sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

TOURO (1)

                             
                      


A primeira divindade que os egípcios associaram a uma constelação nos céus foi Osíris, ligando-o à constelação heliacal de Orion. Quando Orion deixou de  desempenhar esta função, tivemos, no mito, a "morte" de Osíris,  que, descendo ao Outro
ESTRELAS  DE  TOURO
Lado, foi governar o mundo dos mortos. O equinócio da primavera foi deslocado então para as estrelas de Touro, por volta de 4.500 aC, assumindo Horus, filho de Osíris, a “titularidade” da nova constelação heliacal, Touro. Chegava-se à era cósmica de Touro, razão pela qual, durante esse período, muitas divindades tomarão a forma taurina em várias civilizações.



APIS
Considerado na Pérsia como um dos primeiros seres criados, associado na antiguidade persa ao deus Mitra e ao deus Apis no Egito, o touro foi sempre um animal usado para representar a fecundidade de forma anárquica, tempestuosa por vezes. Objeto de culto na Índia, era designado o animal pelos termos sânscritos vrisha ou vrishabha, nome pelo qual a Astrologia hindu (Jyotish) designava o signo de Touro.

No primeiro livro dos Vedas, o Rig Veda, Rudra, o Terrível, que muge como um touro bravio, seu símbolo, é a divindade cujo sêmen fertiliza a terra. Violento, ele a fecunda através de
RIG VEDA
tempestades, liberando os seus violentos filhos, os Maruts ou Rudras, que trazem raios e relâmpagos, quando dos aguaceiros que inundam tudo, na primavera. Além de Rudra, o touro é também símbolo de Indra, este considerado como força que traz o calor (é um deus ligado ao quente, como qualidade primitiva, mais solar, portanto), que proporciona o aquecimento ideal do elemento líquido para a necessária manifestação da vida. 

SHIVA   E   NANDI
O touro aparece na Índia ainda associado ao deus Shiva, a terceira pessoa da trimurti védica, sendo Brahma e Vishnu as duas outras pessoas. Shiva representa o aspecto destruidor, transformador, do mundo material. Quando ele vem nessa forma, aparece sempre montado num touro branco chamado Nandi e traz na mão um tridente (trishula), símbolo da dissolução cósmica. Lembremos que o tridente, nessa função de representar a solutio  universal, é, na mitologia grega, do deus Poseidon, deus do elemento líquido, também muitas vezes representado por um touro. 

Possui Shiva inúmeros poderes e sua autoridade está fixada na grande quantidade de epítetos que tem. É representado comumente por uma figura humana, escura, azulada, mergulhada em grande concentração; possui um terceiro olho no meio da testa, um pouco
LINGAM   E   YONE
acima das sobrancelhas, através do qual emite relâmpagos e raios, que tanto lembram onisciência como castigo e punição. Outros símbolos seus são o lingam, uma coluna de pedra, imagem do fogo divino como órgão fálico, colocada dentro de um círculo, também de pedra,
SHIVA  NATARAJA
chamado yone, símbolo do órgão sexual feminino. Por essa razão, Shiva é representado comumente sob a forma andrógina. Com o nome de Shiva Nataraja é o deus da dança, do movimento cósmico, dos átomos. Vem dentro de um círculo de fogo, de onde exerce o seu poder de destruidor dos mundos e de sua renovação.


Vrishabha é o nome do signo de Touro na Astrologia hindu, onde representa o suporte do mundo manifesto. Os touros, tanto na índia como em outras culturas, são cosmóforos, animais que, como a tartaruga, por exemplo, são usados para simbolizar a criação
VRISHABHA
material, o seu sustentáculo. Neste sentido o touro é visto como um centro imóvel que põe em movimento a roda cósmica. No templo de Salomão, entre os judeus, por exemplo, temos os touros com esta mesma função. Doze ao todo, distribuídos em quatro trindades nas quatro faces do edifício, cada uma delas olhando para um ponto cardeal. Nesse entendimento, o templo deve ser um reflexo do mundo divino na terra, uma réplica terrestre dos arquétipos celestes. O touro se solidariza, nessas representações, assim tanto teológica como cosmologicamente. 






Entre os assírios e babilônicos, o touro era representado sob uma forma selênica e solar ao mesmo tempo, uma união da terra e do
TOURO   ALADO
céu. Eram os famosos touros alados, gênios que viviam imediatamente abaixo dos deuses, que desempenhavam uma função protetora dos humanos, defendendo-os contra as potências maléficas. Eram os portadores dos sacrifícios e oferendas aos deuses e deles traziam as dádivas e os dons divinos. Guardavam os templos, representados como touros alados com a cabeça humana. Além desta função, eles também se misturavam com os humanos, participando de seu cotidiano, seguindo-os pelas ruas, acompanhando-os em suas viagens ou quando iam para a guerra, sempre invisíveis, mas presentes.  

