segunda-feira, 24 de abril de 2023

                                              

A  ELEGIA 

As primeiras poesias gregas que tomaram o nome de elegias (do grego, elegeia, canto triste,  de luto, plangente, lamentoso) tinham relação com antigos cantos de guerra, de natureza épica, nos quais se destacavam os valores nacionais, a vida guerreira, as façanhas de heróis mortos. Tecnicamente, a poesia elegíaca foi se formando aos poucos pela transição desses temas épicos para temas exclusivamente líricos, entendendo-se estes como composições monódicas (cantadas a uma só voz) ou corais (cantadas em grupos), com versos de dez sílabas, sempre carregadas de muito sentimentalismo e enlevo, inclusive com acompanhamento de instrumentos musicais. 


ARQUÍLOCO DE PAROS
No século VII aC, esta transição, ao que parece, já estava completa, designando-se como elegíacos os poemas  de alguns poetas como  Arquíloco, Tirteu, Callimacus  e outros. Do ritmo dos versos heroicos passou-se para o ritmo dos chamados versos pentâmetros ou elegíacos, que foi a característica mais notável, mais visível, exterior, desta transição, além de, naturalmente, dos sentimentos, da tristeza e da melancolia quanto ao conteúdo que carregavam. 

Dentre os poetas acima citados, Arquíloco de Paros (712-648 aC) se destaca por ser o representante mais conhecido do chamado lirismo pessoal. Nascido na Trácia, era filho de um grego aristocrata decaído que lá vivia como colono e de uma escrava. Extremamente individualista,  Arquíloco levou uma existência miserável, de mercenário, e cantou inicialmente a vida do guerreiro, a brutalidade que a cercava e as suas breves alegrias. Ao mesmo tempo alegre, melancólico e apaixonado, foi sempre Arquíloco um empedernido individualista. Ficou famoso por suas invectivas impiedosas contra a bela Neóbula e seu pai, que lhe recusara entregar a moça em casamento. Tanto fez Arquíloco, atazanando-os, que levou ambos, pai e filha, ao suicídio. Quanto ao seu talento, é, com toda a razão, considerado como um dos maiores, o maior talvez, dos líricos jônicos e iniciador da lírica monódica. Muito espontâneo na sua expressão, Arquíloco ficou famoso por seus iambos satíricos, tornando-se muito popular a sua poesia, cantada por  rapsodos, sendo, por isso, no seu tempo, colocado por em pé de igualdade com Homero. 

SÓLON
É de se lembrar, para ampliar o entendimento que tomou o caminho da poesia elegíaca, que no poema Salamina, Sólon (640-558 aC), o futuro legislador, embora  mantendo o espírito lírico dessa poesia, voltou a se aproximar da tradição épica para transmitir ideias de coragem e de destemor aos atenienses quando de seus revezes nas lutas que travaram, principalmente para recuperar a ilha de Salamina em poder de Mégara. 

Foi o poeta Mimnermo, porém, como tudo indica, quem, ao final do referido século, fixou a forma que os poemas elegíacos tomariam a seguir, forma através da qual chegariam aos tempos modernos, como poemas do amor, da saudade, do sofrimento e da reflexão melancólica. As elegias guerreiras de Mimnermo, ainda que ligadas aos antigos temas heroicos, já apresentavam, no geral, uma linguagem terna e apaixonada, abrindo caminho para o lirismo nostálgico que as impregnaria desde então. Nostalgia, registre-se, é palavra nova, criada no século XVII (1678) pelo médico suíço J.J. Harder, da Basileia, que uniu para formá-la, do grego, nostos (regresso) e algia (dor), ou seja, dor, sofrimento, por não se poder voltar mais ao passado.  

Nascido em Colophon, Mimnermo foi poeta e músico; viveu entre os séculos VII e VI aC, sendo considerado também como criador da elegia erótica. Seus cantos, chamados Nanno, além dos de inspiração heróica, se constituem, diante da ideia do nada, do aniquilamento de tudo, num forte apelo aos prazeres sensuais.

Não pode ser esquecido neste contexto também o poeta Simônides de Ceos, que viveu entre os séculos VI e V aC, autor de elegias e de epigramas. No concurso aberto para celebrar a vitória de Maratona, Simônides venceu Ésquilo, o grande poeta trágico, além de ter seu renome enaltecido pelas composições que publicou sobre as batalhas de Artemisium e de Salamina. A par dessas glórias poéticas, devemos acrescentar a elas talvez a maior, o reconhecimento que os gregos conferiram a Simônides como o incomparável poeta das expressões elegíacas patéticas, acontecimento literário que certamente definiu melhor o novo gênero, afastando-o das influências épicas. Realmente, não conheceram os gregos desse tempo nada mais triste que a poesia de Simônides de Ceos que escreveu usando várias formas poéticas, epigramas, cantos corais, hinos, odes, marchas fúnebres e ditirambos, tudo para louvar os heróis gregos e enaltecer a sua participação em várias baralhas contra os persas. É importante lembrar, quanto à poesia arcaica grega, que os seus melhores intérpretes foram os sofistas, já que para eles o canto (música) era a melhor força modeladora da alma.  

Em Roma, ficaram famosos, no século do imperador Augusto,

TIBULO
por seus versos elegíacos, poetas como Gallus, Ovídio, Tibulo e Propércio, ainda que  discutam os especialistas se cabível incluir a obra de todos como poesia exclusivamente elegíaca. De Gallus, por exemplo, só chegaram até nós alguns fragmentos de seus versos. O que temos de mais consistente com relação a ele, quanto a este aspecto, lembremos, é o grande elogio que lhe fez Virgílio na sua sexta bucólica e a opinião de Quintiliano, que o considerava como um dos melhores poetas elegíacos latinos. 

Famoso pela ternura dos seus versos, por sua sensibilidade quase feminina, Tibulo não pode ser esquecido. Foi um poeta pacifista, de estilo clássico, sempre saudoso dos antigos costumes camponeses, muito ligado a Horácio, Virgílio, Propércio e Ovídio.  Quanto a Catulo, embora ele não possa ser incluído no grupo dos quatro poetas elegíacos citados, ele deixou dois poemas no gênero que devem obrigatoriamente fazer parte do levantamento que se fizer das melhores elegias romanas, uma dedicada a Manilius e outra sobre a morte de seu irmão.

