quinta-feira, 25 de março de 2021

OS MONSTROS - II

              

SOLUTIO

Evidentemente estas experiências relacionadas com a solutio são sempre dolorosas, pois, no geral, se dão, em meio a muito sofrimento, por uma descida ao mundo inconsciente, ao nosso inferno pessoal. Uma espécie de imersão acompanhada sempre de muita angústia e medo porque, de qualquer maneira, ela é sempre um desmentido da pretensa autonomia e do poder do nosso ego. Pode-se dizer, por isso, correndo o risco da generalização, que não há uma solutio agradável ou feliz.


O caos, na perspectiva em que aqui o abordamos, precede sempre a existência. Lembre-se: a constituição da ordem cósmica implica três elementos, fixados na seguinte ordem, segundo A Teogonia, o poema de Hesíodo: caos, existência e cosmos. Esta é também a ordem do nosso processo de individuação, se o entendemos segundo a lei universal da correspondência:   inconsciente, consciente e supraconsciente. Por essa lei, sabemos que existe uma correspondência entre as leis e os fenômenos da natureza nos diversos planos da existência. Esta lei pode ser assim também resumida: o que está em cima é como o que está em baixo e o que está em baixo é como o que está em cima, tudo para que se perpetue a unidade. Esta lei não nos fala de igualdade ou semelhança, mas de analogia, de correspondência. 


GEIA  ( BRONZE )
A primeira entidade a sair do caos foi Geia, a Grande-Mãe Terra, o ponto de partida de todo processo criador, fato que consagra indiscutivelmente o princípio feminino como o ponto de partida de tudo o que entra na existência. Distando de Geia, simetricamente dispostos, um em oposição ao outro, temos acima dela o céu, por ela gerado, “em igualdade de esplendor e beleza para que ele a cubra”, como diz Hesíodo, e de outro, abaixo dela, o Tártaro, a mais profunda camada do mundo infernal, escuridão absoluta, região jamais atingida pela luz. Ou, se quisermos, sob o ponto de vista psicológico, de um lado, o céu para o supraconsciente e o inferno para o subconsciente (inconsciente). Entre eles, a Terra, para o homem e a sua consciência, o sentimento que cada ser humano tem de sua existência e de seus atos.

É próprio da matéria caótica e dos seres maléficos, monstruosos, que nela "vivem", oporem-se a qualquer tentativa de controle, de imposição de uma ordem. E mesmo que dominados a matéria caótica e os seus monstros  temos sempre, de um lado, quanto à primeira, a sua constante luta para escapar dos limites que a ela se procure impor e, de outro, quanto aos outros, o fato de, mesmo "morrendo", renascerem, ou se reproduzirem com extrema facilidade através de processos que lembram biologicamente a cissiparidade, a neoplasia  e  a partenogênese. Embora momentaneamente dominados, aproveitam-se os "nossos" monstros de qualquer oportunidade para retornar, ameaçando a nossa suposta autonomia, conquistada com tantos esforços.

Uma das ilustrações do que estamos a dizer pode ser encontrada na escuridão dos nossos intestinos. Pela lei da correspondência, por exemplo, como uma contrapartida do que acontece no nosso psiquismo, ocultamente aninhados, fazendo-nos muito mal, podemos  detectar alguns “monstros”, vermes cestoides, como as tênias, que, como se sabe, costumam atingir vários metros de comprimento. 


PHTONOS
Uma  analogia do que aqui estamos a dizer pode ser encontrada, pela lei da correspondência, quando aproximamos mente humana (vida psíquica) e intestinos. Em ambos temos ideias de escuridão, interioridade, inconsciência. Os monstros que vivem no Jardim de Perséfone, como Lyssa (Raiva), Phtonos (Inveja) e Apateia (Apatia), Eris (Discordia), Algia (Dor), Geras (Velhice) e outros,  perfeitamente identificados no mito, que, do nosso inconsciente pessoal, invadem o campo da nossa consciência, infernizando a nossa vida, são equivalentes àqueles que na escuridão dos nossos intestinos, como tênias (vermes cestoides) e outros, por exemplo, podem ali ficar a se nutrir do que ingerimos. 

