|
MARDUK |
Entre os mesopotâmicos, quando Marduk, filho mais velho de Ea (literalmente, casa da água), em nome dos deuses, venceu Tiamat, monstro marinho, e distribuiu as atribuições de cada um, o universo foi dividido em três domínios. A Anu coube o céu, a Ea o elemento líquido e a Bel coube a terra. Formavam eles a grande tríade mesopotâmica.
|
ANU |
Bel, a divindade que mais se aproxima do Cronos grego, quer dizer Senhor, recebendo por títulos os nomes de O rei dos Países ou O Senhor das Regiões. Embora Bel e Anu tenham nos céus os seus espaços reservados, o primeiro sempre preferiu residir na Grande Montanha do Leste. Ele acolhe anualmente os outros dois participantes da tríade e juntos decidem sobre os destinos do mundo. É a Bel que nestas reuniões cabe a última palavra.
É Bel quem dispensa para os humanos os bens e os males, podendo inclusive valer-se do dilúvio, como o fez aliás num dia em que, colérico, chegou a ameaçar a humanidade de extinção. Bel atua
|
NINHURSAG |
como uma espécie de divindade civilizadora, ensinando aos humanos muitas artes, como a da construção de casas, de estradas, inclusive a agricultura. Dentre outras atribuições, cabe-lhe a de enfrentar os monstros. Da sua crônica faz parte uma história que nos fala de sua luta e vitória contra um pavoroso dragão. Sua esposa tinha o nome de Ninhursag, a Dama da Montanha, também chamada de Belit, simplesmente a Dama.
|
SATURNO |
Quanto aos gregos, a história de Saturno (Cronos) começa quando Geia, a Mãe-Terra, se revoltou, não aceitando mais as pressões que sobre ela exercia Urano, o Céu, no sentido de reabsorver os filhos que gerara, por ele fecundada. Como primeira entidade mítica a sair do Caos, Geia, que gerara também Urano “em igualdade de esplendor e beleza para que ele a cobrisse”, como nos revela Hesíodo, é o princípio do qual sairão todas as coisas. Foi ela quem criou o
|
PALAS ATHENA |
universo e deu origem à primeira raça dos deuses como é dela ainda que surgirá a primeira raça dos humanos. Esta última afirmação vem da versão mítica que nos fala de Erictônio, ser que ela tirou de seu próprio seio, para oferecê-lo a Palas Athena, transformado no primeiro habitante da Ática.
A Geia sempre coube desde o seu aparecimento o dom da adivinhação (mântica profética), como divindade tutelar do oráculo de Delfos, juntamente com sua filha Themis, divindade das leis eternas, imprescritíveis. Com o avanço das forças patriarcais, o santuário feminino de Delfos foi tomado pelo deus Apolo, que matou o dragão Píton, guardador do santuário.
|
APOLO VENCE PÍTON |
À medida que o mundo patriarcal se impunha, a importância de Geia ia diminuindo, muito embora seu culto sempre tivesse subsistido no mundo grego, reverenciada respeitosamente inclusive pelas dinastias divinas que se sucederam no domínio do universo. Foi no nível popular, entretanto, que a veneração a Geia se manteve mais firme, reconhecidos sempre os seus atributos de primeira profetiza. Representada geralmente como uma mulher gigantesca, de formas fartas, Geia tinha também ação favorável sobre os casamentos e sobre os juramentos que se faziam em seu nome, garantindo-os.
A primeira raça divina, os titãs, nasceu dela e de Urano. Desde Hesíodo, a etimologia (discutível) do nome titã tem relação com o verbo grego agredir, levantar a mão contra (titaino). Admitem-se também para a palavra titã mais duas etimologias: uma faz a palavra ter relação com o cálcio, com o mármore, e outra com a raiz cretense tan, rei. Os titãs formaram a primeira dinastia da mitologia grega.
Geia, que não suportava mais o horror que Urano tinha de seus filhos, todos descontrolados, gigantescos e estapafúrdios, instigou-os para que se rebelassem contra o pai. O mais novo deles, Cronos, atendeu aos apelos da mãe, dispondo-se a enfrentá-lo. A mãe lhe forneceu para tanto uma enorme foice de sílex, com a qual ele o castrou.
|
CASTRAÇÃO DE URANO ( CARAVAGGIO ) |
A foice, como se sabe, foi um dos primeiros instrumentos dos que trabalhavam em atividades agrícolas, os ceifadores, desde as primeiras civilizações do período neolítico. Por essa razão, a foice sempre foi considerada como um atributo das divindades agrícolas, ao evocar, pela sua forma, os ciclos lunares dos quais dependiam as colheitas. A foice pela mesma razão lunar sempre foi considerada também como um atributo de divindades ligadas ao tempo e à morte, como símbolo da destruição de tudo que tomou uma forma.