RONSARD
A tradição elegíaca greco-latina encontrou na poesia francesa a sua melhor expressão, talvez, em Ronsard (Contre les bûcherons de La Forest de Gastine), um lamento lírico contra a destruição dos velhos e sagrados carvalhos. Em Malherbe, acrescente-se, embora com alguma diferença dos greco-latinos, encontramos também, com tinturas mitológicas, a velha nostalgia elegíaca. A forma mais bem acabada da elegia, de inspiração pagã, entretanto, entre os franceses, só iria aparecer lá pelos fins do século XVIII nas obras de alguns poetas e, de modo mais interessante nos diferentes versos de André - Marie Chenier, dentre os quais destacamos um fragmento de Néère, no qual temos expresso o triunfo do Amor sobre a Morte:

Au coucher du soleil, si ton âme attendrie

Tombe en une muette et molle rêverie.

Alors, mon Clinias, appelle, appelle-moi:

Je viendrai, Clinias, je volerai vers toi;

Mon âme vagabonde, à travers le feuillage,

Frémira; sur les vents ou sur quelque nuage.

Ao lado dos versos acima, poderíamos indicar também como fazendo parte do gênero elegíaco, muitos outros, de períodos posteriores, como os de Lamartine, Victor Hugo, de mme. Desbordes-Valmores, Girardin etc. Indo a outras literaturas, poderíamos lembrar ainda a mesma presença dos temas do gênero na literatura espanhola (Garcilaso de La Vega), na italiana (Petrarca e imitadores), na portuguesa (na qual Camões e Sá de Miranda ocupam lugar privilegiado), e na literatura inglesa (Thomas Young).

Na virada do século XIX para o XX a elegia, no que tinha de mais tradicional, devido principalmente à poderosa influência de Rainer Maria Rilke, voltou a ter, ainda que com alguns ingredientes novos, grande destaque. Temas como a tristeza, a melancolia, a saudade, os sentimentos despertados pela morte, impregnavam-se agora de misticismo, de ideias de salvação e de temas angelicais, versos carregados de sentimentalismo e crise existencial. É famoso o verso com o qual Rilke, desesperado, inicia a sua primeira elegia, perguntando: Quem, se eu gritasse, me ouviria entre as hierarquias dos anjos? 

RILKE
No século XX, realmente, não há como deixar de se citar, como maior representante das tradições do gênero elegíaco, pela grande influência que exerceu não só sobre a mentalidade do tempo como sobre o fazer poético, o boêmio-austríaco Rainer Maria Rilke (1875-1926), sempre considerado como um dos mais importantes poetas de língua alemã. Ele compôs os seus versos no castelo de Duino, perto de Trieste, lá hospedado a convite da princesa Marie Von Thurn e Taxis. Desde então, com Rilke, o gênero elegíaco, no século XX, parecia ter encontrado novos temas, matizados agora por uma sedutora espiritualidade, muitas vezes sentimental e melosa (o espírito do tempo?), da qual os poetas modernos não poderiam fugir,   sob penas de, não o fazendo, se virem solitários e abandonados. Será?

Para a consideração que merecer de possíveis interessados, indo à produção de alguns poetas brasileiros (Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira) que ousaram escapar dos modelos formal e temático em que Rilke me parece ter pretendido encerrar a elegia, um poema produzido por um deles, o primeiro dos três acima mencionados, o grande Carlos Drummond de Andrade.    

ELEGIA  1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,

onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.

Praticas laboriosamente os gestos universais,

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,

e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.

À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze

ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra

e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.

Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas

sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.

A literatura estragou tuas melhores horas de amor.

Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota

e adiar para outro século a felicidade coletiva.

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


CARLOS DRUMOND DE ANDRADE


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sexta-feira, 31 de março de 2023

DIVAGAÇÕES SOBRE O RISO

Como acontecimento físico, o riso nada mais é que uma demonstração de alegria, de contentamento, pela expressão do rosto de alguém, por certos movimentos da boca e dos músculos faciais, acompanhados de expirações bruscas e contínuas ruidosas. Cada cultura tem, inclusive à sua maneira, construções verbais peculiares para provocá-lo, para despertar o risível, usando para tanto vários recursos, como, por exemplo, as chamadas expressões idiomáticas, no geral incompreensíveis se traduzidas literalmente. 

Lembro, por exemplo, que os franceses têm se dilater la rate, expressão pela qual ligam o riso descontrolado à dilatação do baço. Curiosamente, os mesmos franceses associam o riso ao bidê pelo verbo se bidonner, rir muito. No Dictionary of the Underworld, publicado pelas Wordsworth Editions, o riso (laughaparece unido a palavras como water e weed para designar, respectivamente, álcool (bebida alcoólica) e erva daninha (maconha). Laugh off,  desprezar, não dar importância a, rir-se de, fazer pouco caso, disfarçar sorrindo e a fit of laughter pode ser “um ataque de riso”. Os italianos têm ridere a denti stretti, algo assim como rir de dentes fechados, para nos falar de alguém que ri sem graça, contrariado, contra a sua vontade. Nós, por exemplo, aproximamos riso e bandeiras (rir às bandeiras despregadas) para falar de alguém que gargalha, que ri às claras, sem dissimulação. A expressão “morrer de rir” se aproxima desta última, uma expressão hiperbólica, exagerada. Risu dissolvebat ilia sua, diziam os latinos: quebravam-se os ossos de tanto rir, arrebentar de tanto rir. Entre nós e em outras línguas, como o francês, usamos “desopilar o fígado”, ou seja, desobstruir o fígado para libertar a bile negra, causadora de mau humor ou de melancolia. Lembremos que bile negra em latim é atrabilis (atra, negro, sombrio, e bile ou bilis, substância amarelo - esverdeada secretada pelo fígado, produtora de mau humor, mau gênio) e em grego melancolia (mela, negro, e bile ou biles, o mesmo que em latim, substância causadora de abatimento mental e físico, depressão)

Para classificar os risos, podemos nos referira riso aberto, riso claramente exteriorizado, franco; riso amarelo, riso contrafeito, constrangido; riso frouxo, riso contido, irreprimido; riso louco, riso incontido; perdido de riso, que não pode controlar ou suster o riso; riso canino ou riso sardônico, riso semelhante a um arreganhar de dentes, provocado por espasmo facial, especialmente no tétano. Acrescente-se que nos dicionários a palavra sardônico denota também ironia maldosa, zombaria, sarcasmo. Não podemos esquecer, porém, que sardônico vem do latim, Sardinia, ilha do mar Mediterrâneo. A Sardenha, antes Sardus, era não só célebre pelos seus peixes saborosos, as sardinhas. Havia nessa ilha uma erva muito tóxica, cuja ingestão provocava uma crispação dos maxilares, um rictus doloroso, chamado por isso de riso sardônico.