Os touros, desde o período neolítico, ou mesmo antes, sempre foram utilizados também para representar as manifestações tempestuosas do céu e, como tal,  emblematizavam as divindades atmosféricas. Considerado sempre um animal lunar, mas às vezes solar, o touro já na antiga Babilônia e no Egito assumia essa ligação. Sin, deus lunar da Mesopotâmia, tinha a forma taurina numa de suas representações. O deus Mitra, divindade iraniana, é idealizado como um jovem herói que corta o pescoço de um touro, cujo sangue dará origem ao mundo vegetal e animal. 


TAUROBOLIUM
Um culto da Ásia Menor, introduzido em Roma no séc. II dC, enriqueceu outro culto anterior, também oriental, já fixado no Lácio, de um rito até então desconhecido, o taurobolium. Era uma iniciação pelo batismo do sangue do animal. Aquele que se submetia a tal iniciação se transformava num renatus in aeternum, ou seja, nascido para uma nova vida para toda a eternidade. O sangue do touro que escorria sobre o iniciado não só lhe transmitia um poder biológico como lhe dava acesso a uma vida espiritual e imortal. 

Entre os fenícios, a base da sua mitologia está centrada no culto dos elementos e dos fenômenos naturais. Todos os seres divinos são antropomorfizados e colocados numa hierarquia rigorosa. El, o grande deus solar, honrado por todos os semitas ocidentais, está no topo do panteão, Ele governa o país de Canaã. É dele que vem a fertilidade da terra. Honrado sob diversas formas, é chamado de O Touro-El.

VACA   SAGRADA
Já a vaca, em virtude do leite e de seus derivados, a manteiga, os cremes e os queijos, é símbolo da abundância e da fecundidade. Daí o caráter sagrado, feminino, que adquire. Particularmente honrada na Índia, a vaca é uma representação celeste viva. Toda mulher, na índia, das camadas mais baixas da população às mais elevadas, que quer se tornar mãe, deve se sentar sobre a pele do animal. Os hindus como os persas utilizavam a urina de vaca em cerimônias de purificação e seus excrementos tinham várias aplicações, como, por exemplo, servir, depois de secos, misturados ao capim, como carvão ou placas para a construção de paredes ou, ainda, ao natural, como proteção contra maus espíritos. 

O touro não é apenas um símbolo animal dominante, mas possui também um significado mais profundo enquanto animal do
ZARATUSTRA
sacrifício. No ritual e na iconografia tem representado ora o Sol, ora Lua, a terra ou o céu, a chuva ou o calor, a fecundidade feminina ou o ardor masculino, a matriarca e o patriarca. Como símbolo da morte, era uma figura central no mitraísmo, um culto persa anterior a Zaratustra, assumido e difundido por todo o império romano, como um rival do cristianismo.  

TIRTHANKARA
Na arte rupestre primitiva, o touro era secundado pelo cavalo como a imagem mais frequentemente pintada da energia vital. Aparece o touro em todos os continentes como símbolo do poder divino. Na Índia, o primeiro dos tirthankaras, Mahavira, da seita jainista, era representado por um touro dourado. Tirthankara, como sabemos, em sânscrito, quer dizer aquele que fez a travessia (do rio), aquele que, no Hinduísmo, se desligou, atingiu moksha, um liberto em vida.

Desde a pré-história, os atributos físicos do touro estão subjacentes ao seu simbolismo. Os seus chifres estão ligados à Lua crescente, a sua corpulência absoluta sugere um suporte para o mundo material, tanto na tradição védica como islâmica. O seu sêmen prolífico, nessa tradição, é armazenado pela Lua e sua energia mugidora característica e o balanço dos seus chifres está muito ligado a trovões e terremotos, sobretudo em Creta. 


PRINCESA   EUROPA  ( REMBRANDT )

Os gregos se apossaram simbolicamente do animal para explicar o nascimento da civilização cretense.  A história começa quando Zeus, sob a forma de um maravilhoso  touro branco raptou a princesa Europa, levando-a, pelo mar, da Fenícia para ilha que futuramente tomaria o nome de Creta. Lá, perto de Gortina, numa praia cheia de plátanos, adquirindo uma forma humana, fez da lindíssima princesa a sua mulher. Dessa relação nasceram três filhos, Minos, Radamanto e Sárpedon. Mais tarde, Zeus fez com que Europa desposasse Asterion, rei da ilha, que adotou os filhos de Europa. Para que o acontecimento fosse lembrado para sempre Zeus colocou a sua forma taurina nos céus, logo depois da constelação do carneiro. 





