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segunda-feira, 22 de março de 2021

OS MONSTROS - I

                      

ICHTHYOCENTAURO ,  MONSTRO   MEDIEVAL

Monstros são seres disformes, fantásticos e ameaçadores, produzidos pela imaginação, pela fantasia (phantasia, em grego, é imaginação) do homem. Monstro, etimologicamente, quer dizer prodígio da natureza. Prodígio, como sabemos, é palavra aplicada a seres que são aberrações, desvios, distorções, com relação ao que é natural, comum, normal. Os monstros nos causam espanto, são descomunais, invulgares. Estão presentes nos mitos, nas religiões, nas lendas e nas histórias da literatura universal e, para muitos, nos mitos, anunciam a vontade dos deuses.

CAOS (I. AIVAZOVSKY, 1817-1900)
De um modo geral, eles têm relação com as cosmogonias, com a vida primordial e sua origem, sendo seu ambiente natural o das forças primitivas em ação no universo, forças que, embora consideradas como potencialidades formais, resistem tenazmente  a qualquer ordenação que se lhes queira dar. Nesse sentido, os monstros  aparecem sempre ligados ao caótico, ao desordenado, ao indiferenciado, ao que não tem limite, lei, regra. É por essa razão que os mitos e depois a psicologia fizeram deles símbolos da predominância, no ser humano, de forças instintivas, irracionais, forças que devem ser dominadas ou sacrificadas em nome de uma vida superior, uma vida organizada, orientada  racionalmente. Os monstros são, assim, avessos à ideia de cosmos (etimologicamente, princípio de ordem), de harmonia, de organização.

Aquele que nos mitos subjuga estas forças desordenadas, orientando-as superiormente, de modo a que fique assegurada constantemente a sua ordenação, a chamada ordem cósmica, levando, no plano humano, o individual a se integrar devidamente ao social e este ao coletivo, é o herói. Enfrentar monstros é, pois, a principal tarefa de heróis. 

Filhos de um deus e de uma mortal ou de uma deusa e de um mortal, os heróis, como geralmente os encontramos, por exemplo, na Grécia antiga, eram assim cultuados. Cada tribo, cada grupo humano, cada cidade honrava um deles, enaltecendo os atributos de que era detentor, oferecendo-lhe sacrifícios, celebrando-se sua festa em santuários chamados heroon. 

Os heróis dos mitos, contos e lendas sentem-se investidos de um dever superior, o de uma autosuperação constante. Sua  trajetória existencial se desenvolve normalmente segundo um itinerário-tipo: nascimento virginal, abandono ou exposição (uma espécie de expulsão do mundo matriarcal), preparação-iniciação com mestres até que ocorra a última etapa de sua vida, consumando-se o seu desapego/separação. Envolvendo-se com o mundo, o herói terá que enfrentar  as fabulosas forças naturais, monstros e malfeitores que nele vivem e, interiormente, terá que lidar muitas vezes com a sua hybris,  descomedimentos, excessos, orgulho, dos quais costuma se tornar vítima.

O herói pode, nesse afã, tentar alcançar uma vitória em escala universal, macrocósmica, como no caso de guias espirituais ou civilizadores, procurando regenerar a sociedade como um todo (Zaratustra, Buda, Jesus, Maomé, Moisés, Mahavira etc.). Ou, como nos contos de fadas e lendas ser a sua dimensão microcósmica, mais pessoal, limitada, individualizada,  familiar, psicológica, como no caso de muitas das chamadas histórias infantis, de Pinóquio, de Chapeuzinho Vermelho, do Príncipe Sapo e de muitas outras.   

Lembremos que a imagem do herói pode se manifestar através de sonhos em todas as etapas do desenvolvimento psíquico do homem, sob aspectos diversos, com relação ao seu futuro, sonhos sentidos como uma convocação para a ação heroica, indispensável à sua evolução.

Uma das grandes características dos monstros que o herói, o candidato a herói, melhor, terá de enfrentar é que eles geralmente aparecem como guardiões de tesouros encontrados em cavernas, no fundo dos mares, nas profundezas da terra, em florestas sombrias, em lugares distantes,  inacessíveis. Estas situações lembram a interioridade do psiquismo do ser humano e  simbolizam  obviamente as dificuldades que o ser humano encontra para se libertar ou pelo menos controlar um pouco mais as inúmeras forças que dentro dele costumam se opor ao seu esforço.  Mais ainda: os tesouros não são um dom gratuito do céu; eles estão na interioridade do seu  ser, ocultos, e só serão descobertos e conquistados à custa de muito empenho e persistência. O tesouro nas histórias é muitas vezes representado pelo ouro, por pedras preciosas, por uma princesa, por uma erva maravilhosa, por um talismã etc., sinais exteriores do que há de ser buscado interiormente. 

