Para entender a mitologia dos romanos é preciso levar em consideração que no seu corpus estão presentes, mais do que em qualquer outra, muitas e diversas contribuições. Podemos falar numa espécie de mosaico no qual reconhecemos a participação etrusca, albana, sabina, grega, síria, persa, egípcia e obviamente a romana, em proporções variáveis. Diante da complexidade e da variedade das mitologias grega e oriental, por exemplo, a mitologia romana não faz boa figura.
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CESAR |
Mais práticos, menos sonhadores, menos imaginativos, os romanos sempre procuraram elaborar um sistema mitológico que atendesse às suas necessidades. Seus deuses eram, no geral, extremamente protetores e por isso eles eram “pagos” por seus serviços. Nada de muito misticismo, de reverenciar potências que pouco ou nada tinham a ver com a sua segurança, com a sua organização político-social, com o seu progresso material. Se os deuses falhassem, nada de “pagamentos”. Como máximas religiosas os romanos tinham expressões como estas: do ut des (só te dou se me deres) e Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus (separação entre Estado e Religião).
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DEUSES ROMANOS |
Cada povo com o qual os romanos entravam em contacto, através de conquistas ou do comércio, contribuía de algum modo para aumentar o panteão romano, embora por séculos, até o início da era cristã, a sua estrutura tivesse conservado muitos aspectos inalterados. Para melhor entender o panteão romano é preciso salientar que a religião praticada era extremamente formal, fixando-se as cerimônias e os ritos de modo bastante objetivo, pouca importância se dando a componentes espirituais. Havia uma espécie de trato entre os deuses e os romanos e tudo era feito para que essa barganha desse certo, cada parte procurando cumprir o que lhe cabia. Deuses que não cumpriam a sua parte eram sumariamente afastados do panteão romano, os cultos fechados, colocando-se, sempre sob o patrocínio do Estado, outra divindade que, supunha-se, oferecesse melhores resultados.
Outro aspecto importante: a religião romana sempre foi um assunto externo, comunitário, pouco tendo a ver com a interioridade das pessoas. Se no início a vida religiosa se centrava na família, à medida que Roma foi crescendo (e isto se deu rapidamente), este centro se deslocou para a cidade, para o Estado e, finalmente, para o Império.
Como sempre acontece, as primeiras elaborações religiosas de qualquer povo têm um caráter animista, falam de imanência. Os romanos não fugiram desse modelo. As divindades eram espíritos impessoais que animavam tudo, que moravam nos raios, nas rochas, nos rios, no mundo animal, na vegetação dos campos, nos mares, nas nuvens, nos astros. Tanto podiam ajudar como prejudicar, dependendo de como fossem tratados. Eram os numes, nem bons nem maus. As religiões foram criadas para se negociar com eles.
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FAMÍLIA ROMANA |
Os negócios eram a princípio conduzidos pelo pater familias, quando Roma não passava de um aglomerado de pastores e de agricultores. Depois, quem os assumiu foi o chefe da comunidade, o rex, assessorado por por grupos que se especializaram nessa intermediação, gente entendida em rituais, cerimônias, cada vez mais complicadas.
Aos poucos esses assessores foram adquirindo um poder cada vez maior, estabelecendo a maneira “correta” de se procurar o contacto com as entidades superiores. De comum acordo, o rex e esses assessores ajustaram a sua conduta para que os negócios do Estado não fossem prejudicados. Esses assessores dividiam-se em dois grupos: os pontífices e os áugures, os primeiros especialistas em legislação religiosa e os outros mestres na decifração dos augúrios.
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SANTO AGOSTINHO |
À medida que Roma crescia, o número de numes também aumentava, os colégios sacerdotais se tornavam cada vez maiores. Não é por acaso que Santo Agostinho, fazendo a defesa do cristianismo (centralização religiosa, altamente conveniente ao Império), ridicularizava o número de divindades romanas reverenciadas principalmente pela gente do campo.
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A ETRÚRIA EM 750 AC
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HEPATOCOSPIA
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Com os etruscos (a Etrúria correspondia mais ou menos à Toscana de hoje), os romanos aprenderam a arte da profecia e da adivinhação, a decifrar os fenômenos atmosféricos, a observar o voo dos pássaros, as entranhas de animais sacrificados (hepatoscopia). Foram inclusive os etruscos que possibilitaram aos romanos o contacto com os deuses gregos, adotados em grande parte.