Reduzido Urano à impotência, Cronos libertou os seus irmãos, os titãs (Oceano, Ceos, Crio, Hiperion e Jápeto) e as titânidas (Teia,
|
CÍCLOPE |
Reia, Themis, Mnemósina, Febe e Tétis), com exceção dos Cíclopes e dos Hecantônquiros, estes encerrados no Tártaro. Assumindo o controle da segunda dinastia, Cronos procurou definir a ordem cósmica, providência que determinou o aparecimento do tempo, coordenada representada pelo círculo, possibilitando assim a sua medida, uma tentativa de se fixar o instante no espaço.
Sob o reinado de Cronos, a obra da criação continuou. As outras divindades, por seu lado, continuaram procriando. Nix, entidade primordial nascida do Caos, gerou sozinha Éter, a camada superior
|
NÊMESIS E TYCHE |
do espaço celeste, situada acima da Lua, e Hemera, o Dia, e outras divindades como os gêmeos Thanatos, a Morte, e Hipnos, o Sono, os Sonhos (Oneiroi), o Sarcasmo (Momo), a Ternura (Philotes) a Velhice (Geras), a Justiça Distributiva (Nêmesis), as Ninfas do Poente (Hespérides), as Fiandeiras (Moiras) etc. Pontos, Onda do Mar, filho de Geia e do Éter, unindo-se à própria mãe, gerou Nereu, Taumas, Forcis, Ceto e Euríbia, todos seres ligados ao elemento líquido. Os titãs, por seu turno, unidos às suas irmãs ou a ninfas, deram origem a uma grande descendência, tornando-se assim o universo múltiplo e variado.
|
HESPÉRIDES |
Quanto a Cronos, unindo-se a Reia, sua irmã, tornou-se ele pai de Héstia, Hera, Deméter, Hades, Poseidon e Zeus, os chamados crônidas. Se Urano devolvia os seus filhos ao seio materno, Geia, Cronos exigiu que Reia, assim que nascidos os seus filhos, ela os levasse a ele, para devorá-los. Tal exigência se devia a um antigo oráculo existente pelo qual se declarava que
|
REIA E CRONOS |
um dos filhos do mais jovem filho de Geia o destronaria. Os cinco primeiros que nasceram foram engolidos pelo pai. O último, Zeus, a mãe conseguiu escondê-lo. Grávida do sexto filho, refugiou-se em Creta, no monte Ida. Nascida a criança, lá deixou-a protegida, entregando a Cronos, envolvida por panos, uma enorme pedra, como se fosse o filho recém-nascido. Cronos nada percebeu, engolindo a enorme pedra.
|
PAUSÂNIAS |
Há uma tradição mítica grega que faz de Prometeu o criador da raça humana. Modelou-a a partir da terra e da água. O ser então criado pelo titã, continua a mesma tradição, recebendo de Palas Athena uma alma, que lhe foi insuflada, ganhou vida. Há um autor grego, Pausânias, viajante e geógrafo (séc. II dC), que nos informa ter visto em Panopeia, na Fócida, pedaços de argila endurecida que tinham o odor de pele humana e que, segundo
|
PÍNDARO |
ele, eram com toda a certeza resíduos do barro usado por Prometeu. Outras versões, porém, como a de Píndaro, poeta grego (sécs. VI-V aC), fazem o aparecimento dos humanos remontar a datas bem mais antigas. Dizia o nosso poeta que deuses e humanos são da mesma família, devendo ambos o mesmo sopro que os anima à mesma mãe original.
Duas etimologias podem ser admitidas para a humano: uma
latina, o nascido do húmus, isto é, do solo, do chão, da terra; outra é do grego, homoios, semelhante, isto é, o homem seria uma síntese do universo, seu modelo reduzido. Os elementos que o constituem são os mesmos que compõem o universo. O organismo humano, nesta concepção, forma uma unidade harmônica, um microcosmo implantado no macrocosmo, verdade expressa em várias tradições, como na arte médica chinesa (Nei-Kung) ou no Hermetismo greco-alexandrino.