MAPA DA ITÁLIA
Como uma pessoa ri? O riso pode ser simplesmente um ato social; começa pelo rosto e pode se espalhar pelo corpo. Há quem diga que envelhecemos quando deixamos de rir. Onde encontrá-lo? Um veio muito rico a ser explorado quanto ao riso, por exemplo, pouco notado, está na Bíblia, inclusive nos chamados semitismos que encontramos no seu texto, os seus idiotismos peculiares, de grande riqueza, aliás, nas línguas semíticas. Presentes também na Bíblia uma das características mais interessantes encontradas nas antigas mitologias, a de unir os nomes e o destino dos personagens. A história de Isaac é um exemplo. 


SARA  E ABRAÃO
(WILLEN BARSIUS, 1612-1657)

Sara e Abraão (pintura de Willen Bartsius, 1612-1657) como se sabe, já eram muito velhos quando este anunciou que sua mulher esperava um filho. A declaração foi motivo de muita risada, de chacotas, pois, ao que parece, tinham ambos cerca de noventa anos. Quando a criança nasceu lhe deram o nome de Isaac, que etimologicamente se liga à palavra gargalhada. 

Moisés, por exemplo, que foi encontrado pela filha do faraó num cesto flutuando nas águas do rio Nilo, tem seu nome derivado de um jogo de palavras, mo, água, e uje, salvar, o “salvo das águas”. E por aí se vai...

Desde os gregos, de Homero, mais exatamente, para quem ressoava no Olimpo um riso inextinguível, inúmeros filósofos, poetas, historiadores, cômicos, psicólogos, médicos, sociólogos, humoristas, adivinhos ou profetas vêm tentando decifrar o riso. Uma definição que nos vem da Itália de hoje nos diz que rir é manifestar uma espotânea reação de hilariedade, suscitada no ânimo de uma pessoa através da modificação da mímica facial, consequente do estiramento dos lábios com modificação do rítmo respiratório. Fala-se também nessa definição que para haver o riso é necessária a contração de 15 músculos faciais (Dizionario della lingua italiana, de G. Devoto e G.C.Oli).

Os antigos gregos sabiam que onde a deusa Afrodite fosse louvada haveria, risos, jogos, brincadeiras, paz, doçura. Sabiam também os gregos que as crianças pequenas, os bebês, gostam de rir, apreciam o carinho, as coisas doces, as frutas, tudo isto fazendo parte do universo da deusa. As crianças gostam de brincar e de sorrir. Sabem disso instintivamente. 

FREUD

Freud, no seu trabalho sobre o humor e sua relação com o inconsciente, analisou como o riso triunfa sobre a repressão. O riso e o desejo, segundo ele, têm muito em comum: nenhum dos dois pode ser forçado. Se forçado, é um vexame. Pela graça de Afrodite, nossa inocência se renova, pois ela restaura a cada encontro amoroso a singularidade da primeira vez. Afrodite é, neste sentido, o oposto de D. Juan, que quer encontrar a primeira vez na enésima. Com Afrodite, renascemos a cada momento. Fica aqui a pergunta: será por isto que a palavra bebê entra tanto nas relações amorosas, os parceiros usando-a para se dirigir um ao outro, “meu bebê”?

Queiramos ou não, estamos sempre presos à nossa época, aos valores e às ideias do tempo em que vivemos. Nada tão risível como pensamentos e grandes “verdades” que orgulhosamente foram apresentados num determinado tempo e que depois foram lidos e apreciados em outro. Parecem-nos tão ridículos... 

FRIEDRICH NIETZSCHE
Tomemos, por exemplo, o caso de um filósofo do séc. XIX, Friedrich Nietzsche, ainda muito lido e estudado , sobre o qual, com admiração, são produzidas teses e dissertações universitárias em todo o mundo ocidental. 

Ele é tido como um campeão das liberdades individuais, aquele que lutou contra o moralismo desgastado, o puritanismo decrépito. Frases como as que apresentamos a seguir não provocaram (só os meios religiosos levantaram sua voz contra ele) grande espanto no período em que apareceram. Lembro-me de um caso pessoal: na minha juventude, ao ler um livro desse filósofo, meu professor de filosofia, um jesuíta, me citou o índex (lista oficial de livros cuja leitura a igreja católica romana proibia, cuja leitura era considerada perigosa à fé e à moral), me falou pecado mortal, excomunhão etc. Grande parte do que esse filósofo escreveu reflete, contudo, o mundinho pequeno-burguês em que ele estava mergulhado e como adotava as suas ideias:

“Quando se abre um livro escrito por uma mulher logo se dá um suspiro; mais uma cozinheira que largou o fogão” (Obras Filosóficas completas, XI, 419).” “A mulher constitui a segunda falha de Deus” (O Anticristo). “A frigidez sexual nos espíritos superiores é essencial à economia da humanidade” (Humano, demasiadamente Humano). “Os porcos chafurdam no gozo e quem quer que pregue o gozo veja se ele não traz em si um grão de porco” (Zaratustra).

No mais, há ainda a se registrar que esse filósofo tinha grande medo de perder a visão por estar se masturbando demais... Aliás, foi Kierkgaard quem escreveu, não me lembro mais onde, que toda tese está exposta ao riso dos deuses. O riso dos deuses quanto à nossa pretensão, à nossa soberba, ao nosso orgulho, à nossa empáfia doutoral...

Durante o Renascimento, o riso, na sua forma mais radical, universal e alegre, separou-se pela primeira vez das camadas populares mais baixas e com a língua “vulgar” da época penetrou decisivamente no seio da grande literatura e da ideologia superior, contribuindo para obras de alcance mundial.

DECAMERON

 Bons exemplos estão no Decameron, de Boccaccio, praticamente em tudo o que Rabelais escreveu, em Cervantes e em muitos dramas e comédias de Shakespeare.

Quanto à gargalhada, todos concordamos: é risada forte, prolongada, ruidosa. A raiz é garg, uma onomatopéia do ruído da  água durante o gargarejo ou da garganta quando o alimento é engolido sofregamente. Os nobres ingleses (sécs. XVIII e XIX) recomendavam a seus filhos que fossem vistos sempre sorrindo, nunca gargalhando. O sorriso sempre foi considerado como mais elevado, superior à gargalhada e ao riso convulsivo, estes sempre tidos como mais instintivos.