O ouro, por exemplo, desde sempre, porque inalterável, luminoso, solar, dificílimo de ser obtido, encontrado muitas vezes em lugares inacessíveis, protegido por  poderosas forças naturais, sempre foi considerado como um símbolo da perfeição absoluta, da beleza e da sabedoria. Produzido no interior da terra por um processo de longa transformação, de aperfeiçoamento constante, é símbolo de um caminho ascensional e, como tal, do homem que se renova.


A  BELA  E  A  FERA
 (JOSETTE  DAY  E  JEAN  MARAIS, FILME DE JEAN  COCTEAU, 1946 )
 

Nos mitos e nos contos, personagens como príncipes e princesas, outro exemplo, representam sempre a idealização do masculino e do feminino no que eles oferecem de elevado, de superior, quando atuam em conjunto. Em muitas histórias, o príncipe aparece enfeitiçado, sob uma forma monstruosa, teriomórfica, como vítima de um poder maléfico. Só recuperará a sua beleza e a sua juventude se tocado pelo amor de uma lindíssima  jovem, às vezes uma princesa. Esse é o tema de uma das mais famosas histórias do gênero, a de A Bela e Fera, encontrada em muitas tradições. Entenda-se: o que temos aqui nada mais é do que a ilustração da transformação de um eu inferior em um eu superior pela força do amor, que une polaridades até então dispersas. 

PERSEU

Noutros contos que tratam do mesmo assunto (equilíbrio do masculino e do feminino) uma variante é a da libertação de uma princesa por um herói. A princesa está para ser devorada por um monstro e o herói, depois de ingentes esforços, consegue libertá-la. Estas variantes podem ser encontradas nos mitos de Hércules, de Perseu e de outros heróis gregos. A princesa, neste exemplos, é, muitas vezes, um símbolo do lado feminino dos heróis, um lado bloqueado, obstruído, pois vivem eles sempre saturados de machismo, tendo como expressão mais notável de sua personalidade a da função guerreira. 

O sentido que aqui damos à palavra tesouro, conforme os mitos, é o de que ele simboliza aquilo que em nossa nossa vida interior precisa ser resgatado, libertado, conquistado, controlado, ou seja, que podemos traduzir como uma  busca de maneiras novas de viver, de incorporar certos conhecimentos ou faculdades que nos levem em direção de planos superiores de vida, pelo ajuste dos dois lados (masculino e feminino) que todos temos, indo  muito além dos nossos tristes apegos egóicos. 

Os monstros que  guardam esses tesouros, numa certa leitura, não são mais que aspectos da nossa vida interior, do nosso psiquismo, que se opõem a essa libertação ou conquista, são as nossas tendências negativas, o nosso comodismo, a nossa ignorância, a nossa autosuficiência pretensiosa. O poder dos monstros dentro de nós quer dizer a força dos hábitos, a incapacidade de buscar formas renovadas de vida, o imobilismo, as idiossincrasias caprichosas, as doenças, um poder que tende sobretudo a fazer  de nossa personalidade algo acomodado a modelos impostos pelos modismos,  algo muitas vezes herdado e não conquistado. Tudo isso nos torna vítimas das conhecidas depressões, ansiedade e angústias,  subjugados  por atavismos poderosos, por  memórias  doentias, por ideias fixas, obsessões, por inúmeras torturas, enfim, que impomos a nós mesmos sem que saibamos muitas vezes como ficamos prisioneiros desses estados.


HADES   ( GUSTAVE   DORÉ , 1832 - 1883 )

Onde vivem estes monstros em nós? Os gregos criaram, por exemplo, nos seus mitos, para representar simbolicamente o lugar em que eles viviam e de onde podiam nos atacar, influenciando o nosso comportamento, num  lugar do Hades (em grego, invisível), as profundezas infernais, o mundo ctônico, com relação à superfície da Terra. Os monstros nasciam e se desenvolviam nesse mundo, que outro não é senão uma extensa e profunda camada invisível, a que a os estudos do psiquismo humano deram o nome de inconsciente, que fica abaixo do nosso mundo consciente. Cada um de nós, pois, com o seu Hades, o seu Inferno pessoal, com as suas respectivas camadas.