Segundo o mito, os humanos contemporâneos de Cronos, gozavam de uma felicidade completa. Viviam na chamada Idade do Ouro como deuses, diz Hesíodo, livres de inquietações e de
|
HESÍODO |
fadigas; a cruel velhice não os afligia; em meio a festas, eles se alegravam. Todos os bens lhes eram concedidos; a própria terra, como providência, lhes oferecia abundantes tesouros. Embora não compartilhassem a imortalidade com os deuses, morriam sem sofrimento, como que levados para um Outro Lado por um suave sono. Na Idade do Ouro, ao morrer, os humanos se transformavam em gênios benfeitores, protetores e guardiões dos mortais. Como veremos, porém, as coisas não eram assim tão maravilhosas na realidade...
Na Idade da Prata, a idade seguinte, os homens se tornaram fracos e ineptos. Morriam cedo, pouco depois da adolescência, vitimados pela própria estupidez e impiedade. tudo porque haviam deixado de fazer sacrifícios aos deuses, prática constante na Idade do Ouro. Na Idade do Bronze, a seguinte, entregaram-se às injúrias e aos trabalhos do deus Ares e aos conflitos. Seu impiedoso coração tinha a dureza do ferro, sua força era indomável, seus braços invencíveis. Nesta idade é que ocorreram as primeiras descobertas dos metais e os primeiros esforços civilizadores.
Depois da Idade do Bronze, Hesíodo inseriu a chamada Idade dos Heróis, na qual viveram valentes guerreiros que combateram em Tebas, em Troia e outros lugares. A seguir, a última idade, a do Ferro, a atual, onde nos encontramos, época de guerras constantes, misérias, corrupção e crimes, idade na qual nada se respeita, a justiça, a virtude, os juramentos e a fé. Da Idade do Ouro, na qual tínhamos 4/4 da virtude, passamos à da Prata, com 3/4 da virtude (1/4 de crimes e malefícios), à do Bronze, com 2/4 de virtudes e de crimes e malefícios na mesma proporção, e chegamos à do Ferro, a atual, na qual temos apenas 1/4 de virtudes.
Hesíodo, ao que parece, já conhecia uma concepção semelhante à
|
QUATRO YUGAS |
que acima apresentamos, proveniente da Índia, do mundo védico, a das quatro Yugas: Krita Yuga (Ouro), Treta Yuga (Prata), Dwapara Yuga (Bronze) e Kali Yuga (Ferro). Eram as quatro Yugas que nos falavam da degradação do universo. Hesíodo, para a elaboração de sua teoria, partiu certamente de um sistema de correspondência entre metais e planetas, assim estabelecido em ordem decrescente, hierarquizada: Sol-ouro; Lua-prata; Mercúrio-mercúrio, Vênus-cobre; Marte-ferro; Júpiter-estanho; Saturno-chumbo.
Enquanto Cronos reinou (Idade do Ouro), o entendimento entre deuses e humanos foi mantido, segundo os poetas. Hesíodo nos diz que deuses e humanos faziam refeições em comum e que para o ajuste da convivência entre ambos realizavam-se assembleias. Muito embora nesta idade tudo se regulasse relativamente a contento, alguns problemas já se faziam notar na convivência estabelecida, segundo as regras ditadas por Cronos, o Senhor desta segunda dinastia, conhecida pelo nome de Esquizogenia (Cosmogenia foi o nome dado à primeira, comandada por Urano). O nome desta idade faz referência à castração de Urano por seu filho Cronos. A palavra esquizogenia vem do verbo grego skhizein, fender, separar. Ou seja, a criação pelo corte, pela separação.
O nome Cronos, como vimos, designa tempo em grego, o tempo que tudo devora. O tempo, como sabemos, é o período que vai de
um acontecimento anterior a um acontecimento posterior. Ou, se quisermos, o tempo é mudança contínua pela qual o presente se torna passado. Vale aqui, mais do que nunca, a frase de Bergson (A Evolução Criadora): A inteligência tem repugnância pelo que flui e solidifica tudo o que toca. Nós não pensamos o tempo real; mas nós o vivemos porque a vida excede os limites da inteligência.