Já o sorriso seria uma forma mais humanizada da risada, sendo muito importante na chamada Patognomonia (estudo dos sinais que nos permitem conhecer doenças).

Se formos à Astrologia, que tem muito a dizer sobre o tema ora abordado, lembre-se, por exemplo, que ela liga a gargalhada ao elemento fogo (signo de Áries) e, no corpo humano, ao baço, este sempre considerado como sede natural de emoções e de paixões. Plínio, o Velho, já registrava na sua História Natural, fazendo coro com antigas tradições orientais, que pessoas que tinham dificuldades para controlar a gargalhada ou que gargalhavam muito podiam apresentar problemas no baço (dilatação). Os antigos chineses, por sua vez, sempre consideraram o baço no corpo humano como um depósito de energia, ligando-se ele, como tal, ao equinócio da primavera, isto é, ao signo de Áries (maiores detalhes sobre o baço e o riso neste blog, no artigo Calundu & Spleen.

A palavra sorriso vem de subridere, algo assim como rir em tom menor. O sorriso permanece muitas vezes inconscientemente estampado no rosto das pessoas como um tique, um cacoete, com finalidade de aliviar tensões. Por esta e outras razões (desejo de despertar simpatia) é que há sempre algo no sorriso que o caracteriza como uma máscara, um disfarce. Um exemplo disto está no chamado sorriso oriental, enigmático, pois nos obriga sempre a decifrá-lo. 
Quando Leonardo da Vinci foi para Florença, recebeu uma encomenda: pintar o retrato de Lisa Gherlandini, mulher de Francisco del Giocondo, proeminente comerciante florentino. O retrato de Mona Lisa (Mona é uma contração de Madona) foi o resultado, a mais famosa tela da pintura ocidental, hoje no Louvre. Depois de passar quatro anos trabalhando nela, dando-a por não concluída, Leonardo a levou para a França, onde morreu. 

MONA LISA NUA

Segundo Giorgio Vasari, o sorriso da Mona Lisa é “mais divino que humano”. Vasari afirma que Leonardo se serviu de músicos e bufões, palhaços, para evitar que o seu modelo parasse de sorrir e caísse na expressão melancólica convencional. Outros dizem que Leonardo, além do auxílio dos bufões, também participava, conversando sempre que possível com o seu modelo para que o sorriso não lhe fugisse do rosto. Esse mesmo sorriso, aliás, pode ser também notado no desenho “A Gioconda Nua”, do mesmo Leonardo, hoje também na França.

Quanto à inspiração desse tipo de sorriso, Leonardo a buscou provavelmente no famoso “sorriso arcaico”, da arte grega. Colocou-o no rosto de muitos modelos femininos, principalmente nos temas maternos (Leonardo, como filho adotivo, era fixado nesse tema), como os de Leda (mãe de Helena), de Clitemnestra, dos Dióscuros, e de Santa Ana, mãe da Virgem Maria.

Freud nos diz que o sorriso foi a expressão que por primeiro revelou satisfação e que por isso se tornou a mais usual nos relacionamentos humanos. Ele, o sorriso, surge sempre como uma expressão substituta para moderar todas as situações atuantes sobre a fisionomia, a raiva que foi reprimida, o temor que foi superado, o choro contido. Tudo isso é, no geral, substituído por um sorriso. Temos, no lugar, então, em muitos casos, o já mencionado riso amarelo, o sorriso contrafeito, para disfarçar alguma coisa, uma decepção. Na arte, lembre-se novamente, temos o sorriso arcaico, de convenção desconhecida, característico da estatuária grega antiga. No capítulo de algumas patologias, como no caso de doenças mentais, não podemos esquecer o sorriso repentino, impulsivo, como no caso dos histéricos. De um modo geral, porém, o que fica é que boa parte dos sorrisos tem a finalidade de ocultar a ansiedade, um certo mal-estar físico e psíquico simplesmente porque estamos no mundo, expectantes diante de alguma coisa indefinida, talvez de um perigo não determinado, diante do qual nos sentimos indefesos.  


A ANATOMIA DA MELANCOLIA 
(ALBERT DÜRER, 1471-1528)
                                   

 O conceito de humor (do latim, humeo, estar misturado) foi introduzido na literatura inglesa por Robert Burton em A Anatomia da Melancolia, em 1621 (Ilustração acima, de Albert Dürer, 1471-1528). Foi definido desde então nos dicionários da língua inglesa como a qualidade que tem um discurso, um texto, uma ação que tende a provocar o riso. 

Há que se mencionar, todavia, que, antes de Burton, Ben Johnson já havia proposto na sua comédia Every Man out of his Humour (1599) a primeira definição desta palavra. Ele a associava à antiga doutrina dos humores dos gregos e a fazia correlata do termo mania, excitação. 

Na doutrina dos humores (ciência dos temperamentos) dos gregos, era dado o nome de humor a um líquido secretado pelo corpo e que era tido como determinante das condições físicas e mentais do indivíduo. Desde a antiguidade grega (Hipócrates) estavam definidos os quatro humores que indicavam os quatro temperamentos, cada um deles ligado a um elemento: colérico (fogo), sanguíneo (ar), melancólico (àgua) e fleugmático (terra). É com base nesta antiga doutrina que podemos, na Astrologia, por exemplo, ligar o riso e a gargalhada ao elemento fogo e o humor ao elemento terra, com uma certa contribuição do elemento ar.

O conceito de humor começou então, a partir dos ingleses, a ser usado em todas as literaturas, dando-se ênfase àquilo que provocava o riso, a chamada vis comica dos autores latinos. Nessa acepção, a literatura humorística abrange obras tão diferentes como os contos de Boccaccio, os textos de Rabelais, as comédias de Molière, as sátiras de Swift, a poesia irônica de Heine, a prosa burlesca de Gogol e a desgraça melancólico-ridícula de Chaplin no cinema. 

O humor, porém, já estava há muito presente no mundo. Refiro-me, por exemplo, mais uma vez, à Bíblia, ao Livro dos Provérbios, onde encontramos pérolas como estas: “Goteira pingando em dia de chuva e mulher briguenta são muito semelhantes” ou “A mulher formosa e insensata é como um anel de oiro na tromba de uma porca”. A arte de negociar dos povos semitas, quando pensamos em humor, está bem representada tanto no Antigo Testamento como no Novo. Abraão, por exemplo, ao interceder por Sodoma, num longo diálogo com Deus, não se acanhou de pechinchar descaradamente, pedindo que menos pecadores fossem sacrificados (Gênesis, cap. XVIII).

