sábado, 24 de maio de 2014

MITOLOGIAS DO CÉU - VÊNUS (2)


Há mais de 5000 anos, o culto às Grandes Mães, ligados à vida vegetal e à agricultura, se estabeleceu praticamente em todas as tradições religiosas, no mundo todo. Como divindades,
GRANDE MÃE
simbolizavam tanto a vida como a morte. Nascer era sair da matriz, morrer era retornar a ela, à terra-mãe. O arquétipo maternal foi sendo construído, dele fazendo parte ideias de origem, natureza, criação passiva, corpo físico com os seus os aspectos instintivos, impulsivos e fisiológicos. Esse modelo maternal tinha (tem)  a ver também com o inconsciente, com a obscuridade noturna e angustiante, ao mesmo tempo protetora e nutricional, lembrando saciedade, segurança, carinho, amor, calor, compreensão. Sendo proteção e refúgio, a mãe foi elevada à condição de primeiro objeto de amor da criança e também o seu primeiro ideal,  fundamento inconsciente de todas as imagens de felicidade, verdade, beleza, perfeição, como as Virgens com o Menino (Madonas), em momentos históricos como o Renascimento, passaram a simbolizar.



MADONA  (GEROLAMO D. POMPEO)

Ao se desligar do ambiente familiar, no qual  a experiência materna normalmente é preponderante, ou mesmo antes desse desligamento, o ser humano tinha, porém, que enfrentar certos problemas, englobados sob o nome de processo de socialização, aprender a se relacionar com outras pessoas, constituir com elas uniões mais ou menos formais, nas quais o diálogo entre o racional, o afetivo e o emocional era sempre difícil. Um diálogo muitas vezes dificultado porque, embora destacado da influência materna fisicamente, o ser humano continuou dela dependente psicologicamente, a se alimentar dela, de valores herdados de seu mundo familiar. 

No panteão de todas as tradições mitológicas há uma divindade feminina que tutela esse processo. É conhecida como deusa do amor, da vida afetiva, da sedução, personificação do princípio passivo da geração, que age sob diversas formas. A água é a sua essência. Neste sentido, ela será a dispensadora da voluptuosidade que atrai pela perspectiva de uma existência langorosa, sensual, terna, prazerosa, que rejeita o bruto, o rude, o violento. De um modo geral, a Grande-Mãe, agindo através desses princípios, é proposta de união, feminilidade, doçura, harmonia, sentido interno de equilíbrio, que se manifesta como encanto e viva intimidade.  


ISHTAR

Uma das mais antigas representações desse modelo é a deusa Ishtar, da mitologia assiro-babilônica, filha de Sin, segundo uns, ou de Anu, segundo outros. Sin era o deus da Lua, ocupando o primeiro lugar na trindade astral, dela fazendo parte os seus filhos Shamash, o Sol, e Ishtar, o planeta Vênus. Os assiro-babilônicos, muito logicamente, faziam a luz provir da noite, daí a razão da proeminência de Sin. Sua esposa era Ningal, a Grande Dama, a Lua fisicamente considerada.


ANU

Anu, nome que significa céu, reinava sobre os espaços celestes, nele residindo, nas regiões mais elevadas. Era, por excelência, a divindade suprema. Todas as demais o honravam como pai, e era junto dele que todas vinham se refugiar quando algum perigo as ameaçava, como no caso do dilúvio. Vivia em companhia da deusa Antu.

Ishtar, nos textos poéticos, era de deusa das manhãs e do entardecer e personificava, como tal, o planeta Vênus. Era um modelo muito complexo, que chegava a reunir, como acontecia em Suse, por exemplo, uma dupla natureza, feminina e masculina. No geral, porém, Isthar representa a polaridade feminina. Os povos árabes farão dela, todavia, uma divindade masculina, o deus Atthar. 

A mesma complexidade está presente nos atributos da deusa, segundo a consideremos filha de Sin ou de Anu, podendo ser tanto deusa do amor como da guerra. A Ishtar guerreira, venerada sobretudo em Hallab, é filha de Sin e irmã de Shamash. Será neste caso a dama das batalhas, a mais intrépida entre os deuses. Ela conservou estas características quando foi adotada pelos assírios. Tendo se tornado esposa de Ashur, ela o seguia nas expedições, tomava destacadamente parte nas batalhas. Era representada sempre de pé, ereta, conduzindo um carro puxado por sete leões e tendo um arco preso ao corpo.  Sob este aspecto guerreiro recebia também o nome de Anunit em Agadé, capital da Acádia. Irmã de Ereshkigal, a soberana dos infernos, ela contribuiu bastante para povoar o mundo de sua irmã, conhecida como o “astro das lamentações”.