Na Grécia antiga, por volta do séc. VII aC, data do início do pensamento filosófico, uma confusão se estabeleceu em torno do
|
AMPULHETA |
nome Cronos, titã filho de Urano e de Geia, e Kronos, o Tempo. O verbo que está por trás desta palavra é kraino, acabar, completar, realizar, terminar. Cronos seria assim o deus que conduzia as coisas a seu termo, ao seu fim. O deus tornou-se então o Tempo que amadurece as coisas; por extensão, tornou-se o deus que conduz os seres à sua maturidade e ao seu fim. Esta assimilação trouxe a ideia de duração, de período que se cumpriu.
Uma das primeiras ideias associadas ao tempo já na antiguidade foi a de que ele era um devorador, um comilão, um glutão. Desde a mais remota pré-história, o ser humano associou o tempo a uma goela monstruosa que tudo devorava. Esse espetáculo ele o percebia diariamente, na lenta e inelutável sucessão dos dias e das noites, no infinito fluir das formas.
Foi por essa razão que os gregos deram também o nome de Aion, a Cronos como personificação do tempo. Na linguagem popular, a palavra aion entre os gregos era usada para designar um período qualquer de vida. Foi Parmênides, como se sabe, quem a usou como conceito filosófico para lhe atribuir o sentido de tempo absoluto, de eterno presente, que nega o devenir e, como tal, anula as distinções entre passado e futuro. Ou seja, entender aion como absoluta simultaneidade.
Segundo esta ideia, Cronos, antes da geração de seus filhos, era considerado como uma divindade remota e sem corpo que rodeava o universo criado (espaço), conduzindo a rotação dos céus e de tudo o que nele se encontrava, uma potência (dynamis) nunca contestada, que ficava além do alcance e do poder de outras divindades.
A maioria dos poetas, especialmente Hesíodo, sempre considerou a Idade do Ouro, que coincidiu com a reinado de Cronos, como algo muito favorável para os humanos. Na realidade, porém, Cronos foi um soberano incapaz de admitir qualquer modificação nas estruturas e na ordem concebidas por ele. Neste sentido, ele sempre lembrou um conservadorismo cego, obstinado, uma perfeição estagnante se quisermos, decorrente de suas atitudes com relação à sua necessidade de concentração de poder, da sua rigidez e de eliminar qualquer forma de sucessão.
Pelo lado dos imortais e humanos a ele se submetidos, nenhuma possibilidade de independência. Acomodados às suas regras, nunca souberam viver diferentemente. Recusavam-se mesmo a perder aquilo que Cronos havia instituído. Neste sentido, é que Cronos se torna o poder da tradição, o poder dos mais velhos, da autoridade consagrada pelo tempo. Tudo isto atrelou os que viviam na Idade de Ouro a um tipo de comportamento que levava a um progressivo apagamento do eu, tornando-os vítimas do chamado complexo de Cronos, acorrentados que ficavam a um destino de frieza e de isolamento.
Ao complexo de Cronos damos também o nome de complexo do sucessor ou do herdeiro. Nos tipos mais comuns, temos os casos dos que jamais se sentem à altura do pai. Daí a sua defensividade, o seu temor, a dúvida e, o pior, o seu eterno autoquestionamento. É por isto que Saturno, na astrologia, é representado muitas vezes pela imagem de um velho que carrega uma foice numa das mãos. É por essa razão também que Saturno é conhecido como o planeta da melancolia, um estado mórbido caracterizado por um grande abatimento moral e físico, hoje considerada nos meios técnicos como uma das fases da psicose maníaco-depressiva ou distúrbio bipolar.
O complexo de Cronos, sobretudo com a contribuição astrológica, sugere ideias de frieza, secura, desenxabimento, que sempre aparecerem associadas às figuras do velho (senex negativo), do ancestral, do pai, do órfão e a posturas, atitudes ou características que lembram limitação mortificante, memória incomum, retiro, buscas mentais profundas, erudição, solidão, uma noção permanente de pesos e medidas (pondus et mensura), esterilidade. Com o complexo de Cronos sempre presente também a ideia de canibalização. Isto é, o eu é devorado. Uma das mais perfeitas ilustrações do que aqui se coloca é a tela de Goya, Saturno devorando os seus filhos.