Toda vez que a nossa energia vital não flui bem, que o seu funcionamento é malsão, pervertido, desajustado, estamos caindo nas garras desses monstros, conforme o mito grego. Às vezes, eles podem viver por  anos e anos nas nossas “profundezas” sem que os notemos, mas sempre nos fazendo muito mal, perturbando o nosso desempenho, afetando deleteriamente a nossa vida e, por tabela, a de outros à nossa volta. Eles se anunciam muitas vezes por estados ansiosos, por várias formas de angústia, por exageros emocionais, por temores inexplicáveis, por nossa imaginação descontrolada. Gostam muito, por exemplo, de se manifestar à noite, através dos nossos sonhos, impedindo-nos de dormir, afetando o nosso sono, ou interferindo no nosso desempenho profissional durante o dia.

Esses monstros representam sempre um perigo interior. No mito, eles escapam muitas vezes do mundo subterrâneo através de cavidades, buracos, zonas pantanosas, lagos, oceanos, invadindo a superfície terrestre, isto é, o campo de nossa consciência, podendo assumir a identidade de alguém, de um familiar, de pessoas com as quais convivemos. Noutras vezes, atuam a partir das profundezas em que vivem, causando-nos muita insatisfação, dor e sofrimento, sem que consigamos indentificá-los.

No Hades grego, havia uma região chamada o Bosque de Perséfone (a Rainha do mundo infernal), relativamente perto da superfície da Terra, onde viviam vários desses monstros, que subiam com facilidade ao mundo dos mortais. Essa região é lúgubre, triste. Como espectros, fantasmas, aparições, os seres que lá vivem invadem constantemente a vida dos mortais, como se disse, atacando mais precisamente o que chamamos de ego, núcleo em torno do qual se agregam todas as experiências vividas pela mente e que tem a função de controlar o comportamento humano, em grande parte inconsciente, por isso, como se sabe.


BOSQUE   DE   PERSÉFONE

Na visão do Hades grego, no meio do Bosque de Perséfone há um imenso olmo copado, onde residem os sonhos quiméricos dos mortais, as suas ilusões,  frustrações e decepções. Perto dessa árvore vive  a  monstruosa Quimera, dona da propriedade irrealizante de nossa consciência, monstro híbrido com cabeça de leão, corpo de cabra, cauda de serpente, sempre lançando fogo pelas narinas. Por perto, perambulam os Gigantes, os Centauros, as Harpias, as Erínias e muitas outras figuras monstruosas.

ASFÓDELOS
Fazem também parte da vegetação do Bosque de Perséfone ciprestes, salgueiros e os campos de asfódelos, singela flor dos cemitérios, cujo perfume lembra perda dos sentidos e morte. Essa flor é muito conhecida na região mediterrânea como a flor dos decapitados, dos que perderam a cabeça, dos que não se comandam mais, dos que se transformaram em sombras.

Os monstros, sobretudo os das profundezas infernais, exigem  de nós muitos esforços para afastá-los e para dominá-los, sempre pavorosos, imensos, assustadores. Quando os olhamos mais de perto, porém, percebemos que eles nada mais são do que imagens do nosso próprio eu interior, projeções nossas. É preciso vencê-los para atingir níveis superiores de vida. São agentes do nosso caos, da desordem, da doença, das trevas, da privação de medidas e de limites.

Eles aparecem muito nos chamados ritos de passagem, que nos falam de provas, de etapas pelas quais temos que passar para poder ter acesso a um mundo novo. São, também, uma possibilidade de ressurreição. Indicam que o homem deve se defrontar com o seu próprio caos, descer à sua escuridão, questionar-se, para poder chegar a um renascimento.

As tradições religiosas, se bem compreendidas, confirmam, de certo modo, esse entendimento; para elas, o monstro é sempre um símbolo das forças irracionais, aparecendo associado ao desordenado, ao imenso (o que não tem medida), um ser ligado a uma etapa em que a ordem ainda não havia sido imposta à criação. A esta ordem os gregos deram o nome de cosmos, ou seja, o mundo visível e a sua organização. 


O que caracteriza sobretudo os momentos primordiais da criação é que os elementos constitutivos do universo aparecem indistintamente numa massa confusa, indiferenciada, uma espécie de proto-matéria. Esta massa é, contudo, uma reserva de possibilidades, de forças e de formas. Nela está encerrada uma ideia de devenir, de vir-a-ser. Os alquimistas a chamam de prima materia.