Em outras regiões (Erech), ela era conhecida como a deusa do amor e da volúpia, dos prazeres sensuais. Nesta condição, contudo, podia se mostrar muito irritada, violenta mesmo, incapaz de aceitar qualquer recusa à sua vontade. Chegava  a ameaçar os outros deuses, inclusive seu pai, Anu, de mandar todos para o inferno se suas vontades não fossem satisfeitas. Afirmava, inclusive, que, se as portas do inferno não se abrissem prontamente quando resolvesse visitá-lo, as destruiria, libertando os mortos, que assim poderiam atacar os vivos. É esta deusa, entretanto, que espalha por todo o mundo humano e animal o desejo amoroso, provocando as uniões. 


PROSTITUIÇÃO SAGRADA

A prostituição sagrada fazia parte de seu culto; ao visitar a terra, vinha sempre acompanha de um ruidoso séquito de cortesãs, de prostitutas e de “mulheres alegres”. Ishtar, nesta condição, ostentava o título de cortesã dos deuses, sempre ávida de explorar a  sua sensualidade e sexualidade ao máximo. Seus amantes são incontáveis e ela os escolhe ao seu bel prazer, em todos os níveis, divinos e humanos. Infelizes, porém, aqueles que ela distinguia com a sua escolha. Inconstante, Ishtar tratava seus amantes cruelmente, amando-os sofregamente num dia para, no dia seguinte, abandoná-los sem nenhum explicação. E ai daqueles que ousassem pedir alguma explicação. Maltratava-os, torturava-os, chegando mesmo a matar alguns. Afirmava a deusa que os humanos que se submetiam ao amor perdiam o seu vigor natural, pois neste caso o seu desejo se esvaziava de todo elã. Assemelhavam-se assim os humanos a animais que se deixavam domesticar. Se sob a influência funesta da paixão e do ciúme, não passavam, por outro lado, de bestas selvagens. 

Mesmo para os deuses, os favores amorosos de Ishtar eram perigosos. Em sua juventude a deusa havia amado Tamuz, o deus da vegetação e das colheitas, um amor que causara a perdição da jovem divindade. Tamuz, também chamado de Dumuzid, era filho
NIN GISHZIDA
de Nin Gishzida, divindade subterrânea, patrono da medicina e ligado à fertilidade. Nin Gishzida etimologicamente significa “o da boa árvore”, isto é, “aquele que favorece o crescimento correto das árvores”. É conhecido também como o senhor do Mercúrio, representado muitas vezes como uma serpente com dois chifres na cabeça. O grande símbolo de Nin Gishzida era, contudo, uma espécie de bastão no qual, copulando, se enrolavam duas serpentes. Este símbolo é, sem dúvida, o modelo do qual saíram o caduceu de Hermes e os bastões maravilhosos de Asclépio, de Moisés e de seu irmão Aaron.


TAMUZ-DUMAZID
Tamuz, na Suméria, tinha o nome de Dumazid, sendo Ishtar chamada de Inana (na Suméria, Astarte). As cerimônias fúnebres em homenagem a Tamuz-Dumazid alcançaram todo o Oriente Próximo, chegando mesmo a Israel, celebradas inclusive em Jerusalém, para desgosto do profeta Ezequiel, conforme mencionado na Bíblia hebraica. Pesquisas arqueológicas confirmaram que a Igreja da Natividade, em Belém, foi construída pelos cristãos num local (caverna) em que anteriormente se celebravam cultos a Tamuz.



IGREJA DA NATIVIDADE

Amado por Ishtar, Tamuz, por uma razão misteriosa e involuntária, teve que morrer. Tal como a espiga, que a foice do camponês ceifa em seu maduro e dourado esplendor, Tamuz foi constrangido a descer às profundezas infernais. Desolada pela morte de seu amante, Ishtar cantou a sua dor em dolorosas lamentações, entoada em meio a coros rituais de mulheres que choravam e se martirizavam. Esta tradição se perpetuou por todo o mundo semítico da Ásia Menor e, a cada ano, quando das colheitas, nos ardores do verão, a terra perdia o revestimento de suas plantações, deplorava-se a morte de Tamuz. 