Simbolicamente, associa-se o complexo de Cronos a tudo aquilo que lembra apagamento, aniquilação, autocrítica negativa, frustrações afetivas. Não é por acaso que em muitas tradições são usados animais de enormes bocarras, de reconhecida voracidade, para representar estas ideias. É esta bocarra que, com o nome de Noite, engole ao final de cada dia o Sol para devolvê-lo a cada manhã. A escultura religiosa (glíptica) dá muita importância aos símbolos da bocarra ou da goela para lembrar a morte iniciática, a passagem de um estado a outro. Temos assim as imagens de baleias, leões, crocodilos, lobos, jaguares e outros animais para representar a morte simbólica e o renascimento.
|
MAKARA |
Um dos exemplos mais ilustrativos do que estamos a dizer pode ser encontrado na antiga astrologia (Jyotish) da Índia, dos tempos védicos. O signo de Capricórnio, que abre o solstício de inverno, era chamado de Makara, crocodilo, na língua sânscrita. Animal sobrevivente das trevas primordiais, o crocodilo, voracíssimo, Makara nos fala do período hibernal (21 de dezembro-21 de março), em que o Sol parece ter sido devorado.
O complexo de Cronos ou de Saturno encontra na foice um dos seus melhores símbolos, na medida em que este instrumento, como se disse, lembra o crescente lunar, colheita e morte. Separar, cortar, fender, em grego, é, como se disse, skhizein, base da palavra esquizofrenia e suas formas, como a catatônica. Esta esquizofrenia se caracteriza como uma psicose endógena cujos sintomas fundamentais apontam para a existência de uma dissociação entre a ação e o pensamento, expressa por uma sintomatologia variada. No caso, muitas vezes, problemas psicomotores associados a sintomas como imobilidade motora, diminuição da atividade, negativismo, mutismo, ecolalia (forma de afasia em que o paciente repete mecanicamente palavras ou frases que ouve; característica também encontrada em muitos librianos) etc. A vítima do complexo de Cronos ou de Saturno se castra, separa-se da vida. Ou seja, o ser é impedido de ser profícuo, eficaz, pela anulação ou limitação de suas iniciativas pessoais ou se sua própria personalidade.
Do ponto de vista paterno, o complexo de Cronos é imposto pelo princípio da autoridade, pelo soberano que se nega a reconhecer mudanças, que não aceita que tudo o que entre na existência deva passar por transformações. Fixado nas suas prerrogativas, o Pai impede qualquer forma de sucessão, nenhum acesso dos filhos a qualquer forma de liberdade. Cronos funciona como providência, mas impede a independência. Porque tudo é concedido àqueles que vivem na aetas aurea, porque o Pai é providência eterna, não se pode pensar em mudança, em transformação, em reivindicação, mas tão só em imobilismo e submissão. Uma perfeição estagnante, mas sempre, em qualquer caso, uma contradição inelutável, pois a vida não pode parar.
|
SACRIFÍCIO DE ISAAC ( DETALHE TELA CARAVAGGIO ) |
Ao representar também tudo aquilo que simboliza a interdição à figura materna e o acesso individualizado ao mundo (tudo deverá ser feito em nome do Pai, como está nas religiões patriarcais), Cronos, mesmo na sua versão “bondosa e protetora”, como instituidor da idade áurea, acaba sendo, em muitos casos (todos?), o ser em que muitos, seus dependentes, querem se tornar. Uma identificação desta natureza implica sempre a morte de um Pai e o nascimento de outro Pai, com características semelhantes. É por
esta razão que o complexo de Cronos pode ser considerado como o complexo de Édipo às avessas. Para estudos sobre o complexo de Cronos ou de Saturno podemos, além dos modelos que as religiões patriarcais nos legaram como o pater familias, recorrer a ilustrações bíblicas (Abraão e Isaac), literários (Franz Kafka - Carta a Meu Pai; Thomas Mann – Os Budenbrook) ou ainda a filmes como Pai Patrão e Caráter, além de muitos outros.
Uma vertente da mitologia grega pela qual podemos estudar Cronos é a da chamada cosmogonia órfica. De natureza primitiva, popular,
|
ORFEU |
o orfismo teve por fundamento certos escritos atribuídos a Orfeu, mas, na realidade, de autoria de um sacerdote da seita, de nome Onomácrito. No mito, Orfeu é um poeta e cantor que encanta não só os humanos e os imortais, mas o mundo vegetal e animal, com as suas canções. Tendo perdido a sua noiva, Eurídice, picada por uma serpente, dispôs-se a ir ao Hades para resgatá-la. Tendo recebido de Plutão autorização para trazê-la de novo à vida, perdeu-a porque “olhou para trás”.