MERCÚRIO

A ciência moderna, hoje, combate com relativa facilidade os nossos vermes e outros seres que atacam o nosso a parelho gástrico, mas parece fracassar com relação aos monstros que se acomodam, com muita facilidade, no nosso psiquismo. Talvez um dia as coisas melhorem quando os homens da ciência entenderem que Mercúrio (Hermes grego), astrologicamente, é a  divindade que tanto governa  a mente humana como os intestinos. Sua função é a de receber o que entra, avaliar, separar, discriminar devidamente, rejeitar o desnecessário (dando a este o respectivo destino final) e distribuir adequadamente o aproveitável, o saudável, para garantir a nossa higidez em ambas as áreas, física e mental. Vale aqui lembrar o trabalho que damos ao nosso Mercúrio Virgo quando não temos noção de hábitos alimentares mais saudáveis, a sobrecarga que a ele "levamos" quando não controlamos  o que ingerimos. Ou, no outro plano, no mental, quando nos submetemos passivamente aos imbecilizantes  processos comunicacionais que a moderna tecnologia põe hoje em circulação em escala mundial.

Antes, porém, como caracterizar um monstro mítico? Para os nossos propósitos, ele não é, antes de mais nada, uma besta ou um animal qualquer que foi parar nas histórias mitológicas, um leão, um cavalo ou um cão. O que o caracteriza sobretudo é que ele não existe realmente, é uma invenção da mente (imaginação) humana, mas sua  “realidade” é indiscutível. Não faz parte do mundo objetivo. Isto é, tem existência subjetiva, opondo-se, neste sentido, ao conceito de existência material, positiva. Monstros são símbolos, algo que o homem construiu para representar certos estados interiores que experimenta, medo, inveja, incerteza, culpa, remorso etc., que dificultam ou se opõem ao que ele considera como buscas de um sentido evolutivo de vida, desejos de sucesso, de felicidade, de transcendência.

CAPRICHOS  ( GOYA, 1746 - 1828 )

Desde a pré-história, os homens usam certas coisas, como imagens ou objetos, nas quais vêm alguma relação com o que querem representar, para significar outras, dando-lhes sentidos e valor. Este é o chamado processo simbólico, talvez a principal característica a distinguir o homem dos animais. Estes, ao que parece, não usam símbolos. Os homens, ao contrário, vivem mergulhados num universo simbólico. Lutam e morrem por eles, tornam-se brutais e violentos por causa deles, fazem guerras. 

Sabemos que dentre todas as formas de simbolismo a linguagem humana é a mais desenvolvida. Podemos fazer com que determinados sons que produzimos representem certos coisas que nos acontecem, afetando o nosso sistema nervoso. Mensagens verbais ou escritas que emitimos, risos, palmas, assobios, gritos são exemplos do que estamos a dizer. Na Internet, nos USA, inclusive, em certos meios, usar maiúsculas pode ser um sinal de agressividade. 


AQUILES
De um modo geral, aparentemente, acentue-se, símbolos e coisas simbolizadas não têm nada em comum. Entretanto, se os observarmos mais detidamente poderemos perceber que entre coisas tão distintas às vezes pode haver muita semelhança. Dá-se o nome de analogia a essa relação. O prefixo ana da palavra analogia, como se sabe, tem o sentido de repetição. Daí se falar em analogia entre sentimentos e cores, entre metais e seres humanos. O vermelho sempre expressou violência. Não é por acaso que Aquiles, o maior dos guerreiros gregos, tem um temperamento colérico e é ruivo, avermelhado; podemos falar de pessoas-antimônio, próximas da “perfeição”, mas que podem às vezes cair das suas “alturas”, ou de pessoas-chumbo, taciturnas, rabugentas, que vivem olhando para o passado e que podem ser um modelo de autodisciplina.

AMMIT
Os antigos egípcios, ainda exemplificando, quando tiveram que construir uma imagem para representar o assustador monstro devorador das almas condenadas que atuava na sua psicostasia, Ammit ou Ammut, o compuseram com partes do crocodilo, do hipopótamo e da pantera. O primeiro é um réptil, um animal das águas primordiais, uma sobrevivência ameaçadora, um representante do mal. Voraz e hipócrita (sempre com uma “cara” de quem não quer nada) infestava as águas do rio Nilo. Ele faz parte da grande galeria dos devoradores, animais que se 
MAKARA
distinguiam por sua enorme boca e goela com relação ao corpo (jaguar, lobo, leão, sucuri, anaconda, baleia, crocodilo) e que, por isso, foram usados para simbolizar as trevas, como a noite que tudo engole. Na Índia o crocodilo aparece associado ao solstício de inverno, período do ano em que o Sol é “engolido”pelas trevas hibernais, dando-se o nome de Makara (crocodilo, em sânscrito) a  Capricórnio, signo no qual o Sol ingressa em 21 de dezembro, anualmente (solstício de inverno).