Estas festas fúnebres foram levadas para o mundo mediterrâneo e dali para a Grécia por viajantes, peregrinos, comerciantes e marinheiros, onde, com algumas adaptações, passaram a ser celebradas através de Afrodite (Ishtar), Adônis (Tamuz) e Ereshkigal (Perséfone). Adônis, lembre-se, é nome que vem de um título semita, “Adon” (Senhor).


ERESHKIGAL

Descendo ao mundo infernal, o “lugar de onde ninguém volta”, para retirar de lá o seu grande amor, Ishtar, depois de ter forçado com sucesso os portões da mansão dos mortos, percorreu os sete níveis que a separavam da terra. Em cada uma destas etapas, foi largando uma peça de sua roupa e adereços: primeiro a grande coroa que ostentava, depois, sucessivamente, os seus maravilhosos brincos, seus colares, o boustier que lhe cobria os seios perfeitos, seus braceletes, pulseiras, o cinturão onde cintilavam pedras preciosas, até que, finalmente, já na presença de Ereshkigal, retirou última peça, a “veste do pudor”, ficando completamente nua.

A soberana do mundo infernal ordenou que seus auxiliares a prendessem numa dependência do palácio, soltando, para atacá-la os sessenta gênios das doenças. Ausente Ishtar, a superfície da Terra se cobria de tristeza e de desolação. Os deuses começaram a se movimentar para libertá-la. Ea (etimologicamente Casa da Água, uma espécie de Poseidon), divindade das águas (o chamado reino de Apsu) que envolviam e davam suporte à Terra, criou o efeminado Asushunamir e o enviou ao inferno, fornecendo-lhe palavras mágicas para vencer Ereshkigal. 

Ishtar pode assim fazer o seu caminho de volta, recuperando toda a sua roupa e as suas jóias. Acompanhava-a Tamuz, que, vestido cerimonialmente, tocava a sua maravilhosa flauta de lápis lazúli com braçadeiras de azeviche, proporcionando momentaneamente alguma alegria às almas sofredoras que viviam no reino infernal.


SARGÃO 

Apesar de seu temperamento agressivo, o coração de Ishtar podia ser generoso. Quando agia com bondade, fazendo jus ao significado
ASTARTE
de outro nome seu, a “Benevolente”, inúmeros mortais foram por ela favorecidos. Muitos reis, por exemplo, deviam-lhe a conquista do trono, sendo um dos mais significativos exemplos nesse sentido o do rei Sargão, de Agadé. Aqueles a quem a deusa amava recebiam dela também um carinhoso tratamento filial. Soberana do mundo pela via amorosa, Ishtar foi a deusa mais popular da Assíria e da Babilônia. Seu prestígio era imenso. Sob o nome de Astarte, reinou na Fenícia e muitos dos traços de sua personalidade podem ser encontrados na Ísis egípcia e na Afrodite grega.





Ísis (transcrição grega de Iset), deusa egípcia, foi associada pelos gregos a Selene, Deméter, Hera e Afrodite, conforme o ângulo que de sua personalidade tenha sido salientado. O que se sabe é que essa deusa, que aos poucos absorveu todas as características das
ÍSIS
mencionadas deusas, era, na sua origem,  uma divindade modesta do delta do Nilo, sendo seu culto celebrado num lugar chamado Per Hebet (literalmente, lugar do festival da deusa). O templo de Ísis neste lugar passou a ser conhecido, no tempo dos romanos, pelo nome de Isísdis Oppidum. No norte, Ísis possuía um templo famoso em Busíris, centro de um fervoroso culto prestado a Osíris, seu irmão e esposo. Desde cedo, Ísis aparece ligada a Osíris, com o qual ela formará uma tríade, dela fazendo parte Hórus, filho de ambos. Esta tríade logo se tornou extremamente popular, conforme nos conta Plutarco, o grande historiador grego.     