Disso tudo resulta uma grande dificuldade para se conceituar o humor. Além disso, não existe uma explicação satisfatória para o fenômeno, em que pese o importante trabalho de Henri Bergson, Le Rire. O melhor, parece-me, será considerar o humor como a faculdade de captar e exprimir o ridículo, o risível, o ambíguo, o triste-alegre, com elementos que tocam o sentimento, agindo inclusive sobre o intelecto, com a possibilidade de se chegar a um estado entre as lágrimas e o riso. 

Quando humor e ironia andam juntos, sinal de inteligência superior, o efeito é o sorriso, nunca a gargalhada. Só grandes escritores, alimentados pela perspicuitas dos latinos, fruto de uma longa convivência com os clássicos de várias literaturas, condição prévia da credibilidade do seu discurso, conseguiram juntar o humor e a ironia. Ambos, humor e ironia, pedem sempre, estilisticamente, um grande amor pelos tropos e pelas figuras de retórica, pelo uso de paradoxos, trocadilhos, oxímoros, calembures etc., o que só pode ser obtido por uma convivência com o que há melhor na literatura. O resto será riso e gargalhada...

A ironia, segundo Freud, é sinal de maturidade emocional, além de ser, para ele, o único fenômeno no reino do cômico que se aproxima do sublime. Na sua forma mais baixa, que ocupa quase todo o espaço da comunicação de massas, dá-se também o nome de humor (?) escrachado a tudo aquilo que produz o riso ou a gargalhada (escracho é também nome de retrato tirado na polícia). Outra classificação, equivalente: humor esculachado, também uma forma de humor afrontoso, deselegante, rude, boçal, muito cultivado também nos programas de TV,  onde impera o chulo, inclusive a violência física,tudo sempre muito ultrajante. Esculacho é palavra que veio para a nossa língua, segundo alguns, do inglês, de scratch, arranhar, ou, segundo outros, do francês, de crachat, cusparada.

A ironia entre os gregos (eironeia) era a arte de interrogar fingindo ignorância. Euroneimai quer dizer fingir-se de ignorante. Sócrates a levou para a filosofia. De um modo geral, todos a consideram uma forma superior de humor. Ela vem sempre com um sorriso, uma alegria bastante moderada, pois é sempre um triunfo do ego.        

No seu sentido mais imediato, a ironia é uma figura de linguagem pela qual se diz o contrário do que se quer dar a entender. É o caso do sentido oposto, diverso, emprego inteligente de contrastes. No teatro, temos a chamada ironia dramática, descompasso entre a situação desenvolvida num drama e as palavras que são proferidas, não entendidas pelos personagens, mas pela platéia. 

A ironia passa no geral por uma forma de deboche, de desprezo, e nela podemos distinguir: a) a boa ironia, ou ironia socrática, que procede do sentimento (falso?) de nossa ignorância e se exprime por interrogações aparentemente ingênuas; b) a má ironia, destrutiva ou auto destrutiva, que procede do sentimento de nossa impotência com relação ao nosso destino. A ironia se utiliza geralmente da antífrase, que consiste em fazer entender o que se quer dizer dizendo exatamente o contrário.  

Na Idade Média, havia um sentido da ironia, hoje perdido, que procurava a depreciação de algo por uma mentira ou pelo ato de enganar os outros para se tirar vantagens. São Tomás de Aquino (à esquerda, pintado por Fra Angélico) tratou desse tipo de ironia e de outras coisas referentes ao riso no seu Tratado sobre o Brincar (Comentário à Ética a Nicômaco de Aristóteles, Livro IV).

Tudo o que pudermos dizer do riso nas suas várias formas de manifestação literária também se inclui no chamado gênero cômico e nos remete, em última instância, ao deus Dioniso. Em grego, koimoidia era o canto do komos, este um cortejo ritual de camponeses, alegre e barulhento, onde havia também muita comida, sempre uma forma de se honrar o deus.

Comédia, durante muito tempo, foi a designação usada para se definir peça de teatro em geral. Comédie Française e Théâtre Français são sinônimos e comédient tanto se refere a um ator como a um cômico, a alguém que tanto trabalhe como mimo ou ator trágico. Em Aristóteles, cômico e comédia apareciam associados à imitação de homens de qualidade moral inferior, não com relação a vícios, mas com relação ao risível.

Quando lidamos com o cômico, sob o olhar psicanalítico, é preciso fazer uma distinção muito sutil entre o cômico com o qual nos deparamos na vida, espontâneo, e com aquele que é provocado deliberadamente. No caso deste último, para o seu êxito, há necessidade de dois fatores: que os impulsos da vida instintiva sejam satisfeitos e que as objeções do superego sejam ludibriadas. 

A diversidade de formas e de sentidos do cômico deu lugar a uma tipologia muito interessante, baseada nos modos utilizados. Por isso, é possível falar em comédia que têm temas baseados em costumes, em tipos humanos, em palavras, em gesticulação etc. Mais ainda: dentro da órbita do cômico, convivem, por exemplo, manifestações muito interessantes e diferentes, unindo-se desenho e palavra.  Uma dessas formas de união, por exemplo, é a caricatura. O italiano caricare e o francês charger (charge = caricatura) definem no fundo a mesma ideia: carregar, sobrecarregar. Não é por acaso que revistas cômicas como O Malho, no Brasil, e Punch (soco), na Inglaterra tiveram tais nomes.

O gênero teatral mais ligado ao riso é a comédia, na origem festas celebradas em honra ao deus Dioniso. Tinha um caráter campestre, por oposição à tragédia, urbana, mais solene. O propósito da comédia era o de divertir, nela se incluindo também o escandaloso, o ridículo, tudo em meio a cantos burlescos, comida, bebida, desregramentos. 

Aos poucos, no mundo grego, tanto a comédia como a tragédia, antes festas populares espontâneas, acabaram por se institucionalizar. O governo das cidades gregas, especialmente Atenas, as encampou, procurando esvaziá-las de seu caráter revolucionário, principalmente a comédia por causa de suas propostas anárquicas.

O grande nome da comédia grega foi Aristófanes, um dos

maiores gênios da arte teatral em todos os tempos. Seu humor é inteligente, ainda que por vezes seus textos descambem para o deboche e para o obsceno. Produzidas há 2500 anos, a maior parte das comédias de Aristófanes é atualíssima. 