SOBEK

Os egípcios, diga-se de passagem, davam uma posição proeminente no seu panteão ao deus-crocodilo Sobek ou Soukhos, ainda que uma aura de maldição cercasse esta divindade. Tal se devia a uma história em que se narrava o assassinato do deus Osíris por seu irmão Seth, que, para fugir da responsabilidade pelo crime, encontrara refúgio no corpo de um crocodilo. 


BEHEMOT ( WILLIAM BLAKE, 1757 - 1827 )

Já o hipopótamo (cavalo de rio), muito comum no Nilo, é um herbívoro, conhecido como devorador de colheitas. É considerado uma manifestação das forças negativas universais e inimigo dos humanos. Faz parte do séquito de Seth, gênio do mal, grande inimigo de Osíris. Lembremos que um dos grandes demônios do mundo judaico, Behemot (fera, em hebraico) teve a sua forma inspirada pelo hipopótamo egípcio.

MÊNADE COM TIRSO E PANTERA
Quanto à pantera (etimologicamente, animal do grande todo), consagrado a Dioniso na Grécia, é tradicionalmente vista como símbolo da astúcia diabólica e da heresia, “escondendo sob uma expressão de alabastro uma alma de ébano”, como nos dizem antigos textos. Além de Dioniso, a pantera aparece associada a Afrodite, à Grande-Mãe Cibele, da Ásia Menor, e à maga Circe.

GOLEM E RABINO

Os monstros podem ser formados por várias partes de animais diferentes como é o caso de Ammit, acima apontado, ou do centauro-peixe apontado no início deste texto. Noutras vezes, são criados por multiplicação de partes do corpo, como  a Hidra de Lerna, com as suas nove cabeças, ou como Cérbero, cão infernal, tricéfalo. Alguns combinam o animal e o humano, como o Centauro, a Sereia ou o Minotauro. Outros são fabricados artificialmente, como o Golem ou Frankenstein, a partir do modelo humano.


TIFON ( VASO GREGO )
Não podemos esquecer, como já mencionei, aliás, que há uma estreita ligação entre os mitos de criação nas várias tradições e monstros. Lembremos da tradição mesopotâmica (O Épico da Criação), em que Tiamat, monstro feminino, símbolo do caos primordial, personificação do grande oceano, cria um grupo de monstros para a auxiliar na luta que trava contra Marduk, o deus-herói, que a obrigará a se fixar em determinados limites. Depois, Marduk matará os monstros por ela criados.

ÉQUIDNA
O drama da criação entre os gregos também inclui o aparecimento de monstruosas criaturas, como Tifon (Tempestade) e Équidna (Serpente), ambos filhos de Geia e do Tártaro, ou seja, da Terra e do Não-Ser. Agentes do caos, irmãos, ambos são poderosíssimos. A cabeça de Tifon ultrapassava as mais altas nuvens do céu; de braços abertos, ele alcançava com facilidade o leste e o oeste. Possuía asas, soltava fogo pelos olhos,  seu corpo era coberto de serpentes. Ao andar pelos oceanos, sua cabeça ficava sempre acima da superfície das águas. Équidna era mulher até a cintura e monstro daí para baixo. Muito fértil, unida ao irmão, o único que podia fecundá-la, gerou inúmeros monstros que tanto infelicitam a humanidade. É um dos grande símbolos da libido insaciável.

VRITRA
Dentre as várias características dos monstros míticos ressaltamos uma, muito importante, a da posse e o controle das forças naturais e dos elementos por alguns deles, como a água e o fogo. Em muitas histórias, temos dragões que soltam fogo pelas ventas ou que através do elemento líquido provocam grandes catástrofes. Na China, ao contrário do ocidente, os dragões exercem ações benéficas, controlando as águas e distribuindo as chuvas na medida certa, na estação devida. Recorde-se que na mitologia hindu, o dragão Vritra, demônio da seca, tem a sua casa nos céus e é responsável por longos períodos de estiagem que tanto prejudicam o território indiano. É preciso que Indra, o senhor do raio e dos elementos, o ataque para que a terra receba as chuvas necessárias, que podem vir dos céus, inclusive com grande violência. 