Primeira filha de Geb e de Nut, aquele identificado por Plutarco como Cronos e a esta como Reia (o segundo casal da Enéada
OSIRIS E ISIS
egípcia), Ísis nasceu no quarto dos dias epagômenos nos pântanos do delta do Nilo (dia epagômeno era cada um dos cinco dias adicionados ao ano civil que compreendia 12 meses de trinta dias cada um). Escolhida como esposa por seu irmão mais velho Osíris, prestou-lhe grande auxílio na obra civilizadora do país, ensinando às mulheres a moer os grãos, a arte da tecelagem, transmitindo inclusive aos homens as artes da cura, e dando a ambos, homens e mulheres, a base da convivência social através da vida em família, sendo a responsável pela instituição do matrimônio.


SETH
Regente do Egito durante a ausência de seu marido que partira para a conquista pacífica do mundo, governou sabiamente o país, aguardando o seu retorno. Imensa, porém, foi a sua dor quando recebeu a notícia da morte de Osíris, assassinado pelo seu irmão Seth, o violento. Cortou então os seus divinos cabelos, rasgou as suas vestes e partiu em busca do seu amado esposo, cujo corpo havia sido encerrado numa arca lançada às águas do Nilo. Levada para o grande oceano, foi a arca, empurrada pelas ondas até as costas da Fenícia, encalhando num grande arbusto (tamarisco), que cresceu rapidamente. Com tempo, a arca acabou sendo absorvida pelo tronco da árvore e por suas raízes, fundindo-se com o lenho do grande vegetal.

Abatido por ordem de Malcandre, rei de Biblos, o tronco do tamarisco foi transformado em coluna, usada na reparação dos telhados do palácio real. Aos poucos, começou a se espalhar a notícia de que um penetrante perfume exalava do tronco. Ísis tomou conhecimento da história, e, compreendendo o seu significado, sem perda de tempo, dirigiu-se ao palácio do rei de Biblos. Sem revelar sua condição, foi recebida pela rainha Astarte, que acaba de dar à luz uma bela criança. Ísis logo se afeiçoou ao pequeno príncipe, cuidando dele como aia, com o assentimento e reconhecimento da mãe. Certo dia, atraída pelo choro da criança, Astarte entrou no quarto do menino e surpreendeu Ísis a banhar seu filho nas chamas purificadoras de uma lareira. Para tranquilizá-la, declarou que pretendia imortalizá-lo, revelando seu nome e o motivo de sua presença em Biblos. Reverenciada então, Ísis recebeu a coluna de tamarisco, dela se retirando a arca onde o corpo de Osíris se encontrava. Levando a arca para o Egito, Ísis a escondeu nos pântanos de Buto, para evitar que o monstruoso Seth a encontrasse. Este, contudo, não se sabe como, conseguiu se apoderar da arca e, para aniquilar completamente o que restava de Osíris, resolveu despedaçar seu corpo em catorze pedaços, que foram dispersados por várias partes do país.


TAMARISCO

Sem desanimar, Ísis pôs-se então a procurar os pedaços do corpo de Osíris. Encontrou-os todos, com exceção de seu membro fálico, que um peixe do Nilo, o oxirrinco, maldito para sempre por este crime, havia devorado. Ísis, então, reconstituiu o corpo de seu marido, juntando os pedaços cuidadosamente. Ajudada por sua irmã Nephthys, por seu sobrinho Anúbis, divindade que atuava na psicostasia, por Toth, o vizir do defunto, por Hórus, seu filho póstumo, ela praticou pela primeira vez os ritos de embalsamamento, pelos quais Osíris ganhou a vida eterna. A seguir, Ísis se retirou, escondendo-se na região pantanosa de Buto, para escapar da fúria de Seth e para cuidar da educação de seu filho, preparando-o para vingar a morte do pai. Graças às artes mágicas da mãe, Hórus conseguiu escapar de todos os perigos até se tornar adulto.


ÍSIS E HÓRUS

Efetivamente, Isis era perita nas artes mágicas e os próprios deuses poderiam ser por ela atingidos. Durante o tempo em que esteve a serviço de Ra, grande divindade solar, ela conseguiu obter dele subrepticiamente seu nome secreto, que ninguém conhecia. Aproveitando-se da decrepitude do velho deus, ela criou, com uma mistura de terra e de saliva divina, uma serpente venenosa que poderia matar tudo o que existisse com a sua picada, inclusive os deuses. Colocando-a no caminho do trôpego Ra, a serpente o atacou-o mortalmente. Foi nesse momento que Ísis, segundo o mito, obteve dele o seu nome mágico, resignado-se então o deus solar, curado por ela, a abdicar em nome da tríade osiriana.