Os romanos não tinham nenhum problema com a incorporação de divindades estrangeiras ao seu panteão. Isto nunca significou, porém, o abandono da reverências aos antigos numes, sempre honrados, principalmente pelas camadas populares. Num cenário como esse não foi difícil que uma vertente importante da religião romana se fixasse no culto ao próprio imperador, o pontifex maximus, que administrava, em última instância, as relações entre o povo e as divindades.
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CIBELE - FONTE EM ROMA |
Não se pode esquecer também a contribuição de correntes filosóficas gregas, como o epicurismo e o estoicismo para a
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MITRA |
religião dos romanos, bem como a grande influência de religiões orientais, como os cultos de Cibele, Grande Mãe da Anatólia, deusa da fertilidade, de Mitra, divindade persa, que dividia o mundo entre bons e maus. A última das correntes orientais que disputou o já degradado patrimônio greco-romano foi o cristianismo. No terceiro séc. dC, o poder imperial estava minado por dentro, corrupção, lutas de poder etc, etc. Difícil segurar, por outro lado, as ondas de bárbaros que continuamente atacavam as fronteiras europeias e orientais do império.
Do terceiro para o quarto sécs. dC, o povo romano, desiludido e desgostoso com a política imperial, começou a aceitar a nova seita oriental, o cristianismo, uma nova moda, como aceitara os adivinhos etruscos, os deuses olímpicos gregos, os oráculos sibilinos, os filósofos gregos, os cultos da fertilidade da Ásia Menor e o radicalismo maniqueísta persa. Por volta do quarto século, proclamava-se abertamente em Roma que era perfeitamente possível a uma pessoa ser ao mesmo tempo um bom romano e professar o cristianismo.
Os deuses romanos eram classificados em duas grandes categorias, os itálicos e os importados, ou os indígites (endo + agere, os que agem a partir de dentro), deuses autenticamente nacionais, e os novênsiles, deuses estabelecidos recentemente, vindos do exterior, importados. Cabível ainda a distinção entre divindades protetoras do Estado e as protetoras da família. O pater familias exercia no ambiente familiar um verdadeiro sacerdócio, ao cuidar dos manes (almas dos mortos) e dos penates (divindades da casa), função tão importante como a dos sacerdotes que se dedicavam ao culto das grandes divindades como Júpiter ou Janus.
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MAGNA GRÉCIA
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As maiores influências sofridas pela mitologia romana vieram da Grécia, indiscutivelmente, e depois dos etruscos. Lembremos que a fundação de Roma é do séc. VIII aC (753) e que os gregos já estavam instalados na Sicília e na Itália meridional desde essa época, dando-se o nome de Magna Grécia aos territórios ocupados pelos helenos.
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ZEUS |
Encontramos no nome de Júpiter raízes indo-europeias (di, div), radicais que correspondem à ideia de luz, brilho, de claridade, as mesmas que temos no Zeus grego e no Dyaus dos indianos, no mundo védico. Para a formação do Júpiter romano não podemos esquecer a contribuição etrusca. O Júpiter etrusco chamava-se Tinia e exercia o seu poder através de advertências e castigos, possuindo para isto três raios. O primeiro ele lançava à guisa de advertência, por iniciativa própria; para lançar o segundo, também premonitório, ele devia contudo obter o consentimento dos doze deuses consentes ou cúmplices. O terceiro raio era o da punição, que só podia ser lançado com o assentimento dos deuses superiores, os dii superiores ou involuti, que agem obscuramente. Deste Júpiter etrusco podemos aproximar Summanus, outro deus etrusco do raio, que presidia o céu noturno.
O Júpiter romano é sobretudo o deus da luz (Sol e Lua) e dos fenômenos celestes, ventos, chuvas, tempestades, relâmpagos. Daí seu culto se ter também grandemente desenvolvido entre as populações do campo, camponeses, agricultores, pastores. Muitos de seus nomes correspondem a estas atribuições, Jupiter Lucetius, deus da luz; Jupiter Elicius (elicere, o que faz sair, o que retira), deus que faz a chuva sair das nuvens; Jupiter Liber, divindade das forças criadoras; Jupiter Dapalis, que governa as sementeiras (dapalis é refeição de sacrifício, suntuosa); Jupiter Terminus, que vela sobre as fronteiras dos campos (plantações).