Esta prima materia, para muitas tradições, é a água, matéria original a partir da qual tudo se cria. Para os antigos alquimistas, a ideia era a de que nada podia ser transformado sem que antes fosse reduzido à prima materia. Estas ideias sempre estiveram presentes em várias religiões e depois em vários processos psicoterapêuticos. Uma personalidade, com os seus aspectos fixos e estáticos, produzidos pela própria pessoa ou por atavismos, hábitos e comportamentos herdados, seja por pressões familiares ou sociais, só poderá ser transformada se estes aspectos fixos forem dissolvidos, reduzidos à prima materia. 


domingo, 13 de outubro de 2013

O HERÓI E OS CICLOS HEROICOS



                                                         

Para Homero, herói é um homem forte, corajoso; às vezes, pode ser alguém venerado por sua sabedoria ou um príncipe de família ilustre; ou, ainda, o filho de um deus que participe do humano. 

HESÍODO
Já para Hesíodo heróis serão os personagens da chamada idade heroica, relacionados sobretudo com a guerra de Troia. As mais antigas civilizações, a mesopotâmica, a egípcia, a védica, a persa, a grega, a romana, a celta, as norte e sul-americanas, as africanas, a escandinava, desde as primeiras etapas de sua formação, glorificaram determinados seres. Reis, príncipes, fundadores de religiões, de impérios, de cidades, guerreiros, personalidades que de algum modo se destacaram e deixaram um exemplo. De um modo geral, a esses personagens se dá o título de herói. A palavra, latinizada depois, veio para nós do grego, heros, heroos, semideus, nobre, mortal divinizado.
Algumas exceções, obviamente, podem ser notadas com relação ao que acabamos de enunciar. As civilizações norte e sul-americanas, por exemplo, mais distanciadas das europeias e asiáticas, não apresentam, digamos, o modelo "clássico" do herói como o encontramos nestas últimas. Mesmo a antiga civilização dos egípcios, que mais do que qualquer outra investiu na eternidade, pouco ou nada enfatizou o modelo heroico.
 No antigo Egito tudo parecia estar determinado para sempre, inclusive a vida do outro lado da morte. Nada de grandes esperanças e anseios. O ser humano não precisava buscar o desconhecido, se arriscar pelo novo.                               
Herói, a rigor, entre os egípcios, talvez só o faraó, a própria divindade encarnada.                                                                                                                                                                                                                                                       
ADRIANO
Pouquíssimos personagens na história do Egito mereceram        honras como as que em outras culturas são prestadas aos heróis.
 Mesmo reverenciados permaneceram humanos, nunca divinizados. Uma exceção poderia ser levantada, talvez, o caso de Antinoo, o jovem grego de grande beleza, favorito do imperador Adriano (76-138 dC), que morreu afogado no rio Nilo. Adriano o colocou entre os deuses; um templo e uma cidade, que receberam o seu nome, foram construídos em sua memória.
MARGUERITE YOURCENAR
Lembro que a romancista e ensaísta belga de língua francesa, Marguerite de Crayencour, que adotou o sobrenome de Yourcenar (um anagrama de seu patronímico), que viveu entre 1903 e 1987, publicou em 1951 as Memórias de Adriano, sobre o assunto acima. Como ela disse, escreveu o livro “com um pé na erudição e o outro naquela magia simpática que consiste em se transportar em pensamento ao interior de alguém”. Ela faz, pelas memórias imaginárias do imperador, que aceita serenamente a morte, uma lúcida reflexão sobre o fim das civilizações. 
Nas suas raízes etimológicas (gregas) mais profundas a palavra herói designava na mitologia o filho de um deus ou de uma deusa com um ser humano. Aos poucos, passou a palavra a ser utilizada para denominar um mortal divinizado após a sua morte (evemerização) e também aquele que se notabilizara por seus feitos guerreiros, sua coragem, sua abnegação. O sentido da palavra foi se ampliando, admitindo-se depois seu uso para apontar pessoas que suportaram um destino incomum ou que se dedicaram, até com o sacrifício da própria vida, a trabalhar pela humanidade.