Inconsolável, saiu do Inferno resolvido a nunca mais manter contactos com mulheres. Foi Orfeu, por isso, punido pelo deus Dioniso, sendo seu corpo despedaçado por suas sacerdotisas, as mênades, e por gente da região em que vivia. Os deuses, entretanto, como punição (um “acréscimo” patriarcal ao mito), fizeram com que uma catástrofe se abatesse sobre o lugar. O mal só seria aliviado com uma condição: a cabeça do poeta deveria ser recuperada e instituído um culto (religião de salvação) em seu nome, o que efetivamente aconteceu.
Historicamente, dá-se o nome de orfismo a uma corrente religiosa que se estendeu pela Grécia desde a época arcaica, de origem desconhecida. Os documentos históricos que temos sobre ela datam do séc. VI aC. Seus adeptos faziam seu culto remontar a Orfeu, o músico mítico da Trácia. O orfismo possuía uma teogonia e uma cosmogonia que alguns tentaram erradamente aproximar da de Hesíodo.
O orfismo, em certo sentido, pode ser considerado mais uma doutrina metafísica, com preocupações filosóficas e científicas, que uma construção mitológica. No princípio, diz a doutrina, só havia o Tempo (Cronos), do qual saíram o Caos, que simbolizava o infinito, e o Éter, que simbolizava o finito. O Caos apareceu envolvido pela
|
PHANES |
Noite; pela lenta ação criadora do Éter sobre a Noite, a matéria cósmica foi se revelando. Esta tomou finalmente a forma de um ovo, do qual a Noite constituiu a casca. No seio deste ovo gigantesco, cuja parte superior formava a abóbada celeste, e a parte inferior formava a terra, nasceu o primeiro ser, Phanes, a Luz. Este, unindo-se à Noite, criou o céu e a terra. Foi ele igualmente o princípio gerador de Zeus.
Encontramos na doutrina órfica muitas divindades do panteão helênico, adquirindo elas, porém, um caráter cósmico e simbólico. Revela-se o orfismo como uma seita de tendência universalista ao admitir uma divindade única e de caráter panteísta, com fortes traços orientais (Índia), na qual Zeus se torna o princípio (alfa) e o fim (ômega) de toda a existência, como fonte de tudo e à qual tudo retorna.
O mito central do orfismo é o de Zagreu, filho de Zeus e de Perséfone. Perseguido pelos Titãs, foi o menino-deus por eles morto (despedaçado, diasparagmos), na forma de um bode. O coração do menino-deus foi recolhido por Palas Athena e entregue
|
SÊMELE |
por Zeus a uma princesa, Sêmele, para que ela gerasse um novo ser divino. Zeus, contudo, aparecendo sob a sua forma divina a Sêmele, a destruiu. O feto que se desenvolvia no ventre dela foi alojado então por Zeus em sua coxa. No tempo devido, o ser divino foi dele retirado, pronto para a vida, recebendo o nome de Dioniso, o deus de Nysa (o nascido duas vezes). Quanto aos Titãs, foram eles fulminados por Zeus e de suas cinzas nasceram os humanos, formados por dois elementos: um, terrestre e perecível, proveniente dos filhos de Urano e de Geia, e outro, dos pedaços de Zagreu ingeridos, divino e eterno. Daí, a dualidade eterna, espírito-matéria, nos seres humanos.
Outro aspecto do orfismo nos fala da sua cosmogonia, que faz referência a um ovo de prata nascido do Caos. Da divisão deste ovo teriam nascido os seres portadores dos germes de todas as coisas, depois o céu e a terra. A escatologia do orfismo consistia na crença que o ser humano possuía uma alma imortal que havia decaído por causa de um pecado original e que por sucessivas encarnações se purificaria por uma tendência natural ao Bem, retornando a Zeus.
A verdadeira via de salvação, para os adeptos, estava na iniciação órfica. Os iniciados eram sepultados com tabuinhas ou lâminas de ouro sobre as quais eram inscritas frases rituais e palavras de esperança, nas quais se declarava que o adepto pertencia à bem-aventurada raça dos imortais e que sua alma era filha do céu estrelado.
Desde o período arcaico da história grega, o orfismo foi pregado por sacerdotes ou por iniciados que praticavam o ascetismo, abstendo-se do consumo de carne animal. Os mais antigos textos órficos vêm do período arcaico da história grega e são atribuídos, como se disse, a Onomácrito, que era cresmólogo (chresmos, resposta de um oráculo). Adivinhos que prediziam o futuro pela consulta de determinados livros ou por inspiração divina direta, os cresmólogos iam de cidade em cidade, fazendo as suas previsões, gozando de grande fama.