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JÚPITER CERCADO POR DEUSES ( CÚPULA DA ASSEMBLEIA - ROMA ) |
Com a urbanização, Júpiter perdeu rapidamente as suas funções ligadas à agricultura para se transformar na grande divindade da cidade e do Estado. Assumiu as funções de deus guerreiro, Jupiter Stator (que prende os desertores), Feretrius (que colhe os frutos), Victor (vitorioso), de simbolo das grandes virtudes da justiça, da boa-fé da honra, de protetor das juventude. Torna-se, em suma, o grande protetor do Império: Jupiter Optimus Maximus. Ao seu nome se acrescentam títulos solenes: Conservartor Orbis, Conservator Augustorum, Propugnator (defensor, combatente), Sospitator (salvador), Tutator (protetor), Custos (guardião). Mesmo títulos menos solenes lhe são dados. Pistor (Padeiro) é nome que lhe é dado em função de um acontecimento histórico importante: Júpiter aconselhou os romanos quando, cercados pelos gauleses no Capitólio, a lançar pão por cima das muralhas para indicar aos inimigos que a fome era algo que não lhes preocupava. Tinham tanto pão (o que era mentira) que podiam até jogar fora o excesso.
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PALÁCIO DO QUIRINAL - SÉCULO XVI |
O culto de Zeus era universal na Itália. Ele possuía no Quirinal um templo muito antigo. O Quirinal era nome derivado de um deus sabino, Quirinus, honrado numa colina ao norte da cidade. Ali se encontram vestígios do fórum de Trajano e das termas de Constantino. Mais tarde, no séc. XVI, ali foi construído um palácio (Quirinal) para ser a residência de verão dos papas. A partir de 1870, tornou-se a residência dos reis da Itália. É atualmente a residência do presidente da república, um edifício muito enriquecido com obras de arte. O templo de Júpiter no Quirinal chamava-se Capitolium Vetus, formando ele uma tríade com Juno e Minerva. Júpiter tomava o nome de Optimus Maximus ao formar essa tríade.
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MERCADO DE TRAJANO NAS ENCOSTAS DO PALÁCIO QUIRINAL - SÉCULO II DC |
Era sob a tutela de Júpiter Capitolino que os senadores se reuniam quando tinham que decidir sobre as declarações de guerra. Os generais, obrigatoriamente, antes de partir para as suas campanhas militares e depois delas vinham lhe oferecer uma coroa de ouro e parte dos despojos conquistados.
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TEMPLO DE JÚPITER CAPITOLINO ( GRAVURA ANTIGA )
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O templo de Júpiter Capitolino, rico e suntuoso, erguia-se, segundo
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RÔMULO E REMO |
Vergílio narra na Eneida, no Capitólio, colina anteriormente coberta de carvalhos, lugar mítico, onde a loba teria amamentado Rômulo e Remo. Nessa região, antes do poder romano se firmar sobre os povos vizinhos, honrava-se o chamado Jupiter Latiaris, Lacial, de caráter ctônico, infernal.
Como deus da luz, eram consagrados a Júpiter os Idos de cada mês (dia que divide o mês em dois, dia 15), festas da Lua cheia, quando o céu se iluminava completamente. Nessa data, seu sacerdote, o Flamen Dialis, o sacerdote de Júpiter, oferecia-lhe uma ovelha branca.
Como deus tutelar da Justiça, do Direito, da Lealdade Jurada e Protetor do Estado, Júpiter presidia as relações internacionais de Roma através do Collegium Fetialium (Fecial: membro de um colégio de 20 sacerdotes, encarregados de declarar guerra conforme ritos muito precisos e de tutelar a redação de tratados). Os juramentos e os tratados eram, para os romanos, tão importantes que eles os gravavam em tábuas de bronze, depositado-os no templo de Júpiter Capitolino.
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AUGUSTO |
Os imperadores sempre procuraram se colocar dentro da aura emanada por Júpiter. Augusto, por exemplo, se vangloriava de ter sonhos enviados diretamente pelo deus. Por ter sido salvo milagrosamente de um raio, Augusto mandou erguer em homenagem ao deus um templo, o de Jupiter Tonans. Calígula exagerou: acrescentou a seu nome dois apelidos de Júpiter, Optimus e Maximus.