CHEIA DO NILO

Ísis, nos cultos osirianos, representa as cheias do rio Nilo e, como tal, é identificada com as terras férteis do Egito. Uma mistura de terra e água, portanto, elementos passivos. Osíris intervém como a fecundação solar, separando-se assim Ísis de Seth, símbolo do deserto árido. O culto de Ísis se espalhou rapidamente por todo o Egito, suplantando todos os das demais deusas. Alcançou inclusive as terras estrangeiras, levado por mercadores e viajantes do mundo greco-romano, chegando às margens do rio Reno, na Europa germânica, como estrela do mar e guia dos viajantes.

No vale do Nilo, seus cultos se estenderam até os primeiros séculos
APULEIO
da era cristã. Somente no séc. VI, sob o reinado do imperador Justiniano, é que seu santuário de Philae, no extremo sul do país foi fechado, transformando-se o templo em igreja. As festas em homenagem a Ísis eram celebradas sobretudo na primavera e no outono. Quem nos deixou registros sobre elas, as esplêndidas procissões que então se realizavam, foi Apuleio, um iniciado nos Mistérios Isíacos, falando-nos ele inclusive das cerimônias secretas de iniciação. 


As representações mais comuns de Ísis no-la mostram como uma mulher que ostenta na sua cabeça, uma espécie de coifa na forma de um sólio, um ideograma de seu nome. Noutras vezes, ostenta na sua cabeça um disco cercado por duas plumas, entre aspas taurinas.
HATOR
A terceira forma a apresenta como uma mulher com uma cabeça de vaca. É por este componente animal de sua imagem que Ísis é associada à deusa Hathor, deusa do amor e da alegria, na qual os gregos viam a sua Afrodite. Outras versões do mito nos dizem que a cabeça de vaca que Ísis ostenta se deve a uma disputa que teve com seu filho, Hórus. Ísis teria intercedido a favor de Seth, também seu irmão, quando de seu julgamento pelo assassinato de Osíris. Hórus, num acesso de raiva, teria decepado a cabeça de sua mãe. O deus Toth, com as suas artes médicas, teria lhe dado por isso uma cabeça de vaca.


Qualquer que seja a versão, o certo é que a vaca sempre foi o animal sagrado de Ísis, o que astrologicamente a ligava ao signo de Touro. Como fetiches, fazem parte do mundo de Ísis o nó mágico chamado “Tat” (bem-estar, vida) e o sistro, emblema de Hathor. Aos nós, como se sabe, desde a mais recuada antiguidade, sempre foi atribuído um poder mágico, uma grande força, que permitia fixar o imaterial e de ligar não só o corpo, mas a alma, sendo esta ação benéfica ou maléfica segundo a sua ligação, ou seja, benéfica se a ligação se fizesse com algo bom e maléfica com algo mau. Na medida, porém, em que  significa uma coagulação, o nó é um
NÓ DE ISIS
obstáculo, um constrangimento. Não ter nós significa liberdade, nenhum entrave. Entre os egípcios, o nó aparecia sempre associado à vida: nos hieróglifos, uma corda com um nó designava o nome de um homem ou a existência distinta do indivíduo. O nó de Ísis era muitas feito com o cordão de sapatos, mas podia ser feito com tiras de tecidos, simbolizando sempre a imortalidade. Para impedir que a vida escapasse do corpo, os egípcios levavam, como talismãs, no pescoço, nos pulsos ou nos tornozelos, braceletes, colares, cordões com laços. A estes cordões, em sua maioria, eram dados sete nós para que neles ficassem presos para sempre os sete maus gênios da semana. O sentido maior do nó de Ísis era o da ligação com a eternidade. Já o sistro era uma trombeta aguda usada nos sacrifícios à deusa.  