LORD BYRON
 Do século XVIII para o XIX, o Romantismo incorporou outro sentido à palavra
ao pôr em circulação, na Arte, mais na Literatura, determinados personagens,chamando-os de heróis, figuras que problematizavam sua relação com a sociedade. Hoje, a palavra é aplicada a pessoas que se destacam por suas realizações, dignas ou indignas, mas que se tornam de algum modo o centro das atenções, cujo melhor exemplo está nas celebrities postas em moda pela cultura norte-americana.


HÉRCULES
GILGAMESH
Nas antigas culturas, a história do nascimento, da infância e da juventude dos personagens heroicos costuma se revestir de traços fantásticos, maravilhosos, extraordinários, que vão além da esfera do humano. Embora separadas no tempo e no espaço e não tenham tido aparentemente qualquer contacto, essas culturas apresentam as suas figuras heroicas (Hércules e Gilgamesh) com uma semelhança espantosa, até exata muitas vezes. Tais semelhanças e exatidão sempre impressionaram os estudiosos dos mitos; inúmeras teorias e escolas de interpretação tentaram explicá-las desde a antiguidade.
O herói, como a Mitologia grega no-lo apresenta, tem uma função primordial, a de propor sempre um caminho evolutivo. É um ser que procurara deliberadamente esse caminho, que assumiu um avanço consciente na vida, uma forma de submissão auto-conquistada. Tornar-se herói, nessa perspectiva, é abandonar um mundo fechado e ir em direção do grande Todo, como nos apontam vários estudos sobre o tema.
No mito, os seres que vigiam as passagens de um mundo ao outro são perigosos, é preciso competência, coragem para enfrentá-los. Representam, de modo geral, os opostos que todos carregamos dentro de nós (ser ou não ser, certo ou errado), vivem em lugares estreitos, angustiantes, desfiladeiros. Há inúmeras histórias e figuras que na Mitologia grega representam estes aspectos aqui apontados: Ártemis, Pã, Hécate e as encruzilhadas, as rochas Simplégades, Cila e Caribdes na Odisseia, Édipo e a Esfinge etc.


ÉDIPO E A ESFINGE

De um modo geral, nas civilizações da antiguidade o culto prestado aos heróis, se assemelha bastante àquele prestado a antepassados mortos. Aquilo que a figura do herói tem mais característico, na perspectiva da Mitologia grega, talvez esteja no fato de ele representar sempre um traço de união entre as forças terrestres e celestes. São assim seres exemplares, adorados (adorar quer dizer imitar intensamente).
Muitos heróis, ainda segundo a Mitologia grega, depois da morte, podem conservar suas características e interceder pelos mortais, sendo, por isso, muito mais venerados. Enquanto os mortais viram sombras, simulacros, sonhos impalpáveis, desprovidos de materialidade, os heróis, depois da morte, não perdem seu corpo físico (soma), indo com ele, invariavelmente, para um mundo maravilhoso, paradisíaco (Ilha dos Bem-aventurados, em alguns casos). Nem sempre, porém, isto acontece. Há casos em que os heróis e outros personagens importantes do mito, como todos os mortais comuns, vão para o Hades e lá permanecem.


HADES
No mito, o nascimento do futuro herói costuma ser marcado por acontecimentos excepcionais, um caráter milagroso (dois pais, um divino e outro humano; mãe virgem; seres divinos interferindo), às vezes numinoso. Desde cedo, criança, já demonstra grande dificuldade de integração ao meio em que aparece. Costuma ser exposto ás forças naturais para receber uma espécie de batismo cósmico, para renascer de outra maneira (duplo nascimento). Os sinais distintivos são comuns na infância, prodígios, força, façanhas incomuns para a idade.
Na juventude, já aparece uma de busca de proporção, sempre dificílima, que a docimasia (dokimasia) ilustra, isto é, a relação entre a transbordante personalidade do herói e o mundo em que atua é exigida. Entrando na senda, surgem as provas, inclusive as possibilidades das punições divinas pelos excessos que ele comete. Solitário, sacrificado, perambula o herói pelo mundo. Uma espécie de Fatum parece persegui-lo, ainda que muitas vezes seja ele auxiliado providencialmente por entidades protetoras. Suas conquistas são sempre ameaçadas de dissolução, tanto interna como internamente; orgulho, vaidade, perversões,  hybris, por um lado e, por outro, os monstros e os seres perversos que encontra no caminho. Internamente, sempre presentes também as ameaças das origens, dos conteúdos inconscientes. Externamente, ainda, os possíveis confrontos com outros egos, símbolos do mal, que podem inclusive tentar destruí-lo.