O orfismo influenciou todas as manifestações religiosas da antiga Grécia. Píndaro, por exemplo, retoma o tema da reencarnação; Ésquilo e Sófocles retiraram do orfismo muitas informações para a construção de seus personagens; muito do que encontramos em Platão (doutrina do corpo como túmulo da alma; queda da alma no plano da matéria, a questão da sua preexistência etc.) vem do orfismo. Esse débito do platonismo com relação ao orfismo é pouco explorado pelos filósofos.
Cronos sabia por uma sentença oracular que um de seus filhos o suplantaria. Para evitar que tal acontecesse, ele resolveu engolir os filhos assim que nascidos. Reia, desolada, condenada a ver toda a sua progenitura desaparecer, grávida do seu sexto filho, pediu auxílio a Urano e Geia. Foi aconselhada então a ir para Creta e lá, no fundo de uma gruta, dar à luz ao seu sexto rebento. Geia ficaria lá cuidando dele enquanto Reia, envolvendo uma grande pedra com panos de linho, o apresentava a Cronos como se fosse seu filho recém-nascido. Sem nada perceber, Cronos engoliu a enorme pedra.
|
MONTE IDA |
No monte Ida, Geia tomou providências para que o recém-nascido
|
AMALTEIA |
fosse alimentado e vigiado. Convocou as ninfas melissas (méli, mel, abelha) e a cabra maravilhosa Amalteia (malthakos, suave, doce, leite) para cuidarem da sua alimentação. Quanto à segurança, encarregavam-se dela os Curetes (Jovens guerreiros, etimologicamente). Sabe-se que desde tempos muito remotos os gregos falavam de um povo da Etólia por eles chamado de gegeneis (filhos de Geia) ou de
|
MELISSA |
imbrogeneis (crianças da chuva). No mito, eram gênios ctônicos, tinham um caráter demoníaco, considerando-os também alguns como membros de um colégio sacerdotal cretense voltado a um culto orgiástico de Reia, como Grande-Mãe. Distinguiam-se por sua aparência, sendo ao mesmo tempo militares e religiosos. No fundo da caverna que Reia havia escolhido para esconder seu filho, os Curetes, para que os gritos da criança não fossem ouvidos, dançavam dia e noite, entrechocando as suas lanças e escudos.
|
CURETES |
Assim protegido, Zeus cresceu nas florestas do monte Ida. Sentindo-se forte e preparado, atreveu-se a enfrentar o pai, pedido ajuda da deusa Métis, filha do deus Oceano. Foi ela quem deu a Zeus uma beberagem que ingerida inadvertidamente por Cronos fez com que ele vomitasse todos os filhos que havia engolido. Vencido pelo filho, que comandou a revolta contra o pai, Cronos foi expulso do céu e encarcerado no Tártaro, o mais profundo do mundo infernal. Mais tarde, como se sabe, sentindo-se seguro, Zeus enviará seu pai para o País dos Bem-Aventurados, de onde ele se dirigiu, muito mais tarde, para a península itálica, assumindo o nome de Sator como divindade civilizadora.
|
DELFOS |
Para celebrar a sua vitória contra o pai, Zeus fixou a pedra que Reia havia dado a ele no seu lugar nas montanhas, junto do oráculo de Delfos, de Geia e de Themis, lugar sagrado mais tarde conquistado por Apolo. Com estas providências, instaurava-se a ordem olímpica sob a tutela de Zeus.
|
HADES ( JAN BRUEGHEL , O VELHO - CA. 1600 |
Cronos, como vimos, terminou os seus dias no Tártaro. Analogicamente, lembramos, esta é uma situação em que o planeta Saturno, sob o ponto de vista astrológico, poderá nos colocar. É neste sentido, aliás, que Saturno é tanto o planeta da elevação como o das grandes quedas. Saturno já foi senhor do universo e acabou isolado, preso, solitário, num lugar escuro, no Hades. Temos aqui claramente ideias de poder, de glória (deus da Idade do Ouro) e de banimento e humilhação (exílio, Tártaro), ideias que estão muito presentes quando Saturno atua dessa maneira dupla num mapa astrológico. Um caso astrológico recente ilustra exemplarmente a elevação e a queda saturninas, o do capricorniano presidente norte-americano Richard Nixon.