Em As Vespas (422 aC), por exemplo, discute-se o problema dos tribunais do júri em Atenas. Questiona-se na comédia se o júri, como instituto jurídico, era bom ou mau. Ao final da discussão chega-se à conclusão, depois de muitas gozações, de que o maior mérito dele era o de propiciar um bom dinheiro aos juízes. 

Na comédia As Aves (411 aC), dois cidadãos, cansados da corrupção, da burocracia e dos sicofantas que infestavam a cidade (sicofantas eram os delatores profissionais) transformaram-se em aves, buscando um novo lugar para viver. Fundaram uma cidade, livre desses problemas. Logo, porém, os humanos aderiram à mania de se transformar em aves e, dentro em pouco, a nova cidade, só habitada por aves, começou a sofrer dos mesmos males de Atenas. 


Na mitologia grega, um dos menos conhecidos filhos da deusa Nix é Momo, o Sarcasmo. Sua história não é muito volumosa, mas ele está muito presente na arte e no cotidiano das pessoas. Momo tem relação com o verbo mokasthai, zombar, escarnecer, ridicularizar. A raiz que está por trás deste verbo, mou exprime uma ideia de desdém, de menoscabo, um trejeito feito com os lábios a lembrar deboche, pouco caso, com o objetivo de se desqualificar o que é apresentado ou dito. Momo acabou por personificar o sarcasmo.

Os gregos tinham a palavra sarkasmós, riso amargo, do verbo sarkádzo, que tem o sentido de abrir a boca para mostrar os dentes. O verbo também significa mostrar os dentes como um cão. Depois, mostrar os dentes com um riso amargo e crispado. Já sarkidzo é arrancar a carne, a pele, dilacerar. Daí sai sarcófago (sarkophagos), devorador de carne. Indo mais fundo, podemos chegar à palavra grega sarx, sarkos, carne, de onde tudo provém.

Momo, na mitologia, passou desde então a significar também açoite, ironia cáustica, ato de abrir a boca para dilacerar, maledicência, crítica feroz. Expulso do Olimpo, porque irreverente e profanador, acolhido por escritores e poetas, Momo foi para a literatura, para o teatro e para a filosofia. Dioniso, como deus do teatro, “entregou” então a Momo a tutela do chamado drama satírico, gênero teatral que fazia parte das chamadas Dionísias Urbanas.

No séc. II, Luciano de Samosata, uma das maiores figuras da sátira grega, genial sempre, escreveu Diálogos dos Mortos, onde nos deixou passagens de uma verve notável. Inspirado pelas sátiras de Menipo, ele corrigiu o seu realismo por uma fantasia plena de invenção e de malícia. Sua descrição do affaire Afrodite - Ares é soberba. Além do mais, destaque-se que ele escreveu limpidamente no melhor grego ático de seu século. Muito admirado pelos modernos, Luciano foi modelar para muitos, como Erasmo e Cyrano de Bergerac, fixando a sátira como gênero para sempre. 

Ainda na Itália, temos um personagem muito ligado ao riso. Referimo-nos a Arlequim, personagem da commedia dell´arte, Arlecchino, no teatro desde o séc. XVII. A origem de seu nome é muito interessante. Viria ele do inglês medieval, de Herle King, isto é, Rei Harilo. Depois, passou a Harlequin, Arlecchino, nome que foi usado para designar a máscara típica de um personagem bufão, apalhaçado, cuja função era a de divertir o público durante os intervalos das teatrais. Arlequim é o farsante, o bufão, o palhaço por excelência.

A sua principal característica era a de dizer a verdade rindo; ser como Arlequim era proceder dessa maneira. A origem desta característica deve estar numa famosa frase de um poeta latino, Horácio (séc. I aC): Ridendo dicere verum, que está nas Sátiras, uma obra do poeta. Logo os que o leram a divulgaram, virando ela proverbial.

Ainda com relação a Arlequim temos também a expressão latina, cunhada no séc. XVII por Jean de Santeuil, a propósito da máscara do personagem: Ridendo castigat mores. Essa expressão logo se espalhou. Totó, o famoso cômico do cinema italiano, usou-a num filme, parodiando-a. Numa cena, ele, rindo, esbofeteava um figurante de pele escura, dizendo Ridendo castigat moros. A expressão arlequinesca procura sempre, se usada seriamente, reprimir vícios e erros em tom jocoso e indulgente. 

Na Idade Média, na península ibérica, a par da poesia lírica, surgiu uma inesquecível literatura, vigorosa, bastante mordaz, obscena, satírica, implacável. Tal literatura estendia-se a todos os campos, à moral, ao religioso e ao político. Os ataques eram cruéis e muitas vezes punham em risco a própria vida do poeta. A essa produção literária, de inspiração provençal (sirvantès) se deu o nome de cantigas de escárnio e de maldizer.

 


Este artigo não poderia ser encerrado sem uma referência especial a Gregório de Matos (1633/36? - 1696), a primeira grande voz da literatura brasileira. Viveu e escreveu no período barroco, entre a Bahia e Pernambuco, com a tradição portuguesa e a espanhola. Inventivo e original, introduziu na literatura a linguagem coloquial, popular, “mestiça”, a linguagem das ruas. Chamado o “Boca do Inferno”, tornou-se um poeta maldito ao denunciar os desmandos sociais, políticos e econômicos de sua época e também ao expressar poeticamente o erotismo e a sensualidade. Sua obra é de grande qualidade e beleza artística; possui muitas faces, todas inesquecíveis e antológicas. Cultivou a poesia lírica, a satírica, a filosófica, a religiosa, a pornográfica e a encomiástica. Lírico-barroco por excelência, foi e é o maior satírico de nossa literatura, irmão de Luciano de Samosata, sempre repleto de grande brasilidade:

 

“Bela Floralva, se Amor 

me fizera abelha um dia, 

todo esse dia estaria 

picado na vossa flor: 

e quando o vosso rigor 

quisestes dar-me de mão 

por guardar a flor, então 

tão abelhudo eu andara, 

que em vós logo me vingara 

com vos meter o ferrão.

 

Se eu fora a vosso vergel, 

e na vossa flor picara, 

um favo de mel formara 

mais doce, que o mesmo mel: 

mas como vós sois cruel, 

e de natural castiço 

deixais entrar no caniço 

um Zangano comedor, 

que vos rouba o mel, e a flor, 

e a mim o vosso cortiço”. 