GIGANTE GERIÃO, GRANDE INIMIGO DE HÉRCULES (12º TRABALHO)

O herói, tanto na Mitologia grega como em outras, costuma ser apresentado segundo dois modelos: o tipo extrovertido (o mais comum), que assume o papel de libertador, de líder, de condutor, tendo como um dos principais objetivos a transformação do mundo, e o tipo introvertido, que atua mais no plano das ideias, dando exemplo, como redentor, o que trabalha mais com a fé e a vontade do que com o esforço físico. Qualquer que seja o enfoque, os heróis gregos são sempre catalisadores de comportamentos e, como tal, seres exemplares.


ULISSES
Um dos maiores problemas que os heróis encontram é o do retorno, o chamado choque de retorno. Muitos, depois da longa viagem, não querem mais voltar ou podem encontrar obstáculos que dificultem ou mesmo impossibilitem o retorno, como no caso de Ulisses, por exemplo. Às vezes, surgem outras convocações, outros chamados. É que o herói é sempre um iniciado, ele entrou na posse de conhecimentos que, por certo, poderão ser transmitidos aos que ficaram ou aos que ouviram o chamado e não o atenderam. Esta impossibilidade se caracteriza, sobretudo, muitas vezes, pelo fato de o herói, depois de feita a jornada, passar a atuar num campo de forças diferente daquele em que atuam homens comuns. Muitas vezes, difícil, impossível o diálogo. Por isso, muitos heróis, nessa fase, optam pelo silêncio.
O modelo heroico, hoje, parte da ideia básica de que a jornada heroica é de poucos e que a maioria deve ficar no papel que lhe cabe, isto é, serem os figurantes, sustentando o cenário para que ele pratique as suas façanhas, para que ele apareça. Na chamada cultura de massa, o herói está só comprometido consigo mesmo, com a sua capacidade de afirmação, com a sua habilidade, podendo se tornar um representante privilegiado do mundo que o gerou.
Esse modelo tem um caráter impositivo, invadindo outras áreas que não específicas da violência, mas que usem a sua química, como é o caso dos modelos que nos fornecem o esporte, a arte popular (muitos já são encontrados na arte erudita), os cultos religiosos populares ou tradicionais,  o cinema, a música, os jogos eletrônicos, a Internet etc., modelos atrelados e dependentes todos economicamente dos grandes centros detentores da tecnologia que lhes dá vida. O fascínio que esse modelo exerce está centrado sobretudo nos seus dotes físicos, sendo de longe o mais atraente.



Expressando-se o herói como guerreiro, pela violência (países vêm assumindo cada vez mais este papel, como os USA), ele deixa sempre claro que ao agir nenhuma culpa poderá lhe ser debitada por mortes ou destruição que cause. Aqueles a quem combate fazem sempre parte do que é ilegal, pernicioso, ilegítimo, vetado. O Bem que ele defende deve prevalecer sempre. Seria desalentador, desesperador mesmo, que não triunfasse. Se tal ocorresse, isto abalaria a fé das pessoas no sistema, nas suas instituições, criando bolsões de cinismo, de indiferença e de derrotismo.

                                OS CICLOS HEROICOS GREGOS



ARGONAUTAS

São os seguintes os principais ciclos heroicos gregos: 1) Argonautas ou o do Velocino de Ouro; 2) Tebano; 3) Átridas; 4) Hércules; 5) Teseu; e 6) Ulisses. Esses ciclos cobrem geograficamente todo o mundo helênico. Com o desenvolvimento das pesquisas arqueológicas e dos estudos sobre a cultura grega tem se comprovado que os mitos não eram simplesmente fantasias, "coisas" de poetas. As bases históricas dos mitos têm sido confirmadas de um modo surpreendente. Estudos comparativos vêm contribuindo também para lançar mais luz sobre a questão. 
No mundo grego, o ciclo de Héracles ou Hércules é o que mais se destaca com relação aos demais, quando falamos de ciclos heroicos. Seu ciclo é completo e nele se descreve, no capítulo dos doze trabalhos, o drama humano e as suas oscilações entre a vida instintiva, a vida racional e a vida espiritual, isto é, os três níveis do fogo (infernal, terrestre e celeste). É um dos ciclos mais antigos, levando-nos a estabelecer um grande número de  relações, de analogias,  em função de sua enorme dimensão simbólica. 


HÉRCULES E OS DOZE TRABALHOS