A civilização que se desenvolveu na ilha é tipicamente um produto da era de Touro. Creta, sempre, desde as suas origens, foi uma ginecocracia, um poder feminino, apesar de governada por reis. No mito, este rei era Minos, nome que, segundo parece, é mais um título dinástico, como césar, czar, do que um nome próprio. A posição da ilha, equidistante de três continentes, favoreceu o nascimento de uma civilização poderosa e original, que floresceu na era de Touro, mais ou menos entre 4.000 a 2.000 aC, governada por uma talassocracia. Deu-se o nome de minoana a essa civilização, que não possuía templos, mas cujas cerimônias religiosas eram celebradas ao ar livre, nas florestas e nas montanhas, por sacerdotisas.


CNOSSOS
A história da brilhante civilização minoana tem por centro, além de outras edificações, o palácio real, chamado de O Labirinto. No ano de 1.100 aC, Creta foi integrada definitivamente à Grécia continental, depois das invasões aqueias e dóricas, perdendo a sua condição de nação independente. Muito contribuiu também para a decadência cretense alguns abalos sísmicos que se verificaram ao longo do período, dois deles devastadores, um em 1.700 e outro em 1.500 aC. 

A Creta minoana tinha como capital Cnossos e era famosa pela sua cerâmica, pelos seus olivais, pelos seus campos de cereais e vinhedos. Mantinha Creta contactos comerciais com todo o Mediterrâneo oriental, Egito e Oriente-Médio. A arquitetura das suas principais cidades, Cnossos, Phaestos, Mália e Zakros era
LABRYS
excepcional, com serviços públicos eficientes e obras de arte de refinado gosto. Esculturas e pinturas murais distribuíam-se ao longo das vias públicas. As pinturas, de linhas puras, evocavam um culto enigmático marcado pelas figuras de um duplo machado cruzado (labrys) e de chifres de touro, além de muitas cenas de tauromaquia ritual e de acrobacias praticadas em corridas de touro. As sacerdotisas figuram também nessa decoração, muito maquiadas, de peito nu, algumas, e elegantemente vestidas.

Miticamente, após a morte de Asterion, que se casara com Europa, reinou na ilha Minos, o primogênito de Europa e de Zeus. Os outros dois irmãos, contudo, resolveram disputar o trono. Minos
MINOTAURO
pediu um sinal aos deuses no sentido de que eles o confirmassem como único soberano da ilha. Poseidon  enviou, pelo mar um sinal divino, na forma de um maravilhoso touro, com a condição de que o animal deveria em seguida ser sacrificado. Minos, já consagrado como indiscutível soberano, desejou todavia conservar o extraordinário animal para utilizá-lo como reprodutor, de modo a aumentar ainda mais o seu já imenso rebanho. 

Poseidon, irritadíssimo, fez com que Pasífae, mulher de Minos, a rainha de Creta, viesse a sentir pelo animal uma incestuosa paixão. Enlouquecida por um furor erótico incontrolável, ela pediu a Dédalo, o famoso inventor grego, então exilado na ilha, que resolvesse o seu problema. Dédalo criou um simulacro perfeito de novilha, no qual a rainha entrou, consumando assim o seu tresloucado intento sexual. Dessa união, nasceu um monstro, o Minotauro. Envergonhados, os soberanos decidiram esconder o monstro.  Para esse fim, chamaram novamente Dédalo, que construiu um imenso palácio em Cnossos, capital da ilha. Deram a esse palácio o nome de Labirinto; com um enorme emaranhado de quartos, salas subterrâneas, corredores, ninguém, a não ser o seu construtor, poderia dele sair se nele entrasse,  Minos mandou então que o monstro, que se alimentava de carne humana, nele fosse encerrado, nos seus subterrâneos mais profundos. 

PASÍFAE  E  MINOTAURO
A ira divina, porém, não ficou restrita a esse triste episódio. Depois de ter mantido relações com Pasífae, o touro divino foi enlouquecido por Poseidon; livrando-se do cercado em que o haviam colocado, pôs-se o animal a destruir todas as plantações da ilha, enchendo de terror os seus habitantes. O segundo trabalho de Hércules (veja-o neste blog) será exatamente o de dominar o enlouquecido animal e levá-lo para Euristeu, rei de Micenas, que, conforme sentença oracular, determinava os trabalhos que o herói deveria realizar para se purificar. 