 Invariavelmente, Ísis era representada ao lado de Osíris, a quem sempre dava assistência. Com seus braços, como asas, protegia também as almas dos mortos ou era vista em imagens chorando ao lado de sarcófagos ou de vasos canopos. Como já se disse, seu culto ultrapassou as fronteiras do Egito. No mundo greco-romano, muitos se converteram à sua fé e mesmo durante os primeiros séculos do cristianismo muitos a ela aderiram. Na Grécia, a essa altura dependente do império romano, na própria Itália, em vários países europeus (Gália, Germânia, península ibérica, ilhas britânicas) Ísis era uma força poderosa.   


CONSTELAÇÃO DA VIRGEM

A estrela Spica (alpha Virginis, 23º 09´ de Libra, hoje) e a constelação que por volta de 4000 aC tinha para os egípcios, mais ou menos, os limites atuais da constelação de Virgo, associavam-se a Ísis, enquanto tal astro se fazia notar nos céus no período da colheita dos grãos. Ísis também aparecia ligada à estrela Sirius (Sothis para os gregos, é a estrela alpha Canis Major, a 13º24´ de Câncer, hoje), enquanto este astro ascendendo no horizonte anunciava as cheias do Nilo e o advento do novo ano. Sothis, entre os egípcios tinha o nome de Sepedet, palavra que lembra algo acerado, em ponta, tomando também o sentido de acuidade, de vivacidade de espírito.   

A flor de Ísis era a rosa, muito usada nos seus Mistérios como símbolo do silêncio exigido pela iniciação e imagem da morte carnal. Noutras vezes, Ísis aparecia com o lótus (nynphaea
A ROSA (MATISSE)
caerulea) e com o sicomoro (fycus sicomorus). Como protetora dos mortos, a deusa era considerada como divindade do renascimento. Além de tudo isto, lembre-se que a magia sempre se constituiu num elemento central nos seus cultos, arte na qual ela superava todas as demais divindades egípcias. Ao final do período histórico do país, Ísis assumia, de modo especial, como a sua maior divindade, quatro funções, curadora, protetora dos vasos canopos e do casamento e senhora da magia. 


A difusão do culto de Ísis ganhou grande impulso quando o país foi conquistado pelos macedônicos (Alexandre Magno), tornando-se ela, no período helenístico, a grande divindade do mundo mediterrâneo. A deusa era a grande protetora dos Ptolomeus que
CALÍGULA
governaram o Egito desde Alexandre. Cleópatra, a última dessa família, considerava-se uma reencarnação da deusa. No mundo romano, a presença de Ísis sempre foi marcante. Com exceção do imperador Augusto, que preferiu os cultos de divindades voltados para o Estado, os demais sempre tiveram grande predileção, como se dizia” pelo “orientalismo” da deusa.  Calígula, por exemplo, assumiu vestes femininas para se iniciar nos seus Mistérios. Vespasiano, Tito e Trajano foram imperadores que promoveram os seus cultos por todo o império, mandando inclusive levantar templos em sua homenagem. A Ísis do período romano tinha títulos como “Rainha do Céu” e “Stella Maris”, dos quais os cristãos se apossaram para dá-lo à Virgem Maria. A imagem de Maria com Jesus criança nos seus braços é uma cópia da de Ísis com Horus na mesma condição   

Os hinos cantados ou recitados nos cultos de Ísis sempre proclamaram o seu poder universal, fazendo dela uma soberana dos três mundos, uma espécie de poder que se irradia por todo o cosmos, alcançando inclusive os elementos e os astros. É por essa razão que alguns estudiosos chegaram a considerar que os cultos de Ísis seriam uma espécie de monoteísmo mitigado, apesar de vários sinais de panteísmo nele encontrados.

Um dos grande divulgadores do culto de Ísis foi, como se disse, Lucius Apuleius Theseus, escritor latino (125-170) que, além de vários tratados filosóficos, fragmentos de discursos e outros textos, nos deixou um romance, As Metamorfoses, chamado às vezes de O Asno de Ouro, no qual nos dá uma imagem muito interessante de
ASNO DE APULEIO
seu misticismo, de sua imaginação, de sua sensibilidade e de gosto pela paródia. Resumidamente, a história nos diz que o herói (Lucius) por ter pretendido obter de uma feiticeira os seus segredos foi transformado num asno. Ele então invocou Ísis como a Lua, sempre ligada à feitiçaria, que lhe prometeu devolver a forma humana se ele comesse umas rosas que alguém estivesse levando para uma festa em sua homenagem. Lucius, para retribuir, deveria se consagrar inteiramente ao seu culto, obtendo inclusive, com isso, até à velhice, uma vida isenta de problemas e depois, na ocorrência, uma feliz estada nos Campos Elíseos. Recuperando a forma humana, Lucius, isto é, Apuleio, nos revela que “o ato de iniciação nos mistérios de Ísis pode ser visto tanto como uma morte voluntariamente assumida como garantia de salvação obtida pela graça.”


