Cruz, nos fala assim da sedução mística na introdução de seu livro sobre o chamado “Poeta de Deus”: A experiência mística é beber o Amado, tornar-se o Amado. No mundo de hoje não há espaço para uma contemplação intimista, para uma espiritualidade fechada, escondida sob uma redoma de vidro e incapaz de gerar pessoas prontas para lançar-se na gloriosa empresa de conquistar e dar a vida.

É de Mirabai, nascida na Índia, em 1498, de família Rajput, perto de Ajmer, educada pelo avô, no palácio de Merta (cidade-fortaleza), outro refinado exemplo dessa figura de Retórica que acolhemos aqui com muito prazer. Cultuando Krishna, avatar de Vishnu, sonhava casar-se com o deus, sua grande devoção. Casou-se em 1516 com um nobre. Não teve filhos, sempre se colocando como virgem nos seus poemas. Morreu em 1546. Seus últimos anos de vida foram passados em meio a perseguições políticas. Cheia de dúvidas, desligou-se dos seus valores de casta, retirou-se, procurando uma vida ascética. Alguns aproximam Mirabai de Mestre Eckart (dominicano e teólogo alemão, séculos XIII e XIV, 1260-1327). 

Uma canção de Mirabai:

Oh, meu companheiro,
Estranho é o comportamento dos meus olhos,
Tua doce figura introduziu-se em minha mente
E nela faz caminho para meu coração
Há quanto tempo estava em minha casa, contemplando a estrada?
Minha vida depende de Shyan, o Bem-amado.
Ele é a erva que me permite viver.
Mira tornou-se propriedade pessoal de Giridhara: 
Dizem que ela enlouqueceu.

Talvez a melhor maneira de entendermos o mecanismo da sedução esteja na Alquimia, mais exatamente na Solutio (dissolução), operação alquímica ligada à água. Este elemento, sob o ponto de vista das qualidades primitivas, se compõe pela união do frio e do úmido, o primeiro favorecendo a penetração, a receptividade, e a outro a interiorização. Sedução e solutio estão sempre ligadas à água, à umidade, pois é essa qualidade que favorece a invasão, a penetração e a dissolução das formas. Não foi por acaso que Afrodite, a deusa do amor, nasceu na água. 

No jogo da sedução, se aquele que seduz é maior, mais poderoso, que o seduzido, ele sempre acabará se impondo a este, afetando-o mais, dominando-o. Comuns estes casos nas conversões religiosas, filosóficas e políticas, principalmente. Este tipo de sedução leva o seduzido a se dissolver num grupo, numa seita. Há muitas vezes até perda do nome, afastamento do meio familiar, rompimento com relação a todas as ligações anteriores, amigos, grupos de referência etc. Não é por acaso que na Psicanálise banhos, chuvas, orvalho, imersões, inundações, dilúvio, quedas d’água são símbolos de dissolução quando aparecem em sonhos, podendo anunciar que estamos prontos para mudanças e transformações. Nessa perspectiva é que a vida humana, com seus desejos, seus sentimentos e emoções, é figurada por um rio que atravessa a terra e se lança no mar, representando este a imensidão misteriosa em direção da qual ela se encaminha e da qual ela saiu. Banhos, em sonhos, indicam, por isso, uma necessidade de regeneração, de esquecimento do passado, de deixarmos para trás alguma coisa em nossa vida. Inundações, por outro lado, poderão representar a perigosa invasão de incontroláveis e catastróficos sentimentos. É pelas mesmas razões expostas que as águas submarinas têm relação com a vida subconsciente e que águas geladas (geleiras e glaciares) simbolizam em alto grau a estagnação psíquica nas suas conhecidas expressões de ideias fixas, manias, obsessões e compulsões.

BAUDELAIRE

Há um poema de Baudelaire, Hino à Beleza, em que se descreve essa situação. O poeta é seduzido pela Beleza: 

Vens do céu profundo ou sois do abismo        
Oh, beleza. Teu olhar, infernal e divino,
Verte confusamente o bem e o crime
E podemos, por isso, comparar-te ao vinho.

Conténs em teu olhar o poente e a aurora
Espalhas perfumes como uma noite tempestuosa
Teus beijos são filtro e tua boca uma ânfora
que tornam o herói covarde e a criança corajosa.

Que venhas do céu ou do inferno, pouco importa,
oh, Beleza! Monstro enorme, assustador, ingênuo
se teus olhos, teu sorriso, teu pé me abrem a porta
de um infinito que amo e jamais conheci!

De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou sereia,
que importa se tornas – fada de olhos aveludados,
ritmo, perfume, clarão, ó minha única Rainha!
se tornas o universo menos horrível e os instantes menos pesados?

Toda a sedução é uma espécie de capitulação. Um menosprezo de nossa autoridade, de nossos direitos, um deboche, muitas vezes, um achincalhe à nossa personalidade. Uma rendição e uma redução ao mesmo tempo. Perdemos, com a invasão sedutora, a nossa liberdade, as nossas prerrogativas, os nossos direitos. Ficamos à mercê de algo mais forte, impotentes, diante desse algo que se impõe, que pode nos horrorizar, mas que, no fundo, desejamos. Um querer não querendo. Sucumbimos, morremos, felizes.

Nos Cancioneiros portugueses do pré-renascimento, séculos XIII a XV, encontramos esse tema explorado. Dois exemplos: o primeiro de João Roiz de Castelo Branco e o segundo de Luís Silveira:

CANTIGA SUA PARTINDO-SE
                                                                        
Senhora, partem tão tristes                 
meus olhos por vós, meu bem,  
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,                             
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida;

Partem tão tristes, os tristes,
tão fora de esperar bem
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

                 
CANTIGA

Senhora, pois, que folgais
Com meu mal, não me mateis;
Porque quanto mais alongais minha vida, tanto mais
Vossa vontade fareis.

E olhai, se me acabais,
Que nunca me mais tereis,
Inda que me desejeis,
Para m´outra vez matardes.
Mas já sei o que cuidais,
e de mim o conheceis:
Confiais que, se de morto mandais que torne, 
que m´achareis.