PINTURA  EM  CNOSSOS
Os gregos atenienses, à época destes acontecimentos, haviam sido submetidos pelos cretenses, a eles ficando obrigados a pagar um pesado tributo por meio do qual o alimento do Minotauro era obtido: deviam enviar anualmente à ilha jovens atenienses para saciar a fome do monstro. Assumindo o trono de Atenas, Teseu, filho de Egeu, resolveu dar um basta a tão horrível submissão. Dirigiu-se a Creta e declarou que estava disposto a enfrentar o monstro, uma prova a que Minos submetia todos os que pretendessem  libertar Atenas do jugo cretense. 


Auxiliado pela princesa Ariadne, que por ele se apaixonou à primeira vista, Teseu dela recebeu, sem que ninguém soubesse, o famoso fio com o qual poderia sair do Labirinto se conseguisse matar o Monstro. O auxílio de Ariadne estava porém condicionado: Teseu deveria, se vencedor, levá-la consigo e com ela se casar em Atenas. De início, as coisas correram de acordo com o combinado. Morto o monstro, Teseu e Ariadne embarcam juntos com destino ao Pireu, porto de Atenas. No meio do caminho fizeram uma parada na ilha de Naxos, onde passaram a noite. Pela manhã, Ariadne procurou Teseu. Ao longe, bem distante da praia, o barco do herói 
ARIADNE   E   DIONISO  ( TINTORETTO )
ateniense era quase um ponto invisível no horizonte. Abandonada e triste, a princesa foi encontrada na ilha pelo deus Dioniso, que voltava de seu périplo à Ásia aonde fora propagar o seu culto. Uniram-se e dessa união nasceram quatro filhos. Como presente de núpcias, o deus lhe deu um diadema, depois transformado em constelação (vide, neste blog, no item constelações boreais, Corona Borealis). 

Quanto aos reis de Creta, a sua história, devidamente interpretada, é uma grande ilustração do que podemos considerar como a vida de alguém pode ser tomada pela cegueira da paixão incontida, de ambos, no caso. De um lado, o desejo do lucro por parte de Minos, que, ao invés de cumprir o que Poseidon determinara, sacrificou no lugar do divino touro um animal  de terceira categoria. Ou seja, o desejo do lucro acima do dever religioso. Com relação a Pasífae, temos o pecado da sensualidade extrema. O fruto dessas paixões é o Minotauro, que precisa ser escondido nos subterrâneos do Labirinto.


ARIADNE   E   TESEU  ( NICOLO  BAMBINI )

O tema do Minotauro é nitidamente taurino sob o ponto de vista astrológico enquanto nele temos ilustrações negativas: uma alegoria do desejo injusto, a submissão à pressão dos sentidos, as concessões mentirosas, os subterfúgios para a obtenção de posses materiais. Psicanaliticamente, o Minotauro é a expressão do recalque, do que não pode ser exibido à luz do dia (admitido pela consciência) e que, por isso, deve ser escondido na escuridão do Labirinto (subconsciente). O recalque, lembremos, é um mecanismo de defesa que, teoricamente, tem por função fazer com que as exigências pulsionais, condutas e atitudes, além dos conteúdos psíquicos a ele ligados, passem do campo da consciência para o do inconsciente, ao entrarem em choque com exigências contrárias. 

Dessa história sai também a palavra labirinto (de labrys, o duplo machado, um dos símbolos de Creta, ao lado dos chifres do touro), que pode tomar vários sentidos. A palavra, numa leitura religiosa, serviria para alegorizar o mundo como um labirinto e a queda, a perdição do espírito no plano da matéria, a sua dispersão e sua perplexidade na vida fenomênica. A redenção só seria possível se encontrado um meio de sair dele, o fio de Ariadne. Ariadne e Teseu são também, numa outra leitura, figuras arquetípicas do matriarcado e do patriarcado, respectivamente, que poderiam ser conciliadas, mas que, fixadas nas suas prerrogativas, não sabem ou não querem fazê-lo.

O labirinto pode ser considerado ainda como uma ilustração do mundo do erro, de uma vida vegetativa. Quando nascemos, entramos nele, na escuridão, ficando presos à tirania dos sentidos. Voltar à luz é muito difícil. Em muitas tradições, a
LABIRINTO   DE   CHARTRES
entrada no labirinto lembra também a viagem noturna do Sol. Representa, como tal, o processo mental do homem desprovido de uma dimensão espiritual em sua vida. Na Catedral de Chartres e em muitas outras encontramos labirintos esculpidos para simbolizar a vida como peregrinação e as suas dificuldades. Os labirintos eram chamados, nas catedrais, de “caminho de Jerusalém”, considerados como substitutos da verdadeira peregrinação. A arte barroca e rococó, em muitos parques de castelos, públicos ou privados, principalmente na França, usaram a imagem do labirinto para construir, com vegetação alta e espessa, aquilo a que chamaram de dédalos, com o objetivo de divertir os seus visitantes.