 

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

INFORMAÇÃO OU TRANFORMAÇÃO ? III

                


                     BRAHMA         VISHNU         SHIVA                              

Enquanto para os cristãos a prática do bem é um meio de salvação, para os hindus ela é uma espécie de sujeição,  uma possibilidade de prestação de serviços. Isto porque a maneira pela qual um hindu considera o seu próximo é muito diferente daquela a que no ocidente estamos acostumados a adotar por influências judaico-cristãs. Para entender isto é preciso, como já se disse,  que levemos em conta as teses metafísicas do Hinduísmo, enquanto elas nos afirmam que a natureza, o homem e os próprios deuses, se os admitirmos, são produtos da diferenciação cíclica do Brahman, do Absoluto, todos relacionados entre si, em maior ou menor grau. O homem, partindo-se dessa afirmação, não tem a impressão de que para viver terá que lutar num mundo hostil e competitivo. 

Só a ignorância, isto é, a consciência da dualidade, dizem os hindus, nos afasta dos outros homens e da própria natureza. Por isso, na cultura hinduísta, quando pensamos em religião, cada ser humano não é uma parcela do divino, mas cada ser tem si um aspecto do divino. Assim, a melhor maneira de sentir a presença do Brahman  é a de reconhecê-lo em todas criaturas e no mundo natural, em toda a criação, enfim, e procurar tratá-los amigavelmente. Nessa perspectiva, o próximo será para o hindu um outro e ele mesmo ou um outro aspecto dele mesmo. 


Quando os hindus fazem um exame de consciência para avaliar como procederam com relação a si mesmos, aos outros e ao mundo eles, provavelmente, considerarão os seus pecados, crimes, erros ou faltas como nós os fazemos no ocidente. Todavia, eles os classificarão de modo bem diferente. Enquanto, por exemplo, no ocidente, a lista de pecados, erros, crimes ou faltas cometidos contra o próximo é muito grande, detalhada, o hindu pouca ou mesmo nenhuma ênfase coloca nessa questão. Este entendimento se deve sobretudo ao fato de que quando um hindu está agindo faltosamente, cometendo “pecados” etc., ele está agindo erradamente contra si mesmo. 

São ideias como a acima exposta que, para espanto nosso quando na Índia, não só  os mestres hindus nos explicam, mas o homem comum também. Refiro-me a um caso concreto, quando, certa vez, uma família hindu me hospedou. Ao final da minha estada, de poucos dias, agradeci, com grande reconhecimento,  o trato, a hospitalidade, as atenções que havia recebido de todos. 

NAMASTÊ
O chefe da família olhou-me entre surpreso e curioso, dizendo-me que ele e a família não haviam feito nada por mim pessoalmente. Foi o Brahman (Deus) em nós que teve a oportunidade de servir o Brahman que está em V. É só isso, arrematou ele. Para o hinduísta há sempre um Deus que dá e um Deus que recebe. A hospitalidade na Índia, como entendi, é sempre um serviço, um eterno sacrifício, oferecido pelo dono da casa ao Brahman (Deus) que está no hóspede. É o célebre namastê, cumprimento dos hindus, que pode ser assim traduzido: Deus (Brahman) que está em mim saúda o Deus (Brahman) que está em ti. 

O Hinduísmo define a noção de dever da seguinte forma: toda ação que nos aproxima do Brahman é uma boa ação e corresponde ao nosso dever. Um dos principais objetivos  deste dever está o de atenuar o eu inferior (manas) para que o eu superior (buddhi), real, possa se manifestar, brilhar, como eles dizem. Chegamos a isto, concluem, afastando continuamente os nossos baixos desejos. 

Os hinduístas sempre procuram examinar cuidadosamente cada ação, cada ato que devem praticar. Os resultados destas análises são surpreendentes. Segundo os mestres hinduístas, assim agindo, com cuidado, nós percebemos que uma ação que podemos praticar segundo o nosso sentimento de dever, está sendo realizada muitas vezes apenas pelo nosso desejo de evitar aborrecimentos, contrariedades, de obter recompensas materiais, de evitar que façam comentários desabonadores sobre nós, de adquirir reconhecimento, renome etc.

De fato, prosseguem os hindus, muitas das ações que praticamos por dever, muito poucas, são praticadas desinteressadamente. Segundo o Hinduísmo, a ação que devemos praticar por dever não deve conter, na sua motivação, nenhuma expectativa de recompensa. Os hinduístas vão mais fundo: para eles, mesmo as ações que podemos praticar com a esperança de receber de Deus alguma recompensa material não são ações desinteressadas. 

O problema do determinismo e do livre-arbítrio se coloca para os hinduístas de um modo diferente daquele em que o colocamos aqui. Para eles, as respostas a estas questões devem ser obtidas segundo o plano em que consideramos o ser humano. Se nele consideramos que atma se situa além da lei da causalidade, porque idêntica ao Brahman, o homem será então evidentemente livre. Se, ao contrário, nele vemos o corpo físico, seus afetos e mesmo sua inteligência submetidos a inúmeras pressões e que eles a elas cedem, a tese determinista então se imporá. É desta pressão e das nossas derrotas que vêm as nossas hesitações, a nossa angústia, o nosso fracasso. 

A maior parte dos moralistas hindus coloca em primeiro lugar, quando abordamos estas questões, duas virtudes que podem nos ajudar, viveka, o discernimento, e vairagya, a renúncia. São, como eles as consideram, duas virtudes purificadoras da alma. São mesmo interdependentes, quando as vemos mais de perto. É através de viveka que podemos distinguir entre o real e o irreal, ou seja, entre Brahman e Maya, pois temos que nos afastar desta e nos aproximar daquele. 

Vairagya pode ser entendida, tout court, como desapego, ausência de paixão. Cultivando-a não mais seremos atirados de um lado para outro no mundo. Com o auxílio de buddhi, o mental superior, deixaremos, por exemplo, de consumir o lixo que a comunicação de massas nos oferece, embalado como produto cultural. Quando nos aprofundamos mais no item da moral hinduísta, não podemos esquecer dos yamas (restrições) e niyamas (observâncias) presentes em todas as escolas filosóficas do Hinduísmo, considerados como preliminares essenciais a todo discípulo que procure realmente o seu desenvolvimento espiritual.