Em toda a Idade Média, Ísis aparece em muitos romances que têm por tema a iniciação. Em dois, especialmente, podemos perceber a presença da deusa, no da busca do Graal, mais veladamente, e no Roman de la Rose, mais explicitamente. Em ambos, temos a busca do feminino, que a deusa representa. O Graal, como se sabe, é um
SANTO GRAAL
vaso sagrado que, depois de ter servido a Jesus Cristo na Última Ceia, teria na crucificação recolhido o sangue que jorrava de seus ferimentos. A lenda do Graal, que se integra no imaginário arturiano e o tema dos cavaleiros da Távola Redonda, conhece o seu apogeu com as figuras de Parsifal (Perceval) e Galahad, este último o cavaleiro santo e perfeito. A lenda do Graal é, sem dúvida, uma das grandes ilustrações da busca do feminino, símbolo daquele que recebe uma espécie de mãe espiritual (Ísis) para todos aqueles que se interessam pelos mistérios. É por essa razão que o signo astrológico de Virgem tem estreitas relações com a lenda do Graal. O ego que nasceu no signo anterior, Leão, é recebido em Virgo e preparado para um caminho evolutivo que se abre a partir do signo de Libra. Esta idéias ficam mais claras se lembrarmos que tanto Deméter como Ísis exerceram funções típicas do signo de Virgo (sexta casa), como amas de pequenos príncipes, quando andavam, a primeira, à procura de Kore e, a segunda, à procura do corpo de Osíris.  



PÁGINA DO ROMAN DE LA ROSE

O Roman de la Rose é um romance alegórico francês do séc. XIII, composto de duas partes. A primeira é inspirada em Ovídio e apresenta uma “arte do amor” cortês. Nela, a rosa é o grande elemento da conquista amorosa, pois é dela o “doce falar”. Na segunda, o tom é antifeminista e nele se privilegiam a “razão” e a “natureza”, saberes científicos que ajudem a viver racionalmente, opostos ao amor, que é irracional. A obra teve grande sucesso da Idade Média ao pôr em conflito duas correntes de pensamento, um cortês e refinado e, outro, racionalista e satírico. O Roman de la Rose é, acima de tudo, uma obra didática (seu objetivo é ensinar). A primeira parte é de Guillaume de Lorris e a segunda de Jean de Meung. Este último retoma o poema que o primeiro havia deixado (código do amor cortês) e a ele acrescenta ideias morais, sociais e filosóficas. 

A rosa, como atributo de Ísis, fez do Egito o maior produtor e exportador dessa flor na antiguidade, enquanto símbolo do amor que vence a morte e símbolo religioso enquanto lembrava o renascimento na forma proposta pelos mistérios da deusa, uma espécie de movimento religioso que exigia iniciação (mystes, em grego, de onde vem mistério, é o nome do iniciado). A rosa sempre
esteve, por isso, no Egito, de onde passou às outras tradições, ligada a ritos funerários. Lembre-se que os romanos, como herança egípcia e grega, celebravam as famosas festas, as Rosálias, em muitos lugares da Itália, entre 11 e 15 de maio. No mundo cristão, o domingo de Páscoa era chamado por essa razão de domenica rosata. O uso da rosa nos ritos iniciáticos e funerários deu origem à expressão latina sub rosa, muito empregada em diversos meios esotéricos, podendo ser traduzida como “sob o signo do silêncio”, condição exigida para a transmissão de conhecimentos. Foi por razão semelhante também (a rosa como símbolo da discreção) que os gregos, nos cultos dionisíacos, iam coroados com rosas, já que elas tinham, segundo afirmavam os sacerdotes, o poder de diminuir a excitação provocada pelo vinho. As rosas acalmavam os participantes, tornando-os menos falastrões, mais calmos.  