HESPÉRIDES

Dragões e serpentes na mitologia costumam exercer a função de guardiões, servindo de exemplos o de Delfos, de nome Piton, morto por Apolo, e o de nome Ladon, que dava assistência às ninfas do poente, as Hespérides, que guardavam no seu jardim os pomos de ouro recebidos por Zeus e Hera, da Mãe Geia, quando de seu casamento (3º trabalho de Hércules).

SÃO  JORGE  E  O DRAGÃO  ( PAOLO  UCCELLO, 1397 - 1475 )


A arte, a escultura principalmente, é de grande valia para o estudo dessas criaturas, muito usadas, pelo seu hibridismo, para marcar certas fronteiras e  limites entre o demoníaco, o humano e o sagrado. No Antigo Testamento, o dragão está na causa da morte, do afastamento do divino, e na origem do pecado. Estas ideias foram levadas para o Novo Testamento, passando o dragão a representar tudo que era de Satã e obra dele. O dragão foi muito usado pela Igreja Católica para simbolizar também a heresia. 

Na Idade Média, como se sabe, no seio da cristandade, surgiram várias heresias e cismas; quanto às primeiras, negações de doutrinas da Igreja oficialmente definidas e, quanto aos outros, movimentos de deliberada separação para a constituição de um corpo separado. O grande símbolo destes movimentos separatistas era o dragão, tendo sido fundadas diversas ordens de cavalaria que tinham por objetivo a “morte do dragão”, como foi o caso, exemplificando, da cruzada contra Jan Hus, reformador religioso tcheco (séc. XV).

Na Idade Média cristã, as bestas míticas perderam um pouco a sua dimensão de inimigas da ordem cósmica e da sua grande ferocidade, tornando-se, em muitos casos, símbolos das paixões humanas e dos ataques do mundo sobrenatural àqueles que pretendiam trilhar o caminho da ascese cristã. Por essa razão, por exemplo, o Lycorne (Lyon Cornu, Leão de Chifre), símbolo do signo astrológico de Capricórnio foi transformado no doce e gentil Unicórnio sob as carícias da Dame, como temos no fantástico  conjunto das seis tapeçarias de La Dame à la Licorne, confeccionadas entre 1484 e 1500, por Jean La Viste, hoje no Museu Nacional da Idade Média, nas Termas de Cluny, em Paris, França.


Este conjunto forma uma alegoria dos cinco sentidos, que se fecha, na sexta tapeçaria, com uma frase que a encima: À mon seul désir, ou seja, segundo o meu livre-arbítrio, sem nenhuma sujeição ao que os sentidos pedem. Esta tapeçaria lembra, sob o ponto de vista astrológico, que o caminho de Leão, quinto signo zodiacal, até Capricórnio, o décimo, passa obrigatoriamente pela Dama (sétima casa astrológica), pela integração do masculino e do feminino. Ou seja, o nosso caminho de Leão, que tem a ver com a conquista de um eu autônomo, até Capricórnio, simbolizado por picos de montanhas, tem que admitir a participação do outro, a sétima casa astrológica, Libra, a Dame da tapeçaria, e o controle dos nossos desejos pessoais. É nesse sentido que Capricórnio (10) é duas vezes Leão (5).   

ILUMINURA ,   IDADE   MÉDIA

Historicamente, é oportuno lembrar que no final da Idade Média, com o término das guerras e das cruzadas (a violência permitida em nome de Deus, segundo tese de Santo Agostinho), os cavaleiros voltaram para os castelos, para os seus feudos. Embora aristocratas (aristocracia: governo dos bons), eram grossos, boçais, sujos e mal-educados. Alguns meios católicos procuraram, pelo incentivo da adoção de regras de boas maneiras, da cortesia & mesura, amenizar um pouco esse cenário de deseducação e ignorância, movimento que recebeu uma apreciável contribuição da arte, principalmente da produção poética da época.  A tapeçaria acima mencionada pede obrigatoriamente referências a este contexto histórico e à matéria astrológica para um melhor alcance de todas as suas possibilidades significativas.