O que se procura, no Hinduísmo, no que diz respeito à vida e à moral, é que haja uma identificação entre Filosofia e modo de vida. Quando o discípulo recebe o seu ensinamento, o que se procura é uma espécie de crescimento gradual, segundo o modelo passado pelos mestres. Ou seja, adotar e ir praticando. A filosofia, no Hinduísmo, é sempre acompanhada e auxiliada pela prática de uma forma de vida. Boa parte do que é passado aos discípulos tem formas simbólicas das divindades e de outras entidades sobre-humanas, cuja função é direcionar o pensamento, amarrando-o melhor 

Estas concepções do Hinduísmo, de identidade da personalidade, conduta e prática nos mostram que a aquisição de um conhecimento, por parte do discípulo, ou de um mestre, só se torna verdadeira se confirmada pela vida de ambos. Ou seja, o valor dos escritos, das teses e das propostas de alguém, de um mestre, no caso, só se confirma se ele a demonstra através da sua própria vida. 

O estudante preparado (adhikarin) é aquele que tendo estudado os Vedas e seus membros (vedangas) vai entrando gradualmente na chamada “esfera da verdade” (satya loka) para aprender a se desapegar do resultado de suas ações, mesmo as virtuosas, isto é,   entender que vida é sacrifício, o “alimento dos deuses”. Entender também que deve aprender a discriminar entre o que é permanente e o que é transitório. Entender que só o Brahman é permanente e que embora as coisas do mundo possam ser agradáveis aos sentidos elas são transitórias. Lembrar que as coisas do mundo nos chegam através das nossas ações (karma), geradoras sempre de efeitos, com os quais teremos que nos haver um dia. O discípulo, estudante do Hinduísmo, deve, por isso, rejeitar, desprezar, qualquer ilusão, desde que a tenha reconhecido como tal. 

Dentre os recursos colocados à disposição do discípulo, para enfrentar os problemas acima, destacamos: 1) Sama, quietude mental, apaziguamento das paixões; livrar a mente de provocações e perturbações criadas pelos objetos do mundo. 2) Dama, autodomínio, controle dos sentidos. 

Segundo a psicologia clássica hinduísta, temos cinco faculdades de percepção (audição, tato, olfato, visão e paladar), cinco faculdades de ação (fala, apreensão, locomoção, evacuação e procriação) e um órgão interno de controle (antakharana), que se manifesta como ego (ahankara), memória (cittam), compreensão (buddhi) e pensamento (manas). 

Além dos recursos acima, temos outros, uparati, titiksha, e samadhana. O primeiro diz respeito ao controle, da percepção e das atividades sensórias. O segundo nos fala de resistência e paciência, quanto à ação dos sentidos. O terceiro propõe práticas para a concentração constante da mente; manutenção da atenção fixa. A palavra significa juntar, unir, compor.


Nesse contexto, a Filosofia é um, dentre muitos outros saberes, todos levando a um fim prático. Dentre um fim prático muito importante foi aquele que os mestres hinduístas, com a realeza e os membros das demais castas, kshatryas e vaishyas, desenvolveram quando tiveram que se relacionar com os seus vizinhos, sobretudo política ou militarmente. O principal texto criado para esse fim tem o nome de Niti (conduta adequada).

O realismo e a objetividade desse e de outros textos semelhantes são ainda hoje espantosos. De início, cada rei devia considerar seu reino como uma espécie de alvo, rodeado de anéis, que podem simbolizar amigos ou inimigos naturais. Os inimigos estão naturalmente representados pelos reinos que se encontrem no primeiro círculo, os vizinhos imediatos, dos quais é possível esperar algum ataque. O segundo círculo é o dos amigos naturais, mas sempre a verificar. O vizinho que está atrás ou nas laterais do nosso inimigo tem condições de ser um amigo natural. Aliavam assim, e também, os estrategistas militares daquele tempo, nas suas formulações,  num jogo de mandalas (círculos), política, geometria,  considerações morais (inveja), questões ideológicas etc.

Niti, em sânscrito, quer dizer conduta adequada. O termo era especialmente usado, como disse, para a formulação de estratégias político-militares. Faziam parte desse mundo naturalmente os reis, os príncipes, as rainhas, os ministros, os generais e os administradores, todos, conforme as circunstâncias, em variados graus, honestos,  colaboradores confiáveis, desonestos, ambiciosos, intrigantes, traidores etc. Nesse mundo, sempre prevaleceu matsya-nyaya, ou a lei do peixe (peixe grande come peixe pequeno. Acrescente-se: sem aviso prévio).




No geral, o tom para se discutir os assuntos de Niti era pessimista, já em última instância sempre vinham ao primeiro plano questões como a da sobrevivência, dos recursos disponíveis, da quantidade e qualidade das tropas disponíveis etc. No geral, havia quatro meios (upaya) mais usados para uma correta condução do assunto: 1) Saman (conciliação ou negociação), recurso do qual podiam fazer parte discursos, saudações, troca de embaixadas, simulações, encantamento etc. 2) Danda, o contrário de Sanda. Danda é vara de castigo. Ou seja, punir, castigar, destruir, assaltar. 3) Dana, doações, dádivas, presentes, desse recurso fazendo parte também suborno, partilha camarada de butim de guerra, condecorações, honras etc. 4) Bheda, palavra que significa fenda, ruptura, brecha. Na prática, semear discórdia na política interna do inimigo, perfídia. 5) Maya, produção de uma ilusão, uso de máscaras de probidade, simulação de virtudes, de poder etc. 6) Upeksha, olhar, mas fazendo que não se vê. Fingimento. 7) Indrajala (trapaça, truque de guerra, criar uma aparência do que não existe, simulação com bonecos etc.).

ANTIGO  TEXTO  DO  MAHABHARATA

Em qualquer circunstância, a figura máxima do país deve sempre dispor dos dois tipos de sabedoria, a da direita e a tortuosa. Princípio inesquecível em guerra e política: jamais confiar. Outras máximas, extraídas do Mahabharata: O inimigo de hoje pode se tornar o amigo amanhã. Não temas os efeitos do karma, confia na tua força. Aspiremos à força, que sempre esteve acima do Direito. As coisas pertencem ao homem forte. O Direito, por si só, carece de força. Tudo que procede do forte é puro.  Sê como a garça ao calcular tuas vantagens; como o leão ao atacares; como o lobo ao depredares, como a lebre ao fugires. Quando te encontrares em uma situação humilde, procura elevar-te recorrendo a atos piedosos e a atos cruéis. Antes de praticares a moralidade, espera até seres forte. Se não estiveres preparado para ser cruel e matar homens como o pescador mata peixes, abandona toda esperança de grande êxito, etc. etc....