No início do Renascimento, Ísis será vista como divindade fértil, deusa da vegetação, sendo representada por uma majestosa mulher enxertando um galho novo numa árvore morta, uma metáfora para

sugerir o nascimento de um filho, o que poderá ser visto como um anúncio dos novos ideais humanistas que viriam. Registre-se que no final do séc. XVIII (1791), Mozart apresentava A Flauta Mágica, ópera em dois atos, de inspiração maçônica, em que narra a iniciação de Tamino e de Pamina no culto de Ísis. Ameaçados pelas potências das trevas, eles enfrentarão diversas provas, vencidas pelo herói com o auxílio da sua flauta. Terminada a iniciação, os sacerdotes cantarão: “Glória aos iniciados! Penetrastes nos mistérios sombrios da Noite. Ísis e Osíris aceitai o tributo de nosso reconhecimento. A virtude triunfou. O vício foi vencido.”


No Romantismo, Ísis será vista como a própria natureza, mãe universal, mas que precisa ser desvelada. Esse desvelamento nos fala das chamadas interpretações “noturnas” do mito de Ísis, para que todos os mistérios sejam revelados, isto é, revelar o  que a natureza oculta por trás da sua multiplicidade fenomênica. O herói
romântico, o poeta, ousará, procurará “ver” a verdade, correndo o risco de ser punido, de morrer inclusive. Não é por acaso que Gérard de Nerval (1808-1855) fará do mito de Ísis um dos tema centrais de sua obra. Durante toda a sua vida, Nerval perseguiu a ideia do feminino. Procurou nas mulheres de sua vida a “encarnação” da Santa, da Fada, o eterno feminino que para ele nada mais era do que a alma da própria natureza, chame-se ela Ísis, Cibele, Virgem Maria, Octavie, Aurélia ou  a sua própria mãe. Este sincretismo religioso na obra de Nerval tem a ver com as suas pesquisas sobre a mitologia e cultos antigos. Com base nesses estudos, publicou Voyage en Orient e Les Iluminés. 

Nerval suicidou-se (enforcamento). Em sua obra faz referência às buscas de Apuleio, Dante e Swedenborg (outros que como ele procuraram o “eterno feminino”), convencido que estava de que o sonho ajudava a atravessar as portas que separavam o homem do mundo invisível. Sua experiência literária, em prosa ou poesia, é uma das mais fantásticas aventuras de alguém que procurou encontrar as misteriosas correspondências entre o sonho e a vida. No fundo, um grande desejo de transcendência através do amor pelo “eterno feminino”, que a Grande Mãe personifica, um mergulho em correntes vitais mais vastas que levassem a um enriquecimento cada vez mais amplo. Esse feminino está personificado em várias tradições religiosas como sonho de amor, de felicidade, de generosidade, um absoluto tão poderoso que incita muitas vezes o homem a voltar as costas à realidade.

          Ao final, quanto ao mito de Ísis, não podemos deixar de fazer
referência às ideias de Helena Petrovna Blavatski, uma das fundadoras da Sociedade Teosófica, como expostas em seu livro Ísis sem Véu, publicado em 1877. Nele se descreve a história e desenvolvimento das ciências ocultas, a natureza e a origem da magia. Desvelando Ísis, HB expõe nas mais de mil páginas do livro as suas principais ideias sobre o tema, desenvolvidas mais tarde em A Doutrina Secreta. 

Em todas as tradições esotéricas, a deusa é considerada como aquela que detém os poderes da vida, da morte e da ressurreição. Os seus Mistérios, no Egito, serviram de modelo para os de Elêusis, na Grécia, tutelados pelos deuses Deméter e Dioniso. Quaisquer que sejam, porém, as interpretações, religiosas, filosóficas ou literárias, não podemos esquecer que, em última instância, o mito de Ísis e de todos os demais que nele se inspiram, direta ou indiretamente, são também representações do arquétipo da busca que nos falam sempre da destruição de uma forma (o desmembramento de Osíris) e a reunião dos seus pedaços numa forma diferente e superior com relação à antiga. Esta leitura, a meu ver, está perfeitamente justificada se lembrarmos que, astrologicamente, o planeta Vênus opera no sentido contrário da dispersão como princípio passivo da geração que é, atuando alquimicamente como agente da coagulatio, criação de formas (uniões, sociedades, casamentos, obras de arte etc.).


NASCIMENTO DE VÊNUS   (BOTTICELLI)