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TARQUÍNIO |
Celebrava-se em honra a Júpiter, no circo romano, os jogos anuais,os chamados Ludi Romani, cuja instituição é atribuída a Tarquínio, o Antigo. Os pontos altos destes jogos eram os concursos atléticos e as corridas de carros. Ao lado dos Ludi Romani havia os Ludi Plebeii, nos quais se realizavam corridas (pedestrianismo) e jogos cênicos.
As imagens de Júpiter são grandemente inspiradas na estatuária grega. Há um Júpiter, porém, o chamado Jupiter Volsco (volscos, um povo do Lácio), que apresenta uma peculiaridade inusitada: é representado sob uma aparência bastante jovem e imberbe.
Para entender o Júpiter romano é preciso fazer referência à sua esposa imperial, Juno, sua irmã também. De início, diga-se que
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DIANA |
Juno, ligada a Júpiter, já era encontrada entre os sabinos, os oscos, os latinos, os etruscos e os umbros. Seus nomes mais antigos: Lucina, Lucetia, correspondentes às suas principais atribuições. Juno Lucetia é o princípio feminino da luz celeste, da qual Júpiter representa o princípio masculino. Como Júpiter também, ela é uma divindade lunar, aparecendo como tal sempre associada a Diana.
Deusa da luz, ela é, por extensão, deusa dos partos, relacionando-se sempre a ideia de luz aos partos. Juno Lucina, também. Nesta condição, ela ocupa um papel muito grande nas cerimônias matrimoniais (tornar a mulher mãe) e nas suas consequências. Adquire assim nomes como o de Juno Pronuba, aquela que cuida dos ritos do casamento, que acompanha o casamento; Juno Domiduca (domus + duca, conduzir à casa; Júpiter também tinha o apelido de Domiducus), aquela que conduz a esposa à casa do esposo e a auxilia a transpor a porta de entrada; Juno Nuxia (nux é todo fruto com casca dura, amêndoa; o casamento punha fim, nuces relinquere, aos jogos da infância, às brincadeiras juvenis com amêndoas etc.) é aquela que perfuma a entrada da casa do esposo.
Juno Cinxia (cinctus, cinto) é aquela que desfaz o nó do cinto da virgem esposa. Mais tarde, Juno Lucina protegerá a gravidez da esposa, fortalecerá os ossos da criança, como Juno Ossipago, fará da mãe uma boa nutriz, Juno Rumina (Ruminal era o nome da figueira ao lado da qual Remo e Rômulo receberam o alimento, o leite; por essa razão, Júpiter será também chamado de Ruminus, o que alimenta. Como deusa dos nascimentos, dos partos, Juno era muita reverenciada por mulheres estéreis. Foi Juno Lucina quem livrou as mulheres sabinas vitimadas pela esterilidade por causa de seu rapto. Juno Lucina era o grande modelo das matronas romanas.
Juno não velava só pelas mulheres romanas. Ela também incentivava a procriação nos países dominados por Roma, como Juno Populonia. Sob o nome de Martialis, mãe de Marte, ela estende sua proteção ao aspecto fecundante masculino, recebendo o apelido de Caprotina. Como protetora da cidade e do povo, Juno tomava o nome de Moneta, que tem o significado de a que avisa, a que adverte, do verbo monere, advertir, inspirar. O nome Moneta foi dado à deusa porque seus animais, os gansos, advertiram os romanos quando, de certa feita, os gauleses estavam escalando as muralhas da cidade. Noutra oportunidade foram eles que advertiram os romanos quanto a um iminente tremor de terra. Mais tarde, a administração da cidade instalou perto do templo de Juno a sua Casa da Moeda, passando a deusa também a estender sua proteção, como Moneta, à fabricação das moedas.
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TRÍADE CAPITOLINA |
Dentre as grandes festas celebradas em homenagem a Juno destacamos as Matronalias, celebradas pelas matronas no mês de março, num bosque sagrado no Palatino, e transferidas depois para as casas das famílias, nelas pontificando a mãe da família, sempre honrada, recebendo presentes do marido, sendo admitidos os escravos à mesa. O título de Regina foi dado a Juno quando passou a fazer da Tríade Capitolina. Nessa condição, ela tinha nas mãos um cetro de ouro, uma patera e um raio. Ao lado do marido, seu poder se estendia assim a todo o império.